Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

A PAVOROSA ILLUSÃO.

 

POR
M. M. B. DU BOCAGE.
 
 

LONDRES.

1837.

Ao Leitor.

As Nações, umas já quebraram as algemas do despotismo, outras não tardaram a erguer o grito da Liberdade; porque, aquelas desesperaram de se salvar, estas estão a beber as últimas gotas do fel da tirania. Por toda a parte se alevantam os Povos contra a execrável imbecilidade dos reis e a maldita hipocrisia dos sacerdotes. Tão iniqua há sido a crueldade dos príncipes e dos frades contra a espécie humana, que esta se decidiu em fim a sacudir, de viva força, o jugo de ferro que por tantos séculos lhes havia pesado. É já tempo que nós Portugueses conheçamos a futilidade das ilusões com que os nossos avós nos embalaram. Risquemos para sempre da memória esses ridículos preconceitos de que nos fartou a superstição, com o pérfido intuito de mais a seu salvo nos envilecer. Eia. …Leiamos com atenção a excelente Epistola do nosso grande poeta Bocage, que tanto abunda em salutares preceitos de moral sublime.

A PAVOROSA ILUSÃO.

EPÍSTOLA.
 

Pavorosa ilusão da eternidade,

Terror dos vivos, cárcere dos mortos,

D'almas vãs sonho vão, chamado inferno;

Sistema da política opressora,

Freio, que a mão dos déspotas, dos bonzos

Forjou para a boçal credulidade;

Dogma funesto, que o remorso arraigas

Nos ternos corações, e a paz lhe arrancas;

Dogma funesto, detestável crença

Que envenenas delicias inocentes,

Tais como aquelas que no céu se fingem.

Fúrias, cerastes, dragos, centimanos,

Perpetua escuridão, perpetua chama;

Incompatíveis produções do engano,

Do sempiterno horror terrível quadro

(Só terrível aos olhos da ignorância)

Não, não me assombram tuas negras cores:

Dos homens o pincel e a mão conheço.

Trema de ouvir sacrílego ameaço

Quem de um Deus, quando quer, faz um tirano.

Trema a superstição; lágrimas, preces,

Votos, suspiros, arquejando espalhe;

Cosa as faces co'a terra, os peitos fira:

Vergonhosa piedade, inútil vênia.

Espere ás plantas do impostor sagrado,

Que ora os infernos abre, ora os ferrolha;

Que as leis e propensões da natureza

Eternas, imutáveis, necessárias,

Chama espantosos, voluntários crimes;

Que as ávidas paixões, que em si fomenta,

Aborrece nos mais, nos mais fulmina;

Que molesto jejum, roaz cilicio

Com despótica voz à carne arbitra;

E nos ares traçando a fútil benção,

Vai do gran' tribunal desenfadar-se

Em sórdido prazer, venais delicias,

Escândalo de amor, que dá, não vende.

Ó Deus! não opressor, não vingativo,

Não vibrando co’o a destra o raio ardente

Contra o suave instinto que nos deste;

Não carrancudo, ríspido arrojando

Sobre os mortais a ríspida sentença;

A punição cruel, que excede o crime,

Até na opinião do cego escravo,

Que te ama, que te incensa, e crê que és duro:

Monstros de vis paixões, danados peitos,

Pungidos pelo sôfrego interesse,

Alto, impassível nume, te atribuem

A cólera, a vingança, os vícios todos;

Negros enxames, que lhe fervem n'alma.

Quer sanhudo ministro dos altares

Dourar o horror de barbaras cruezas;

Cobrir de véu compacto e venerando,

Atroz satisfação d'antigos ódios,

Que a mira põem no estrago da inocência:

Ou quer manter aspérrimo domínio,

Que os vaivéns da razão franqueia e nutre.

Ei-lo em santo furor todo abrasado,

Hirto o cabelo, os olhos cor de fogo,

A maldição na boca, o fel na espuma;

Ei-lo cheio de um Deus tão mau como ele;

Ei-lo citando os hórridos exemplos,

Em que aterrada observa a fantasia

Um Deus o algoz, a vítima o seu povo.

No sobrolho o pavor, nas mãos a morte,

Envolto em nuvens, em trovões, em raios,

D'Israel o tirano omnipotente

Lá brama do Sinai, lá treme a terra.

O torvo executor dos seus decretos,

Hipócrita feroz, Moysés astuto

Ouve o terrível Deus, que assim troveja:

"Vai, ministro fiel dos meus furores,

Corre, voa a vingar-me, e seja a raiva

D'esfaimados leões menor que a tua.

Meu poder, minhas forças te confio;

Minha tocha invisível te precede;

Dos ímpios, dos ingratos, que me ofendem

Na rebelde cerviz o ferro ensopa.

Extermina, destrói, reduz a cinzas

Dão a frágeis metais, a deuses surdos.

Sepulta as minhas vítimas no inferno;

E treme se a vingança me retardas."

Não lh'a retarda o rábido profeta.

Já corre, já vozeia, já difunde

Pelos brutos atônitos sequazes

A peste do implacável fanatismo.

Armam-se, investem, rugem, ferem, matam.

Que sanha, que furor, que atrocidade!

Foge dos corações a natureza.

