Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Carta ao meu amigo Dr. Cândido Borges Monteiro, de Gonçalves de Magalhães

Translusofonias – Revista de Estudos Comparatistas Lusófonos.

UTFPR, vol. 1, nº 1, 2014.

CARTA

Ao meu amigo

Dr. Cândido Borges Monteiro.

Havre. 1833.

Como é doloroso o deixar pela primeira vez a pátria, os pais, os irmãos e amigos! Que tristes recordações, que melancólicas ideias se não apoderam então de nossa alma! Terna e fagueira se desperta a lembrança do passado, o tempo da nossa infância com todos os seus encantos e atrativos, os lugares que testemunhas foram dos nossos primeiros ensaios da vida: os templos, as praças públicas, a casa paterna, tudo, enfim tudo, nesse momento de tropel se apresenta à nossa fantasia, para mais exacerbar a nossa saudade e arrancar-nos lágrimas do coração, como estas que agora me regam as faces.

Não há lugar esquecido.

Que nesse instante saudoso

Se não mostre deleitoso,

Por encanto ressurgido.

O pensamento embebido

Nessas cenas do passado,

Como que sonha acordado

Um sonho que o pranto excita,

E o coração mal palpita,

Pela angústia sufocado.

Foi assim que eu deixei pela primeira vez o meu Rio de Janeiro, na manhã do dia 3 de julho de 1833. Ainda uma vez, e já dentro do navio, o Dois Eduardos, dilatei os olhos pelo horizonte da pátria e impossível me foi reter as lágrimas, quando, com o coração nos lábios, soltei-lhe um adeus, como se ela me ouvisse. Serei feliz ao menos se depois de viajar a Europa e aprender alguma coisa nesse grande livro, permitir Deus que eu volte e possa servir o meu país como desejo. Porém...

Ainda as velas

Estão ferradas,

E as duras âncoras

No mar cravadas.

Fraco e contrário

Se mostra o vento,

Do sol o rosto

‘Stá macilento.

Um suor frio

Seu corpo rega,

Que em fina chuva

A terra chega.

Mas pouco a pouco

Vai aclarando.

Propícia aragem

Já vem soprando.

Eis já se alegram

Os passageiros;

Soa a celeuma

Dos marinheiros.

Do mar se colhem

Grossas correntes,

Onde se prendem

Os férreos dentes.

As brancas velas

Soltam-se aos ares,

A dura quilha

Já rompe os mares.

Da pátria a vista

Nos vai fugindo;

Da foz do Rio

Vamos saindo.

Como é majestosa e sublime a baía do Rio de Janeiro! Nunca a tinha visto desta altura. Hei de descrevê-la em um poema em que sonho, mas ainda não achei assunto nacional que me inspire.

Um poema é cousa séria,

E pede assunto elevado,

Estro ardente, grande engenho,

E estudo muito apurado.

Cabia aqui a pintura da imensa cadeia de montes, que em forma de enormíssimo gigante guarda a barra da nossa terra; porém o enjoo começa a fazer-me girar a cabeça e vejo-me forçado a largar a pena. Deixo isso para a volta, porque deves saber que tenho esperanças de voltar.

Passaram-se enfim três dias

De aflição e de amargura,

Em que andou em viva guerra

Toda a minha contextura.

Tive em completa anarquia

O aparelho digestivo.

Chamei tanto pela morte,

Que não sei como inda vivo.

Do apertado camarote

Os pratos tinir ouvia,

E a tão molesto repique

Como um trombão respondia.

Meus companheiros comiam

Quanto ali se apresentava;

Bebiam bordéus em cima,

Só eu disso me enjoava.

Se teimoso pretendia

Engolir algum bocado,

Quem disse que o suportava

Meu estômago irritado?

Pensei que me acostumasse

A viver sem alimentos;

Porém achei-me enganado

Depois de tantos tormentos.

Agora enfim pouco a pouco

Meu estômago se aquieta;

Já tenho algum apetite,

Como, porém com dieta.

Mas assim que me levanto,

Sinto logo tal tonteira,

Que volto a fazer caretas,

Para a minha prateleira.

Não chamo assim ao beliche

Por precisão de uma rima,

Que meu leito é uma estante

E tenho um vizinho em cima.

