LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
A tacha maldita, de Manuel de Oliveira Paiva
Edição de base:
Obra Completa. Rio de Janeiro: Graphia, 1993.
ZABELINHA
ou a Tacha Maldita
Escutem ...
Este livro é um tributo de homenagem que a LIBERTADORA ESTUDANTAL presta à PROMOTORA DA INSTRUÇÃO DOS LIBERTOS e à LIBERTADORA CEARENSE. A esta porque libertou o escravo, àquela porque instrui o liberto.Publicamo-lo, ainda, porque anelamos pela dita de Antônio Bezerra, Justiniano Serpa e Antônio Martins.A muitos parecerão extravagantes estes versos nossos. Seja. Obedecemos, apenas, a nós mesmos...Sejam, porém, sinceros para com
M. DE OLIVEIRA PAIVA
PRIMO
À memória de Luiz Gama
I
Imerso na espessura da floresta
Eu andava nas trevas tateando...
O céu sorria além, de quando em quando;
Parecia haver lá medonha festa!
Nos úmidos pauis da selva infesta
O fogo fátuo andava serpeando...
Ramos d'árvores no ar cambaleando,
Rolando pelo chão, quebrando a testa...
Tremia o corpo meu de medo e frio,
Como treme do órgão o som tristonho,
Como treme a cascata, ao sol, no rio.
Rasgou-se, enfim, dos céus o véu medonho...
O Infinito afinal se descobriu,
Mostrou-me as negras faces, tão risonho!...
II
E a estrada real me conduzira
— Depois que à luz do céu fugi da selva —
Para um vale sorrindo sob a relva,
Linda concha forrada com safira.
Chorava o espírito meu na solidão!
Nem a voz do oceano compassada,
Nem a reza da brisa cochichada,
Me faziam sorrir o coração.
— Quero luz, quero luz, Senhor das matas
Oh Médico Divino, as cataratas
Espedaçai dos olhos de minha alma!
.......................................................................
E o pano do nascente levantou-se...
Tão linda no cenário apresentou-se
A eterna atriz, a Lua! Eu bati palma!
III
E o eco respondeu no outeiro oposto.
Assustado tremi, voltei o rosto:
Uma casa, uma casa ali se ergue,
Hei de ir lá, seja paço, ou seja albergue!
A minha amiga, a Lua carinhosa
Apontava com a destra luminosa
A pirâmide além da cor de arminho
E derramava luz sobre o caminho.
Cheguei ao pé da casa era choupana,
Que envolta num rebuço de umidade
Parecia de longe de alvaiade.
— Entrai, senhor, não há pessoa humana
A quem não escravize a sorte insana
E libertar não possa a caridade.
IV
Acorda, oh Izabel, acende a luz,
Faze o fogo e prepara o bom café;
Tu bem sabes que ordena o pai da fé
Tratemos quem chegar como a Jesus.
Agasalhei-me assim no bom casebre.
Conversei com a velha até o dia
Mostrar no alto cume a penedia,
Distinguindo o que é lobo do que é lebre.
Izabel, num cantinho da palhoça,
Junto à luz do fogão, era tão linda!
Oh como é doce este viver da roça!
Na vasta solidão risonha, infinda,
Que de igual ao sorriso de u'a moça
Que as torpezas do amor nem sonha ainda?
V
Alto dia que andando na cidade
O sofrer dessa noite veio à mente,
Da dor envolta em mel, do frio quente,
Eu confesso, meu Deus, tive saudade.
Saudades dos espinhos, da umidade,
Do temporal medonho, bruto, ingente,
Com tanto que viessem juntamente
O luar, a choupana, a felicidade!
A tela de minha alma tal sofreu
As impressões das tintas naturais,
Que em versos trasladar ela entendeu,
Inda que coxinguentos e banais,
O que de então por diante aconteceu
Com respeito a Izabel e nada mais.
SECUNDO
I
Sentada estava um dia à porta da choupana
A preciosa avó, a velha Mariana.
Muito de coisas velhas velhos se namoram;
Corriam-lhe na mente os tempos que se foram.