Os consortes, os pais, as mães, os filhos,

Em honra do seu Deus consagram, tingem

Abominosas mãos no parricídio.

Os campos de cadáveres se alastram;

Sussurra pela terra o sangue em rios.

Ah! bárbaro impostor, monstro sedento

De crimes, de ais, de lágrimas, d'estragos,

Serena o frenesi, reprime as garras,

E a torrente de horrores que derramas

Para fundar o império dos tiranos,

Para deixar-lhe o feio e duro exemplo

D'oprimir seus iguais com férreo jugo.

Não profanes, sacrílego, não manches

Da eterna divindade o nome augusto.

Esse, de quem te ostentas tão valido,

É Deus, do teu furor, Deus do teu gênio;

Deus criado por ti, Deus necessário

Aos tiranos da terra, aos que te imitam,

E àqueles que não creem que Deus existe.

N'este quadro fatal bem vês, Marília,

Que, em tenebrosos séculos envolta,

Desde aqueles cruéis, nefandos tempos,

Dolosa tradição correu aos nossos.

Do coração, da ideia, ah! desarraiga

De astutos mestres a falaz doutrina,

E de crédulos pais preocupados

As quimeras, visões, fantasmas, sonhos.

Há Deus; mas Deus de paz, Deus de piedade,

Deus de amor, pai dos homens, não flagelo;

Deus, que ás nossas paixões deu ser, deu fogo;

Que só não leva a bem o abuso d'elas;

Porque à nossa existência não se ajusta,

Porque inda encurta mais a curta vida.

Amor é lei do Eterno, é lei suave:

As mais são invenções; são quase todas

Contrarias à razão e à natureza,

Próprias ao bem de alguns, e ao mal de muitos.

Natureza e razão jamais diferem:

Natureza e razão movem, conduzem

A dar socorro ao pálido indigente,

A pôr limite ás lágrimas do aflito,

E a remir a inocência consternada,

Quando nos débeis, magoados pulsos

Lhe roxeia o vergão de vis algemas.

Natureza e razão jamais aprovam

O abuso das paixões, aquela insânia

Que, pondo os homens a nível dos brutos,

Os infama, os deslustra, os desacorda.

Quando a nossos iguais, quando uns aos outros

Traçamos fero dano, injustos males,

Em nossos corações, em nossas mentes

És, ó remorso! o precursor do crime;

O castigo nos dás antes da culpa,

Que só na execução do crime existe;

Pois não pode evitar-se o pensamento.

É inocente a mão que se arrepende.

Não veem só d'um princípio ações opostas,

Tais dimanam de um Deus, e tais do exemplo,

Ou do cego furor, moléstia d'alma.

Crê pois, meu doce bem, meu doce encanto

Que te anseiam fantásticos terrores,

Pregados pelo ardil, pelo interesse

Só de infestos mortais na voz, n'astucia.

A bem da tirania está o inferno:

Esse que pintam báratro de angustias

Seria o galardão, seria o fruto

Das suas vexações, dos seus embustes,

E não pena de amor, se inferno houvesse.

Escuta o coração, Marília bela,

Escuta o coração, que te não mente;

Mil vezes te dirá; "Se a rigorosa,

Carrancuda opressão de um pai severo

Te não deixa chegar ao caro amante

Pelo perpetuo nó que chamam sacro,

Que o bonzo enganador teceu na ideia,

Para também de amor dar leis ao mundo;

Se obter não podes a união solene,

Que alucina os mortais; porque te esquivas

Da natural prisão, do terno laço

Que em lágrimas, em ais te estou pedindo?

Reclama o teu poder e os teus direitos

De justiça despótica extorquidos.

Não chega aos corações o jus paterno,

Se a chama da ternura os afogueia.

Eia pois, do temor sacode o jugo,

Acanhada donzela, e no teu pejo,

Destra iludindo as vigilantes guardas,

Pelas sombras da noite, a amor propicias,

Demanda os braços do ansioso Elmano;

Ao risonho prazer franqueia os lares.

Consista o laço na união das almas;

Do ditoso himeneu as venerandas,

Caladas trevas testemunhas sejam;

Seja ministro amor, a terra o templo,

Pois que o templo do Eterno é toda a terra.

Entrega-te depois aos teus transportes,

Os opressos desejos desafoga,

Mata o pejo importuno; incita, incita

O que só de prazer merece o nome.

Verás como, envolvendo-se as vontades,

Gostos iguais se dão e se recebem.

Do júbilo há-de a força amortecer-te;

Do júbilo há-de a força aviventar-te:

Sentirás suspirar, morrer o amante;

Com os teus confundir os seus suspiros:

Hás-de morrer e reviver com ele.

De tão alta ventura, ah! não te prives,

Ah! não prives, insana, a quem te adora."

Eis o que hás-de escutar-lhe, ó doce amada!

Se à voz do coração não fores surda.

De tuas perfeições enfeitiçado,

Ás preces que te envia eu uno as minhas.

Ah! faze-me ditoso, e sê ditosa.

Amar é um dever além de um gosto;

Uma necessidade, não um crime

Qual a impostura horríssona pregoa.

Céus não existem, não existe inferno.

O prêmio da virtude é a virtude;

É castigo do vicio o próprio vicio.

M. M. B. DU BOCAGE