É provável que aches esta descrição mais patológica do que poética; em tal caso nada perderá aos olhos de um filho de Esculápio, habituado a todas as espécies de pathos. Mas subamos ao tombadilho, para ver o céu. Que vida há aí mais monótona do que esta de andar sobre as ondas! Asseguro-te que gosto mais do mar visto de terra. Ora vá lá um soneto para matar o tempo.

Só meus olhos enxergam céus e mares,

Velas e lenho, que me vão levando;

Mas que cenas se estão representando

Em minha alma engolfada em mil pesares!

A cara mãe lá ‘stá enchendo os ares

De tristíssimos ais, que o peito brando,

Em profunda tristeza suspirando,

Envia ao céu com lágrimas a pares!

O pai, ternos irmãos, os meus amigos,

A pátria, tudo enfim me faz agora

Clamar contra meus fados inimigos,

Já brilhante porvir me não vigora,

Se a vida está sujeita a tais perigos,

E não tenho por certa nem esta hora.

Este soneto bem mostra que ainda estou um pouco enjoado. Confesso que não me sinto de veia neste móvel elemento; em terra teria feito um soneto melhor rimado do que este, que será o último que faço.

Mas que corja de tritões

Ao longe lá vem nadando,

E o salso argento em repuxos

Pelos ares assoprando!

Acaso será Netuno,

Que com todo o seu cortejo,

Atraído por meu nome,

Vem saber o que desejo?

Quererá nos seus abismos

A um Magalhães dar abrigo,

Lembrado desse primeiro

Que foi seu tão grande amigo.

Oh! Manes dos meus maiores,

Vinde a mim neste momento;

Dizei-me como se fala

Ao grã rei do salso argento.

Esperemos que ele chegue,

Entretanto, oh! Musa, acode,

Que saudar quero a Netuno

Com uma estrondosa ode,

Dá-me palavras esdrúxulas,

E versos bem esquipáticos,

Estilo todo fosfórico,

Pensamentos enigmáticos!

Mas quê! Enganou-me a vista!

Foram-se as minhas ideias!

Não são tritões, nem Netuno

 São seis famosas baleias!

Ora o certo é que os poetas gregos, com a sua religião mitológica, que lhes permitia ver uma multidão de numes por toda a parte, tinham mais recursos do que nós para suas ficções e alegorias, sem deixar de parecer religiosos a seu modo. O seu maravilhoso estava feito e tinha por base a crença popular e, tendo desaparecido esta crença, desapareceu para nós esse maravilhoso, reduzindo-se esse politeísmo a uma alegoria cediça e os nomes desses numes fabulosos, a velhas metáforas. Outro deve ser o maravilhoso da poesia moderna; e, se eu tiver forças para escrever um poema, não me servirei dessas caducas fábulas do paganismo, custe-me o que custar: apesar da autoridade do grande Camões, que, enchendo os seus Lusíadas com essas figuras alegóricas, põe na boca de uma delas a negação da sua própria existência, fazendo-a dizer:

... eu, Saturno, e Jano,

Júpiter, Juno fomos fabulosos,

Fingidos de mortal e cego engano.

Só pra fazer versos deleitosos

Servimos...

E eu creio que já nem para isso servem hoje, exceto em alguma composição jocosa, ou de assunto grego, e romano. Talvez te pareça que este juízo sobre a mitologia vem aqui encaixado a martelo; pois te enganas: vem muito a propósito, porque nisso penso, por causa do maravilhoso do meu futuro poema, que é uma das dificuldades com que luto, e sabe Deus como me sairei dela.

Mas o que é isto? Estamos parados! Que cruel posição para quem tanto deseja chegar a Paris e ir abraçar os nossos amigos Torres Homem e Porto-Alegre, que por mim decerto não esperam.

Lânguido o vento,

Tão pachorrento

Nos vem soprando

Que dormitando

Parece estar.

As velas todas

Já bambaleiam,

E descansada,

No mar grudada,

Teimosa quilha

Nem uma milha

Quer deslizar.

Pelas enxárcias

Escorregando

E bocejando

A calma ardente,

E o mole sono

Impertinente,

Espalham, às mãos cheias, sobre nós

De papoulas e de ópio finos pós.