Olhava para os matos, matos tão bonitos!
Mirava-se no olhar da meiga Zabelinha...
Então como que ouvia imensidão de gritos,
Sentia estremecer o teto da casinha:
Outrora esta cidade, a bela Fortaleza,
Teve uma indigestão de peste e de pobreza:
Os lindos arrabaldes eram campo enorme
Coberto de barracas de homens seminus,
O brado para — alerta! — um grito de — ai Jesus!, —
Uns panos molambudos eram uniforme,
A carabina Spencer — saco roto e sujo;
Viviam como a besta, ou como o caramujo;
Um monstro o inimigo. Quer Osório imenso,
Pelotas, ou Caxias, ou Napoleão,
Haviam de queimar-lhe adulador incenso:
O estômago vazio, a espada cai no chão.
Foi nesse ingente mar de ondas pestilentas
Que naufragar vieram barcas bolorentas
Chamadas a nobreza do Ceará sertão.
A honra da donzela a níquel de tostão,
Zombando da Moral, da morte nos barrancos,
Mercadejou a raça dos patifes brancos:
Como mercadejou outrora os Africanos
A gente que descansa, a torpe, vil caterva
Que hoje engorda o chão para brotar a erva.
Coitados! Nem sabiam que p'ra nós humanos
Conforme toca o tempo assim o esperto dança,
Mas há de se abaixar co'o prato da Balança!
E basta a digressão, já vejo bom Leitor
— Se é que calças tens; se trajas o corpinho
Permite que te diga — vejo santo Amor
Que me entendeste bem, que os pais do meu Cravinho
De gente boa foram que levou o diabo.
Ao Credo vou agora, ouviste já o Lavabo.
Se acaso o orgulho vem descendo até o filho...
Então, — como em verão se vai do saco o milho
A bárbara invasão do vândalo gorgulho
O saco da família rompe-se de orgulho.
E sempre são uns grãos apodrecidos, ocos,
Não dão um bom cuscus, nem com milhões de cocos.
II
Não posso admirar-te, oh Natureza,
Pois não sei quem te fez...
Responde tu, maluca, oh Lua desfrutável,
Quem foi que fez a tua morbideza,
O sol, a terra, o cosmos, o insondável:
Seria algum inglês?
Ironia! Ironia! não te metas,
Mete a língua no saco.
Estarás tu girando, oh minha estulta musa?
Não sabes tu que impenetráveis gretas
Possui a criação? Musa obtusa,
Me fazes dar cavaco!
Desculpa, oh bom amigo, tens bom tento.
E tomar o tabaco
É permitido ao padre até na confissão
Interrompendo assim o sacramento.
Por isto não me dés excomunhão
Por pecado tão fraco.
Tomba da nuvem fria a chuva espessa
Dos ventos através;
Brota do chão veloz o rio caudaloso...
Assim — que hei de fazer? — desta cabeça
Brota um mundo de asneiras pavoroso
E eu mando-as pra vocês.
III
Izabel tinha dez anos.
Dez páginas lindas, belas,
Escritas com mil estrelas
Narrando as cousas singelas,
Singelas dos verdes anos.
Andava de chinelinho,
De saia curta e de chita,
Bocazinha pequetita
E tudo o mais — tão bonita!
Cabia num chinelinho.
As unhas porém compridas,
Os cabelos mal cuidados,
Pés e rosto mal lavados...
As regras dos bons tratados
Nunca ali foram cumpridas.
Izabel era um poema
Escrito em papel de embrulho;
Era um terno e meigo arrulho,
Do rio leve marulho;
Izabel era um poema!
Caíra de cheio a noite.
Mariana ainda estava
Debaixo do pé de fava,
Que a Lua amante beijava
Rasgando o lençol da noite.
Vês, oh filha, aquela estrela
Que a nuvem cobriu agora?
Assim sumiram-se outrora
Aqueles que nesta hora
Nos céus vivem como a estrela.
Assim morreu nosso nome
Sufocado entre as desgraças;
E hoje entre as canalhaças
Ouvimos torpes chalaças,
Somos pobres e sem nome.
Não percamos a semente
Vês ali aquela luz
Que ao pé da rede reluz:
Tu vais ser o meu Jesus
Que planta nova semente.
Vês, oh filha, aquela estrela
Que sumiu-se aos olhos teus?!...
Assim... que digo, meu Deus?!...
Pode a ti, amores meus,
Enuviar-se a estrela!
Vou te levar à comadre,
A santa madrinha tua!
— Oh! Por Deus, dindinha, a Lua
Não passa a noite na rua...
— Vou te levar à comadre!
..............................................................................
As reticências são bem boas pílulas.
Es mais inteligente do que eu,
E portanto entendeste. Ora pílulas!
Toca adiante, Leitor, que aqui vou eu.
TERTIO
I
Do tempo ainda a rápida ampulheta
Não marcara seis horas,
Ainda envolto em grossa manta preta
Dormia o velho sol, pai das auroras.
E já toda a família da madrinha
Da menina gentil, da Zabelinha,
Mergulhava nas águas buliçosas,
Banhava as belas carnes cor de rosas:
Como nos céus a Lua se metia
Das nuvens vaporosas,
Ligeiras, luminosas,
De instante a instante na sutil bacia.
II
Por entre os coqueirais do Pajeú
Já penetrava o sol;
As cunhãs com as cuias de beiju,
As velhas rezadeiras de lençol,
Os matutos co'as cargas de farinha,
Vendedoras da Feira, os da geninha
— Corrupção da gostosa gengibirra -
Na hora em que se acorda e que se espirra
Saindo ao ar da frígida manhã,
Transitavam na rua:
Como transita a Lua
Entre as nuvens do céu linda e louçã.
Onde foi que o jardim da Aclamação,
No Rio de Janeiro,
Pôde mais comover o coração
— Apesar de cheirar muito a dinheiro —
Que o nosso majestoso Pajéu?
Onde contrasta a gia, o cururu,
Com o vem-vem, o canário, a patativa!
Onde esbelta e sem ordem surge altiva
A prima do poeta, a Natureza:
Como na humanidade
Surgiu a Liberdade
Dos lodaçais da Revolução Francesa!
E como, agora mesmo,
Sutil, divina, a esmo,
Brotou a Abolição na Fortaleza!
Os bandos das graúnas se levantam,
Entre os carnaubais,
Entoam para os céus cantos que encantam,
Que nos fazem bradar: Basta, não mais! —
Erguem-se assim da rede as cearenses,
Nossas priminhas belas. — Fluminenses!
Vós também sois bonitas, eu bem sei;
Haveis porém de obedecer a lei:
— O clarão desse sol que chamam Corte
Encadeia as moreninhas,
Que tombam como as rolinhas
De alva parede ao chão de negra morte.
Oh não te zangues Fluminense bela!
Oh não me causes pânico!
Venhas tu do Mozart, ou da Cancela,
De Botafogo ou do Jardim Botânico,
Do Príncipe Imperial, ou do Sant'Ana,
Da rua do Ouvidor.., confessa, humana,
Que a estação que passas em Petrópolis,
Na Tijuca, em Friburgo, em Teresópolis,
Faz-te esquecer as belas companheiras
Que nos salões vaidosas
Preferem ir pomposas!...
Façamos nossas pazes, brasileiras!
III
Rodava lentamente um velho carro
De um'alta família.
Lançando aos transeuntes vil escarro,
De olhos encovados p'la vigília,
Olhar cínico, faces pardacentas,
Vinha dentro um rapaz. — Cousas cruentas
Sua figura só por si dizia:
Como apontam o odor de maresia,
A roupa tinta pelo cajueiro,
A pele requeimada,
A fala compassada,
Entre os homens da praia o jangadeiro.
la se refazer em Mecejana
O pobre libertino.
Era um filho de Dona Marciana,
Que fora para a Europa, inda menino,
Aprender a riscar na pedra o giz,
Nas grandes faculdades de Paris.
Aprendera, porém, uma outra cousa
Que costuma levar o moço à lousa.