Sinto não poder dar a meus versos toda a moleza, todo o aborrecimento da nossa posição. Para ajudar a onomatopeia lê bocejando estes versos; e, se dormires, não me darei por enfadado, porque também estou quase dormitando, não pela virtude soporífica dos versos, que já me habituei com esta espécie de ópio, que me tira o sono, em vez de favorecê-lo, mas pela calma que me amolenta, e me convida... ia quase dizendo – a lançar-me nos braços de Morfeu, mas deixemo-nos de metáforas. Que maldita calma.

Dormiu três dias inteiros,

Até que enfim acordou;

Já o vento com seu sopro

De nós a calma levou;

E que a leve para sempre,

Que saudades não deixou. 

Que bela noite! Como o ar está puro! Como o céu está estrelado! E que lua! Parece um sol disfarçado em astro da noite! Deitado ressupino sobre o tombadilho, olhando para esse céu imenso, recamado de nítidas estrelas, no meio deste vasto Oceano, que as reflete como um espelho de prata, parece que estou suspenso no espaço, docemente embalado no dorso de uma nuvem, que me vai levando por esses ares, e sinto cá dentro uma inefável poesia de puro sentimento, que não poderei exprimir com palavras! Oh! Como é poética a noite no meio da solidão do Oceano!

Eu amo-te, oh noite,

Serena, estrelada,

Que a Deus arrebatas

Minha alma encantada.

O dia nos mostra

Da terra as belezas,

E aos olhos oculta

Dos céus as riquezas.

Excita os sentidos

Do sol a luz clara;

Ao mundo nos prende,

De Deus nos separa.

A humana ciência

Que Deus não descobre,

É como esse lume

Que o céu nos encobre.

Em noite tranquila

Dos céus a harmonia

Mais fala à nossa alma

Que o brilho do dia.

Foi vendo esses orbes,

Da noite à luz calma,

Que o amor do infinito

Surgiu em nossa alma.

No enlevo sublime,

Que só o homem sente,

A ideia do eterno

Brilhou-lhe na mente.

Eu amo-te, oh noite,

Serena, estrelada,

Que a Deus arrebatas

Minha alma encantada.

Que importa, oh Deus, aos olhos meus te ocultes,

Se na razão te vejo,

Quando contemplo esses milhões de mundos,

Em arroubado adejo!

Quem do nada os tirou? Quem moto deu-lhes

No infindo firmamento?

Quem nos deu, para ver tais maravilhas,

Sublime pensamento?

Oculta como tu aos olhos todos

Minha alma pensa agora,

E nesse seu pensar seu ser descobre,

E pasmada te adora.

Tu és o Eterno Ser que se revela

Na criação imensa,

Onipotente e sábio, e de ti veio

Esta alma que em ti pensa.

Assim poetizando, bafejado pelo relento, embalado pelo navio, como a criança no berço, fui adormecendo, e não me lembro do resto. Sirva este sono de transição para o mais que vier.

Estamos perto da linha equinocial. Que calor! E que sede! Se ao menos tivéssemos boa água! Ah, minha doce Carioca, quanto de ti me lembro neste vasto mar salgado!

Oh! Como o homem

É desgraçado!

A quantos males

Está ligado!

Quando, oh Domingos,

Tu pensarias

Que beberias

Uma água assim,

Que de ruim

Até já fede,

E não aplaca

A dura sede?

Ah, se eu pudesse

Me ver agora

No meu Brasil,

Sem mais demora,

D’água gostosa

Do carioca

Levara à boca

Logo um barril.

De que nos serve

Todo este mar,

Se ele não pode

Nos saciar?

A Providência

Melhor fizera

Se em doce rio

O convertera.

Não sei como ainda não inventou a química algum meio fácil de dessalgar as águas do mar, de modo que não precisassem os navios de fazer aguada. Faço votos para que isso aconteça enquanto estou por este mundo, que me sirva para a volta. Entretanto contentemo-nos com a água que há, com gosto e cheiro de madeira podre, que pior fora se nenhuma houvesse, e não murmuremos da Providência, que bem sabe por que fez o mar salgado. Queixo-me da falta de boa água e o que te direi da mesa? Merece um programa em verso da mesma diminuta espécie.

Pão como um bolo,

Cor de tijolo

Petrificado

‘Té ao miolo.

Café suspeito

De favas feito,

E muito aguado.

O chá castanho,

Com o amarujo

Do bule sujo

De velho estanho.

Sopa abundante,

Mas repugnante.

Carne salgada,

Com batatada

Mal amassada.

Duras lentilhas,

Velhas ervilhas,

Já com caruncho;

Couves curtidas,

Mal aquecidas,

Cheirando a funcho.

Magros franguinhos,

Em pedacinhos,

Bem miudinhos.

O que aparece

Tudo se come,

E mais acresce

A dura fome.

Por sobremesa,

Um bolo à inglesa,

Insosso e ruim,

Dito – pudim.

Passa e nozes

Em parcas doses;

Eis o festim.

Ninguém se queixa aqui, co’o ventre erguido,

Que arrebenta por ter muito comido.

Mas que é isto? Temos novidade a bordo?

Eis pelo mastro

Sobe ligeiro

Um marinheiro,

E lá de cima

Um búzio emboca

E com voz rouca

Já nos intima

Que pronto lhe digamos

Para onde navegamos.

Satisfez o piloto à tal pergunta;

E o marmanjo outra vez continuando,

Da parte de Netuno nos avisa

Que dos dous hemisférios na divisa

Nosso baixel já vai atravessando;

E que por um costume justo e antigo,

Quem não tivesse a linha ainda passado,

Devia ser primeiro batizado,

Se quisesse a Netuno por amigo.

Temos comédia a bordo; não a veremos de graça. Tudo isso é uma armadilha destes hereges a alguns francos dos passageiros.

Armado de espada velha,

Vem um barbado intimar-me

Que me cumpre ir a Netuno

Sem demora apresentar-me.

Eu o sigo receoso,

E na proa deu-me entrada

Numa espécie de barraca,

De rotas velas formada.

Sobre uma âncora encostado,

Com semblante contrafeito,

Estava o senhor Netuno,

De barbas até o peito.

Ordenou que me sentasse,

Prontamente obedeci.

Engrolou certas palavras,

Por sinal nada entendi.

Os mais marujos estavam

De um lado e de outro sentados,

Vestidos co’a melhor roupa,

E os rostos apolvilhados.

Um deles, que ali fingia

Ser o padre, por divisa,

Em vez de sobrepeliz

Tinha de fora a camisa.

Começou este um discurso,

E me ordenou que jurasse

Que à mulher do marinheiro

Sempre respeito guardasse.

Não pude deixar de rir-me,

E o juramento prestei.

Com damas alcatroadas

Meu tempo não perderei.

Depois com água salgada

A cabeça salpicou-me;

Acabou o batizado,

E um pratinho apresentou-me.

Então puxei pela bolsa,

E paguei o batizado;

Satisfeito do brinquedo,

Por não voltar bem molhado.

Presente agora temos o rochedo de são Pedro, que ao norte da linha se levanta do mar como um fantasma com três notáveis cabeços, pelo que me parece a quatro milhas de distância. Nada tenho que dizer a seu respeito: passemos adiante em quanto nos é favorável o vento, que rijo sopra. Oh lá!...

Medonha tempestade se apropinqua;

Ronca o ronco trovão solto nos ares;

Sibila o duro vento; as vergas gemem,

E o mar bramando contra a proa esbarra!

Cambaleia o baixel de um lado e de outro,

Ora as ondas o sobem no seu dorso,

Ora ao abismo o levam.

Assegura-nos o Capitão que isto não é borrasca que meta medo, e que mesmo será útil pela falta de água que experimentamos a bordo.

E eu que não minto,

Nem mesmo a brincar,

Terror que não sinto,

Não quero afetar.

Com efeito, desfez-se a tempestade em chuva, e tanto se acalmou o vento que exalou o último suspiro. Estamos de novo em calma. Exatamente como um homem que depois de desabafar a sua cólera, chora e se acalma. Para vingar-me não gastarei com ela um só versinho. Vou ler, até que volte o vento.

Oh que linda perspectiva!

Oh que cena majestosa,

Nos of’rece o sol que esconde

Sua face luminosa!

Numa faixa mais luzente

Que o ouro fino e polido,

Inda mostra meio rosto,

Tem no mar meio escondido.

Que grupos tão pitorescos

De vária cor matizados;

Ricos camafeus parecem,

Em áureo metal cravados.

Mas já no mar, que se encrespa,

De todo o sol ocultou-se,

E a cena que se of’recia

Aos nossos olhos mudou-se.

Agora o céu me parece

Um azul-claro cetim,

De mil nuvens ondulado,

Orladas de carmesim.

Outras nuvens mais ao longe

Fingem bosques e cidades;

É um vasto cosmorama

De milhões de variedades.

Já propício, brando vento

Vem as velas enfunando,

Que em cinco dias de calma

Estiveram descansando.

Enfim, agora já temos

Um momento de prazer;

Momento que só se alcança

Depois de muito sofrer.

Ora amanheceu o dia 13 de agosto, que decerto raiara ao som de estrondosa artilharia e de bélicos instrumentos, se eu fosse um potentado da terra. Que campanudas odes recheadas de Apolo e de Minerva e de um sem número de mentiras; que sonetos cheios de invocações às Musas não receberia eu neste faustíssimo dia! Que carruagens à minha porta, que banquetes, que bailes! Como nada sou tudo está tranquilo, graças a Deus. Farei, contudo, uma odezinha que sirva de episódio a esta carta; porque enfim é a primeira vez que faço anos a bordo de um navio, e, demais, no hemisfério do Norte. Creio que são razões de algum peso, e se não bastam estas razões, acrescentarei que sinto-me com vontade de versejar e não quero morrer embuchado por causa de uma ode suprimida. Lá vai ode.

Como em rápido giro a Natureza,

Movida pela mão do instável tempo,

Após uma estação outra apresenta,

Uma idade após outra.

Qual rio que da rocha se despenha,

Pedras e troncos no seu curso rola,

Tal sem arrepiar caminho o tempo

Tudo consigo arrasta.

Se um pouco volvo reflexivos olhos

Sobre mim, sobre o dia dos meus anos,

Vejo que ainda ontem ria, e me aprazia

Com infantis brinquedos.

Não longe vai de mim aquele dia

Em que eu tenro botão saí do cálix,

E já perdido tenho as galas todas

Da minha primavera.

Agostos vinte e dous hoje completo

Que entre os homens errante os passos movo;

E de agosto em agosto ao final termo

Ir-me-ei aproximando.

Aqui agora vou por estes mares

Que engolido já tem baixéis sem conta,

Sem saber o futuro que me aguarda,

À Providência entregue,

Vou ver a estranhas terras se me é dado

Alguns favos colher da sapiência,

Com que possa prendar à Pátria minha,

E aos meus ser proveitoso.

E basta de ode. Que linda noite. Veloz marcha o navio impelido por um próspero vento. Passamos pelos Açores, na distância de 60 milhas da ilha Graciosa, que nos obsequia com o mais grato cheiro de jasmim. Cousa admirável! Se estivéssemos no meio do mais florido jardim, não sentiríamos mais ativo perfume! Como essas partículas imperceptíveis, de tão longe ondulando por tão vasto espaço, difundidas em tão agitados ares, vêm impressionar o nosso olfato! Como essas impressões sutilíssimas, que não passam dos órgãos dos sentidos, e talvez os não toquem imediatamente, ocasionam na alma essas sensações que se objetivam fora dela, como se fossem qualidades reais das cousas, e criam, por assim dizer, um mundo tão diverso do que ele é! Que maravilhas! Hei de acabar por convencer-me que este mundo é uma fantasmagoria das nossas próprias ideias, e a nossa cabeça uma espécie de lanterna mágica, que mostra fora as imagens que estão dentro. Passemos avante, que isto não é assunto para uma carta escrita a bordo, com o fim de matar o tempo o melhor que posso.

Adeus, oh ilha,

Que ao nosso olfato

Gostar fizeste

Cheiro tão grato.

Quisera agora

Que fosse dia,

Pois de avistar-te

Gosto teria.

Se quantos passam

Por estes mares

Sentem teus doces,

Odoros ares;

Chamar-te devem

Ilha cheirosa,

Que não é menos

Que Graciosa.

Quem se pode fiar no tempo? Quem esperava por mais esta tempestade? Como está negro o céu! Como furiosos estão os ventos! Apenas se conservam duas pequenas velas para equilibrar o navio; as mais estão ferradas. Tudo anda em uma dobadoura.

De um lado e de outro o mar enfurecido

Em montanhosas ondas se levanta,

Salta sobre o convés, e tudo alaga;

Parece que abismar quer o navio!

Lá se foi meu chapéu de Chile! Lá vai ele a perder de vista.

Assim me deixas, Chapéu fugaz?

Ah, por bem pouco Não fui atrás!

Asseguro-te que por um triz não segui o rumo do meu chapéu, querendo apanhá-lo logo que o vento, com a maior insolência, mo arrancou da cabeça. Ainda me bate o coração! Digo-te isto em prosa, porque em verso pareceria exageração poética, como se por aí não houvesse tantas mentiras em boa e má prosa.

Mas esta tempestade está pedindo uma descrição pomposa. Isto agora sim, é que se pode chamar tempestade poética, acompanhada de trovões e raios, que é uma verdadeira imagem do inferno, segundo penso. Vejamo-la bem, para pintá-la ao vivo. Tenho-a toda na cabeça; com mais vagar a escreverei, que a sua horrenda majestade me impõe silêncio agora, e quem sabe se para sempre. O caso é sério; já o Capitão nos manda para baixo... Que dias e que noites.

Mas que contraste! Terminou o temporal, que durou dous dias, deixando o navio a fazer água, o que obriga a todos a dar à bomba, e ficamos de novo em calmaria! Parece que não há tormenta sem calma. Vou escrever a minha tempestade, enquanto a tenho na cabeça...

Ora graças a Deus que estamos no canal da Mancha! Os olhos só cobiçam agora ver terras de França. Lá está ela! Ali as costas de Inglaterra.

Dessa soberba Inglaterra,

Dessa pátria dos banqueiros,

Que se mostram altaneiros

Em qualquer parte da terra,

Por causa dos seus milhões;

Impondo a paz ou a guerra

A todas as mais Nações.

Como é agradável ver terra depois de tão longa viagem. Setenta dias de mar, com mau passadio, não é brincadeira!...Que navio ronceiro!

Já o piloto da barra

Saltou dentro do navio,

E as velas todas se movem

Ao som do seu assobio.

Mil graças à Providência,

Que ao Havre nos fez chegar;

Hoje, onze de setembro,

Devemos desembarcar.

Já de alegria

No peito pula

O coração,

Que se nutria

Só de aflição;

Ruim iguaria,

Má nutrição,

Que bem quadrava

Com a que nos dava

O Capitão.

Espero em terra tirar o meu ventre da miséria. Estamos enfim no Havre de Graça. Esta pequena cidade, cortada de canais e de bacias, parece edificada no mar. Seus canais, que se prolongam no meio de largas ruas guarnecidas de casas, estão coalhadas de grandes navios de todas as Nações, dispostos em quatro linhas, encostadas uns aos outros. Em suas muralhas lê-se o nome de Napoleão, nome que ainda há de fazer barulho no mundo. Estou em terra, meu amigo; disse adeus aos mares e ao meu xaveco e ponho fim a estes disparates.

Amanhã sigo para Paris.

Concluirei dizendo-te que o melhor remédio que conheço para hepatite crônica, é uma longa viagem de mar bem enjoada, do que experimento toda a eficiência. Asseguro-te que também convém aos tísicos, segundo observei em um companheiro de viagem, que, ao princípio, tossia como um desesperado, e olhava para o mar com cara de quem tinha medo de servir de pasto aos tubarões, e aqui chegou com bochechas, de modo que, se a viagem durasse mais alguns dias, chegaria eu sem fígado e ele, com os bofes inteiros e poderia então esbofar-se a seu gosto, entoando um hino ao grande oceano, - se a tanto lhe ajudasse o engenho e a arte. – E com isso te digo adeus.