Não deixa de saber engenharias
Quem conhece o champagne,
Muito embora o que ganhe
Ponha a juro no jogo e nas orgias.
Ao encontrar o seu mimoso filho,
Disse-lhe: Já vais?
— Sim, senhora. E estaca o seu tordilho,
E para o carro sob os coqueirais...
De Izabel, Marciana era a madrinha.
Vinha um bonde ao tinir da campainha.
E moças, carro e bonde confrontaram-se:
Do bonde olhares mil relancearam-se
Muito naturalmente sobre elas...
— Depois minha batuta
Dirá quem desta luta
Foi ferido e feriu, feios ou belas.
QUARTO
I
E Dona Marciana foi depois seguindo
Coas moças ledas, gentis, belas sorrindo.
O tordilho forceja e move o perro carro
Que rola e vai deslizando sobre o barro.
Quando a mãe disse ao filho: Meu Chiquinho a Deus!
Uma lágrima correu dos olhos seus;
E já pedaço havia o bonde, na carreira,
Dobrara a rua do herói Pedro Pereira.
II
Muito perto da Estação
Da Companhia dos Bondes
Morava um rapagão de nome João,
— Forte, como do oiti as verdes frondes;
Bravo, como de raça os puros galos:
Ligeiro, como os bélicos cavalos —
E a quem da sorte os rígidos abalos
Deixavam rente ao chão, simples anônimo
Conquanto merecesse ser homônimo
Em bravura, em talento, em honradez,
Daqueles que das turbas são os reis.
Outro fosse o vaticínio
Que seria um Patrocínio.
Filho de raça cruzada
De branco, negro e tupi,
Tinha a pele bronzeada;
Não era filho daqui.
Nascera no sertão do escravagismo
Donde surgiu o novo imperialismo,
Que, o único d'América, rege um povo.
— Como se uma rolinha desse um ovo
Que desse à terna mãe um rebentão
E ao mesmo tempo um outro que gerasse,
P'ra devorar aos seus, um gavião!
Porque, oh! Tu, consentes que se passe,
Deus! Cousas desta ordem sobre a terra?
Até quando consentes tu a guerra
Mais desigual que o homem tem travado?
— Basta, oh tolo, é melhor fiques calado!
Ruge no peito meu cólera satânica!
Do Brasil, desta nova Ilha Britânica,
Havemos de livrar do lobo as reses.
Procederemos nós como os Ingleses
Livrando o território do anglicano
Dos lobos cruelmente. O Americano,
Se traz na destra a cruz da redenção,
Também sabe fazer permutação
Da cruz do Salvador pelo punhal,
Quando matar precisa um animal...
Desculpa, meu Leitor, se tanto falo.
— Mas João era filho de S. Paulo!!
III
Pois era este mesmo João
Que, como quem faz plantão
Na porta da Companhia,
Conversava co'a Maria,
Filha de gente africana,
Uma serva de Dona Marciana;
Co'um joelho cruzado sobre o outro,
Em pé, e buliçoso como um potro
Esperava chegasse a velha Dona,
Para andar, algum tanto ronceirona.
Marciana o chamara. Vinha agora
Saher o que queria a tal Senhora.
IV
Combina envernizar toda a mobília,
Mas vindo mesmo em casa da família.
Econômico assim era por certo,
Isto é tão claro como um céu aberto.
V
Derriba o home' a floresta,
Espera que seque o mato;
Depois risca o fulminato
E o fogo faz sua festa.
Trabalha, nem dorme a sesta,
Nem mesmo calça o sapato;
Destoca o chão; não barato
Viver custa a gente esta.
Pois se da terra nascer
O fruto é tão custoso,
Como é fácil o morrer;
Ficar um peito amoroso
É tão veloz, que dizer
Não posso nem mesmo ouso.
QUINTO
I
Marciana
Nem pense que a menina não possa vir mudar!
São moléstias de moça que cuida em namorar.
E mesmo...
Mariana
Qual! Comadre!
Marciana
Não creia que o João
Lhe vote amor sincero de todo o coração.
São meros passatempos da vida de rapaz,
Isso, naturalmente, qualquer um homem faz.
Mariana
Mas consentir não posso que um pardo, um leguelhé,
A namorar se arroje a quem desigual lhe é.
Me sustento de esmola, moro em velha cabana,
Sou pobre, miserável; mas hei de honrar aos meus;
É este o meu desejo, comadre Marciana;
P'ra mim não quero nada, me basta o amor de Deus.
Marciana
Não lhe digo o contrário. Confie em sua neta,
Izabel é tão branda!
Mariana
Daquela carrapeta
Quem for atrás se arranja. — Mas venha cá comadre,
Chame Izabel de parte, faça papel de padre;
Vá dar-lhe alguns conselhos; que o tal amor a deixe;
Que não seja tolinha...
Marciana
Que o amor é como peixe,
Lhe estou dizendo agora...
Mariana
Pois vá cortar a linha
Que ao torto anzol agarra; não é sua madrinha?
E desatou a velha num berreiro
Que até os cães uivaram no terreiro.
Marciana jamais consentiria
Que aquele amor vingasse; mas dizia
— Baseada em seu tempo de donzela —
Que era simples namoro, bagatela.
II
Enquanto se mordia a estulta velha
Nuns cômicos transportes de pesar;
Izabel, a divina, a santa abelha,
Servia o amargo mel do verbo amar.
Despira o corpo todo, contemplava-se
E nada possuía neste mundo.
Oh não! Engano é isto meu profundo...
Quanto mais se despia, mais amava-se...
Tudo, tudo possui a virgem pura
O céu, o mar e Deus, e Deus também
Escraviza-se a santa criatura
— Exemplo: a manjedoura de Bethlem.
Tinha raiva dos fios do tecido
Que lhe cobria as carnes moreninhas;
Como outrora o profeta, o seu vestido
Rasga e pisa, estraçalha em mil tirinhas.
Esbofeteia as faces delicadas,
Escarra no espelho o vulto seu;
Macera as santas carnes com pancadas.
Puxa os crespos cabelos cor de breu.
Tem vontade de abrir a fechadura
E atirar-se correndo pela rua,
Esquecendo o pudor e a candura;
Mesmo assim como está chorosa e nua.
E suas companheiras? Miseráveis,
Escarnecem da pobre moça branca
Que se prende de um pardo aos tons afáveis
Suspendida do amor pela alavanca.
Os mimosos sapatos tira e puxa
As delicadas meias cor de rosa.
Mais livre de roupagens, mais debuxa
Sua estátua gentil, mas lacrimosa...
Mas pisando no chão estremeceu
Ao contacto da lívida umidade,
E foi caindo em si... Depois ergueu
O que longe rojara a iracidade...
Ao mesmo tempo ouviu a voz rouquenha
Do esquálido Chiquinho, corroído,
Que queimara-se ao fogo como a lenha,
Era carvão bem sujo e denegrido.
III
Depois abrindo a porta,
Foi descobrindo o moço
— Um conjunto de osso,
Mas que de amor se importa. —
Há muita coisa torta.
Há pigmeu colosso,
Há templos calabouço,
E crime até que exorta!...
Na festa, o bacorim
Nem traz à mente a idéia
Da lama suja e ruim...
Assim, enxerga a dêia
No moço um querubim!...
— Pobre gentil tetéia!
Iza
Eu preciso de ti, meu bom, leal Chiquinho!
Quer do bem, quer do mal conheces o caminho...
A minha santa avó, parece estar maluca,
Não quer em sua gente a casta mameluca...
Quando me ensinaram geografia
Me disseram que lá n'amplidão fria
Todos os astros não são sóis;
Que lindas estrelas para nós,
De perto menos brilham do que a Lua:
A luz que elas têm não é sua;
Além disto mui diversos astros
Se reclinam do céu nos negros lastros;
E quantas árvores diversas
São do mesmo chão juntas imersas!
Carne e osso, brancura e rigidez,
O vermelhão e a palidez,
Só dividem-se ao golpe da morte.
A neve e a montanha, o fraco e o forte,
Eternamente dormem juntas...
Chico
Só as frágeis cabeças bestuntas
Se atrevem a cortar fios bem feitos,
Lícito amor, laços estreitos
Co'a foice enferrujada — os preconceitos...
Iza
Oh protege-me, pois, mancebo inteligente...
Foi naquela manhã que foste a Mecejana,
Que esta filha sem pais, que adora Marciana,
Sentiu da tempestade o raio onipotente.
Era noite em minha alma. O sol já do nascente
Tinha acendido a luz. Também a pobre humana
Sentiu nos olhos seus a chama desumana,
Mais quente do que o sol... porque não tem poente!
Chico
E esse marceneiro, o tal Senhor João
Saberá compensar-te o amor que lhe dedicas?
Teu sol também queimou seu rijo coração?
Iza
Nem eu consinto dúvida!
Chico
E eu... sou um Maricas,
Um protetor de amores?!
Iza
Não gracejes, não!
Chico.
Jamais! Tu dás-me um beijo, arranjo as tuas tricas.
....................................................................................
À proporção que Iza lhe falara
O olhar e o coração se incendiara...
Oh! Mas bela atracou o tal Chiquinho...
Tão rijo bofetão deu no focinho,
Por ter audácia de pedir boquinha...
Dá co'a múmia no chão, quase espezinha,
Se não o acode rápido a Maria.
E o sem vergonha ria!
SEXTO
I
Não suponham, porém, que o desfrutável Chico
Apesar de apanhar e de calar o bico,
Não sentisse por dentro uns laivos de vingança:
Apaixonado estava da gentil criança.
Aquele olhar bravio no auge da paixão
Deitando em borbotões o mel do coração;
A energia viril, freqüente nas mulheres,
Quando feridas são da honra nos deveres;
Aquela alma divina em corpo todo Artístico,
O espírito mais concreto transformando em místico...
Confessa, oh bom leitor, aqui muito baixinho,
Preso serias tu, também pelo beicinho...
Eis como formigavam na cabeça tonta
Do esquálido mancebo — a quem ora desponta
A fria luz dos túmulos do ermo cemitério —
Os tredos pensamentos, é negócio sério:
— Hás de ser tu, menina, o último troféu
Que a fronte me ornará de bravo Macabeu.
Me aproximar de ti, ligar-te a teu amante,
Fazer ambos felizes — é mui justo e nobre;
Mas depois ferirei coa lança o Elefante,
Embora o triste sino por finados dobre.
Morrerei sepultado ao peso da vitória.
Mas de gozar-te, oh anjo, sim, terei a glória.
Assim maquinejava. Inverso general,
Que por fazer um bem, quer obter um mal.
Um homem que se abate às cousas femininas,
As quais, — como as mulheres vis, as messalinas,
Se escancham no cangote aos ricos bestalhões, —
Dominam prontamente os ânimos vilões.
Chegou o vosso tempo, oh mui gentis crioulas,
As saias que vestis mais valem que ceroulas
Desses patifes todos — caras delambidas
Que desejam gozar, gozar de vossas vidas.
Vos amo grandemente, oh lindas brasileiras,
— Oh queirais perdoar minhas febris asneiras! —
Mas vós não sejais tolas. Reparai a Iza
Como se arrroja as fuças do louco do bordel,
A cara lhe arrebenta e por um triz que o pisa.
Espatifai o Demo, sois o São Miguel.
Sede a Judith sublime da Bethulia vossa,
Já que sois o Amor, a segurança nossa.
Ainda maquinava o moço merencório.
Escrevendo já vou no meu débil versório:
— Izabel, p'ra casar, precisa de fugir,
Dinheiro tenho eu — ou, pois, tudo que urgir.
Farei, por conseguinte, o belo casamento.
Depois, realizarei o desejado intento.
E que vingança?! Oh que! terei muitos lauréis!
Vou escrever o plano, e, pelos meus papéis,
Depois que eu transformar-me na matéria fria,
Serei celebrizado por sabedoria.
— Izabel me dará por fim o coração
Cedendo ao doce peso, ao money gratidão.
II
Como o céu azul,
Lindo e luminoso;
Que depois trevoso
Fica, do vento sul...
Lírio, do paul
Surgindo formoso:
David, tão saudoso
Herdando a Saul...
Gira assim o mundo...
Agora mui alto,
Agora profundo.
Este crime exalto.
— Crime tão imundo?!
Meu dever não falto.
SEPTIMO
I
A noite estava linda, mas escura.
Através das colunas elegantes
Dos coqueiros, que erguem verdejantes
Os zimbórios dos templos da espessura,
Uma constelação de luz fulgura:
Ora descendo às ervas rastejantes,
Misturadas de orvalho, cintilantes;
Ora subindo às faces de candura
Das morenas gentis da Fortaleza;
Ora esbarrando em férvida fogueira;
Ora mostrando a extensa e lauta mesa;
Ora metida, em ar de alcoviteira,
Nas cortinas de um leito de princesa,
Da festa a mais bonita e mais faceira.
II
E canta-se modinhas, de permeio,
Com a salva de palma estrepitosa,
Gemendo o violão à mão calosa,
Arrancando do peito ébrio gorjeio.
Tira-se par. Passeia-se bem cheio
Por dançar co'a menina mais formosa;
Mesmo porque a rosa é sempre rosa
E... bem vestido, moço algum é feio.
Aqui uma viva, e mais além um bravo.
Cumprimentos daqui, dali carícia...
— Pulo fora daqui qualquer malícia;
Pois que! Não pode a rosa ver o cravo? —
Afinal, se discute sobre escravo.
Rompe estridente a música da polícia.
III
No outro dia, encontrando o meu João
No Passeio, de noite, quinta-feira,
Lá fui a lhe dizer alguma asneira,
Uns parabéns e apertar-lhe a mão...
— Como está o Senhor? Não foi então
A nossa festa, ontem, quarta-feira?
— Dona Izabel, perdoe a ação grosseira,
Tenho estado doente do pulmão.
Parabéns, pelo belo matrimônio,
A ti, meu bom João. Sede felizes,
Jamais vos chegue ao peito o estramônio.
— Conhecemos da sorte os mil matizes:
De lzabel e João nunca o demônio
Senhor poderá ser, mesmo infelizes...
OCTAVO
Mariana
E pois eu não dizia? O tal mulato João
É um grande patife, um grande safadão.
Fugiu da terra dele, andou por toda parte
Ganhando p'ra viver do fruto de sua arte.
Marciana
Fugiu!!
Mariana
E porque não!
Marciana
Cometeu algum crime?
De medo estou tremendo como um frágil vime!
Matou? Roubou? Feriu?
Mariana
Cousa muito pior!
Marciana
Oh pobre de lzabel! Casar c'um celerado!
Que hei de fazer, meu Deus! Dizei-me por favor!
Valei-me, oh santa Mãe de Deus crucificado!
Mariana
Tarde piaste mísera, desgraçada avó!
Ai que não falo mais, está na garganta um nó!
Chico
Mal venho eu chegando e vejo um tal berreiro?
Que quer dizer, pois, isto?
Mariana
É que o mulato João...
Marido de Izabel!... fugiu do cativeiro!
Marciana
Ah!
Chico
D'onde?
Mariana
Da fazenda de um tal seu capitão,
Major, ou coronel da guarda nacional,
Um diabo qualquer! que reside em São Paulo.
Marciana
Mas quem lhe disse?
Mariana
Ouvi.
Marciana
De quem?
Mariana
No temporal
Que desabou de tarde, a venda do Gonçalo
Recebeu a dois homens desiguais na cor;
Um deles era João...
Marciana
Outro...
Mariana
Um libertador,
Que respondia assim ao esposo de Izabel:
— Ninguém lhe aconselhou para você fugir; —
Você foi se casar: pois vinho sem tonel
Não se deve comprar. Enfim vou lhe servir. —
Marciana
E depois?
Mariana
Conversaram baixinho... depois
Passou enfim a chuva e foram todos dois.
...............................................................................
Havia de afinal, por cúmulo de desdita,
Manchar o sangue meu aquela desgraçada!
Manchaste o sangue meu, co'a tacha vil maldita
Hás de ser infeliz! neta amaldiçoada!...
NONO
Como um trapo esfrangalhado
Pelos corvos disputado,
De cavalo, ou de outro gado,
Andava o podre Chiquinho;
Os urubus da doença
Lutavam sem mais detença
Para nem lhe dar licença
De chorar seu dinheirinho.
Tinha rijas convulsões,
Recordando as intenções,
Transformadas em baldões
De provocar adultério.
Quando a João encontrava
Todo lívido ficava:
Parecia já se achava
Sob o chão do cemitério.
No festim do casamento,
Cheio de contentamento,
Parecia um cão nojento,
Leproso e curvo das pernas.
Pouco a pouco foi sentindo
Esse abatimento infindo
Que o nobrezismo já findo
Das cousas sofre modernas.
Mas seu olhar senhoril
Bem mostrava do Brasil
O negreirismo senil
Diante da evolução.
Naquela festa de moços
Tão novos quanto colossos,
Era como uns magros ossos
Nu'a mesa de glutão.
Em presença de Izabel
Rugia como Lusbel
Calcado por São Miguel.
Diante do belo par
Tão sublime e tão bonito,
Tinha a força de um palito
Rojado contra o granito,
Que os seios rompe do ar.
Agora, amigo Leitor,
Se acaso me tens amor,
Peço vejas por favor,
Se de tempo não estás falto.
Aquele pífio soneto
Que acima neste livreto,
De cinco silabas feito,
Acabo rimando em — ALTO.
DÉCIMO
I
A máxima do grande Augusto Comte,
Ou por outra, o claríssimo axioma
Que diz que tudo aqui é relativo
— Enquanto outro mais claro não desponte —
Sempre há de ornar a vicejante coma
Do humano saber, tão presuntivo.
Há de ornar a fonte bela
Da sempiterna donzela
Que todos chamam Ciência.
Como o bem e o mal agudos
São alfinetes pontudos
De peito com finas pérolas,
Ornando as roupagens cérulas
Da consciência.
Outro dia me disse o meu bom lente
Que o romano poder absoluto
Davam aos pais em relação aos filhos;
Não suponham porém que aquela gente,
Vivendo em plena orgia, dissoluto,
Da verdade não visse os belos trilhos.
Morte acerba e dolorosa
Teve enfim alma odiosa
Que matasse a geração.
E que instinto feroz!
De seu filho ser algoz!
Não achei quem me dissesse
Que algum dia tal fizesse
Raivoso leão.
Agora choro eu do fundo d'alma!...
As faces deste ser que chamam homem
Palpitam sob as luzes de dous sóis:
Se merecem da fria morte a palma
Os pais que com punhais filhos consomem...
Dizei-me agora aqueles que aos heróis
— Que têm vida moral -
Lançam estigma do mal
Nas setas da maldição?...
Digo eu por minha conta:
Quem neste número se conta
E alma torpe, relé,
Deve levar pontapé
Como vil cão.
Se herói se chama quem a pátria sua
Liberta, escravizando a pátria alheia,
Porque herói não é quem obedece
— Como obedece à Terra sempre a Lua —
às santas impulsões que vão na veia
E à cuja vista o bem não palidece?...
Inda não se fez platina
Que rebentasse a bolina
Da barca à vela do amor.
Não há flecha de tupi,
Botocudo, ou guarani,
Que ave do amor matasse;
Nem remédio que curasse
Do amor a dor.
II
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Os tempos correm mal quanto a dinheiro,
Por isso o nosso João achou-se em boas.
Pela vaga veloz singram canoas
Com bom vento, bom tempo e bom lemeiro.
Porém, feroz jaguar, tão altaneiro,
Não conseguem prender no laço as boas;
Vagando pelo mar tábuas à toa,
Afogado não morre o marinheiro:
Ao homem forte, ao rijo coração
As cousas tendem incessantemente,
Obedecendo a um centro de atração:
Assim, o pardo João vive contente:
Ele e Iza, um ser só, um coração;
Mas — sustentando a velha — finalmente.
Até outra.
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística