Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

A descoberta da Índia, de Coelho Neto


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

A partida

Montando o cabo

Ao longo da costa

Traições

Melinde

A Índia

Venia

A PARTIDA

Em nome de Deus, Amém. Na era de mil CCCCLXLVII mandou El-Rei Dom Manuel, o primeiro deste nome em Portugall, a descobrir, quatro navios os quais iam em busca da espeçiaria, dos quais navios iam por capitão-mor Vasco da Gama, e dos outros de um deles, Paulo da Gama seu irmão, e de outro Nicolau Coelho.

Partimos de Restelo num sábado, que eram oito dias do mês de julho da dita era de 1497, noso caminho, que Deus nosso senhor deixe acabar em seu serviço, Amém.

(Roteiro da viagem de Vasco da Gama em MCCCCXCVII.)

LXXXVIII

A gente da cidade aquele dia

(Uns por amigos, outros por parentes,

Outros por ver somente), concorria,

Saudosos na vista e descontentes:

E nós com a virtuosa companhia

De mil Religiosos diligentes

Em procissão solene a Deos orando

Pera os bateis viemos caminhando.

LXXXIX

Em tão longo caminho e duvidoso,

Por perdidos as gentes nos julgavam;

As mulheres c’um choro piadoso,

Os homens com suspiros, que arrancavam:

Mães, esposas, irmãs que o temeroso

Amor mais desconfia, acrecentavam

A desesperação e frio medo

De já nos não tornar a ver tão cedo.

(CAMÕES — Os Lusíadas; canto IV.)

No ano de 1497, de tanta fortuna e glória para o Reino, indo julho em começo, depois de próspera colheita, um grande acontecimento pôs a cidade alerta, chamando às vizinhanças da capela do Restelo copiosa multidão.

Querendo El-Rei dilatar os limites do seu Reino e tendo, por aviso divino, conhecimento de que, além do Cabo, sobre águas brandas, terras de grandes prêmios estiravam-se, reuniu conselho buscando pareceres sobre se devia aparelhar uma expedição que fosse em demanda dessa índia encantada que era o sonho ambicioso dos navegadores.

Os que tiveram a honra da consulta foram de opiniões diferentes uns hesitaram nas respostas temendo que à Portugal surtissem males da inveja dos outros soberanos com mais essa descoberta, outros, porém, com segurança, foram opinando pela empresa e o monarca preferiu andar com eles, porque, se disso lhe não viessem lucros, gloria, ao menos, adviria a ele e ao Reino.

Para que não arrefecesse a ideia, logo ordenou a Bartolomeu Dias, homem experimentado nas águas procelosas dos mares novos que fiscalizasse, nos estaleiros, a conclusão das naus que haviam sido começadas em tempo de D. João II e que deviam transpor o passo perigoso indo, com os cruzeiros abertos nas velas, a maneira de missionários, levar Deus a outras terras de barbárie e mistério.

E todo o ano de 96 passou-se em trabalhos — as camarteladas ressoavam, fiava-se o linho forte para as velas, retorciam-se cabos resistentes para enxarcias, fundiam-se ferragens e troncos formidáveis desciam das serras, em lentos carretos, para as oficinas, até que, em fins do ano, as naus, já prontas, foram postas em rolos e desceram a abrevar as proas na água que deviam fender em tão arriscada singradura.

Pôs-se, então, El-Rei em resolução de tomar chefe para a empresa e, inspirado pelo Senhor que, nesse tempo, trazia a Lusitânia em principal cuidado, escolheu a Vasco da Gama, desprezando as inculcas que lhe faziam os áulicos mais chegados ao trono, certo de que naquele empenho devia apenas ter lugar mérito.

O eleito era um simples capitão de mar, sem fortuna e sem glória, antes modesto e calado, procurando sempre um silêncio discreto onde pusesse o seu valor e o seu nome que vinha, sem atroada, de uma família de Sines.

Aceitando, sem orgulho, a responsabilidade, pôs-se logo em ação o Gama tratando do apercebimento das naus que eram três e todas patrocinadas santamente tendo, cada qual, para guardá-la, um arcanjo — uma era S. Gabriel, nessa pôs pé capitão com seu piloto Pedro de Alenquer; a outra: S. Rafael, foi dada a Paulo da Gama que levou em sua companhia João de Coimbra; a terceira, finalmente, S. Miguel, (antes Berrio, do nome do armador que a vendera ao Rei) deu embarque a Gonçalo Coelho com o seu pratico Pedro de Escobar.

Além das naus foi ainda uma caravela com mantimentos cujo comando foi dado a Gonçalo Nunes e, por junto, era de cento e setenta homens a tripulação da frota, mas, se o número era escasso, a valentia compensava a conta mesquinha e ainda, porque parte da gente já andara com Bartolomeu Dias supriria, com o conhecimento daqueles mares, os apoucados braços.

Ia a frota provida da sua palamenta e de armas de golpe, os paióis estalavam abarrotados — não só levavam andainas de sobressalente, mas ainda grande provisão de pólvora e de betume e pelouros e granadas. A botica, sabiamente sortida pelos cirurgiões, de nada carecia para os males que pudessem assaltar a maruja, salvo se a Deus aprouvesse a morte, senão, com os recursos que levavam, toda peste seria conjurada; e ainda carregavam, para escambos com os mercadores e dádivas aos príncipes que fossem topando, preciosidades em telas e em armas de lavor requintado e alfaias de trama delicada, sem contar os agasalhados dos oficiais, e dos marinheiros porque, cada qual, a medida da sua tença, tomara, mais ou menos, em terra para negócios no ultramar.

Vários intérpretes seguiam para que entendessem as línguas dos diversos povos africanos e com eles se correspondessem; clérigos para que ministrassem os sacramentos e conduzissem as orações e doze galés de morte que seriam deixados nas terras onde abicassem para que se fossem familiarizando com os naturais e com os seus idiomas afim de que, mais tarde, deles dessem noção aos navegantes quando tornassem a afirmar a conquista.

Sendo tudo preparado quis El-Rei, que então se achava em Monte mór, o Novo, dar uma prova pública da sua confiança e estima ao que ia como chefe de tão dilatada aventura e ordenou-lhe que chegasse à sua presença. O bravo marítimo, mais afeito ao rolar das vagas e ao sibilar dos ventos na cordoalha do que às maneiras subtis das cortes, achou-se em embaraços quando, diante da nobreza, El-Rei, com o fausto dos seus brocados e a majestade da sua presença, do trono lhe ditou o que havia de fazer para dar cumprimento ao seu desejo que era o de realizar aquele encargo que recebera como herança dos seus antepassados — abrindo pelas águas um caminho que conduzisse à Índia. E na presença de todos, em linguagem perfeita e altíloqua, comemorou os serviços leais do capitão que, de pé, olhos abaixados, pálido, sentia, pela primeira vez, o coração pequeno dentro do largo peito.

Da multidão rompeu um homem ricamente vestido e com ouro e pedrarias por todo o corpo trazendo veneradamente uma bandeira de seda na qual havia debuxada uma cruz vermelha, de Cristo, Ordem que tinha El-Rei por governador e sobre ela o Gama, comovido como nunca o fora em perigos e dores, jurou que, em serviço do seu Deus e do seu Rei, sempre a traria desfraldada e alta, ainda que fossem superiores as armas dos infiéis que com ela investissem, ainda que andassem concertados os elementos em desorienta-lo, enquanto lhe corresse sangue nas veias havia de a ter firme e hasteada com glória e honra.

E, assim jurando, tomou-a como insígnia da sua capitania e, com algumas cartas para o Preste João e outros vários príncipes das terras orientais, entre os quais o rei de Calecut, pôs-se o capitão com os seus auxiliares de caminho para Lisboa onde as naus tiveram uma demora de três dias esperando o vento que as levasse.

A doce manhã nascia, fresca e rosada, quando os sinos da capela de Nossa Senhora de Belém, entraram a repicar em festa pondo no ar, fino e azul, a alegria cristã de uma aleluia e despertando as gentes que, avisadas da grande expedição e curiosas de verem aquela aventureira partida, haviam acudido de longe estabelecendo aduares nas vizinhanças da ermida onde, os que se faziam ao mar, costumavam deixar as suas promessas, recebendo contritamente os preparativos espirituais para que a morte os não tomasse em pecado sobre essas ondas afrontosas e desconhecidas.

Uma grossa multidão formigava com os olhos ansiosos postos no templo de onde deviam sair os novos argonautas para as naus empavesadas que arfavam no rio como grandes aves marinhas que experimentassem as plumas para o voo arrojado.

A paisagem, larga e calma, toda verde com o favor do tempo, dava uma funda saudade aos que, já de aprestos feitos, esperavam o momento angustioso da partida, apartando-se incertamente da pátria, e os moinhos, velejando nos pendores dos outeirinhos, pareciam acenar aos que partiam amargurados adeuses e para o sempre, tão aflitas andavam as azas ao vento, esse mesmo vento que devia apojar as velas exploradoras.

Marujos, que se haviam engajado na frota, despediam-se dos seus parentes com palavras de conforto prometendo-lhes uma volta breve e favorecida e, por todos os meandros eram suspiros e lagrimas, juras e conselhos e permutas de prendas; as mesmas árvores serviam como de fiadoras aos namorados porque em suas grossas cortiças entravam fundamente pontas de cutelos abrindo signos para que, a volta, fosse provado o juramento feito se os temporais não levassem de arranco o tronco depositário ou se o perjúrio não apagasse o emblema daquela fé.

Era a velha mãe a lembrar ao filho a sua vida solitária, os cabelos brancos da sua fronte venerável, as rugas da sua face, os tremores do seu coração. Como haviam de sentir as ovelhas quando se achassem no monte com outro pastor tomado a salário que, por certo, não as estimando como dono, não havia de as regalar abeberando-as em fontes frescas ou escolhendo macios pastos e, já alquebrada, como havia ela de subir às rampas para recolher na clareira a lenha necessária ao lume caseiro quando os cortantes ventos de dezembro começassem a zimbrar vergando e desfolhando os castanheiros e açulando os lobos famintos contra os redis. Ai! Que mágoa a de o ver partir!

Outra dizia, com os braços em volta do pescoço do homem — que ele não veria, ao tornar, o campo como deixava porque não só de sóis e de chuva carece a árvore senão também que dela cuidem abacelando-a com terra virgem ou ablaquecendo-a para que as suas raízes ganhem força à luz e ao ar, tratando-lhe o tronco e os ramos. Os trigos dourados ficariam em palha ressequida, murchariam as vinhas sumarentas, as abelhas emigrariam não achando mel e os cortiços, calados e secos, viriam abaixo e os ventos os levariam como levam as folhas murchas. Ela! Pobre dela! Sozinha e fraca e tendo um lume a guardar e um berço a embalar como havia de sair, com ferros, a campina e a encosta? Deus a guardasse com vida e não faria pequena caridade.

Outra, chorosa e pressaga, lembrava noites de luar e cantos de rouxinóis, juras feitas tremulamente entre roseiras, a luz fraca das estrelas, enquanto as moças da herdade debulhavam e bailavam com descantes e músicas de doçainas.

Crianças, vendo as mães em pranto, agarravam-se-lhes às saias chorando, não porque compreendessem a razão daquela angústia, tão só por verem lágrimas e o ansiar dos colos oprimidos. E, por entre as gentes lastimosas, iam e vinham lentos vendedores, uns que ofereciam frutos em gigos de vime, outros que mostravam bufarinhas ou apregoavam relíquias “de muita virtude para os que se iam lançar a mercê do oceano”.

O sol subia e já os panos das naus trapeavam anunciando um bafejo da aragem e, constantemente, num desfilar sem pausa, vinha chegando povo e detinha-se maravilhado contemplando os garbosos navios que, ao roxo cair da tarde, andariam longe, afastados da terra, fechados e aparelhados para as surpresas do escarcéu e dos euros.

Naquele burburinho desusado ninguém dava por um grande velho que jazia, quieto e mudo, sobre uma pedra com o cajado entre os joelhos e um cão morrinhento aos pés. Os cabelos, alvos como o linho novo, desciam-lhe até os ombros acurvados, a barba farta e branca enchia-lhe o peito largo, os olhos, que as pálpebras abafavam, sumiam; já se lhe não distinguia a feição ancestral do rosto entre as rugas que lho sulcavam e trêmulo, naquele frio de velhice, o ancião falava, não para que ouvissem o que dizia porque falava para as suas recordações amaríssimas.

“Que vades bem! Que vades bem! Outras frotas maiores tem o mar engolfado e mais numeroso exército tem o infiel, batido. Que vades bem! Quem vos manda é a ambição, quem vos leva é a cobiça, essa mesma harpia que fez com que daqui se fosse, arrastada pelo voluntarioso príncipe, a flor da Patna fenecer nos areais africanos. Que vos não castigue Deus com espetáculo sinistro como o que meus olhos tiveram nessa terra abafada de mourisma. Por mais que possais ver nunca vereis horror como o dos dias tormentosos da catástrofe, nunca vereis tanger com os seus eirados e os seus muros brancos, que eram como grandes ossadas secando ao sol, e com a sua gente bárbara fervilhando nas ruas imundas e tomadas de cães. Nunca tereis os olhos tão horrorizados como tiveram os que, sem bandeira e sem armas, por esmola houveram a vida apenas, e foi muito deixando em terra bárbara, como penhor, o infante santo que, posto sobre uma azêmola, com uma cana nas mãos puras, apupado, apedrejado, cuspido pelo mouro lá seguiu a caminho de fez onde andou, de sofrimento em sofrimento, rolando pela imundície, até que o acabaram expondo-o irrisoriamente nas ameias da cidade nu, pendurado pelos pés, ao sol e aos corvos. Que vades bem e que vos não seja infausta a expedição. Já me não é dado contar com o tempo para que diga que vos esperarei até que a ansiedade seja tanta que a minha esperança se torne em desalento e eu volte para o céu os olhos tirando-os dos horizontes. Que vades bem! Se algum de vós houvesse andado em Tanger não haveria tanto prazer n’essa sortida, mas, do que houve, apenas conheceis o que dizem que é bem pouco a vista do que foi; éreis todos bem meninos quando esse luto envolveu o reino que se lavou em lagrimas. Que vades bem! A vossa cobiça é o piloto, nem outra bússola vos leva senão a sede de ouro. Ides para a conquista como nós outros fomos. Como se nos não bastasse a terra que temos onde há tanta charneca e abrutela aí vão gananciosamente as naus de conquista a busca de mais terreno e do ouro que faz maior a miséria. Que vades bem se o estomago tem o necessário para que haveis de querer empanturra-lo? Contentai-vos com o que vos basta que o querer mais é de ambiciosos. Que vades bem! Que vades bem. ”

Uma mulher que passava atirou-lhe uma broa de milho e o velho, roendo-a, e dando um pedaço ao cão, deixou-se ficar em silêncio dizendo apenas, de quando em quando com um aceno de cabeça, como um profeta que augurasse: “Que vades bem! Que vades bem! ”

Nesse ponto do dia os sinos da capela repicaram com mais alacridade e logo correu um murmúrio entre os do povo e foram-se entre os do povo e foram-se as alas alargando porque, à portaria santa, entre os veneráves freires do convento de Thomar e entre os oficiais da frota, todos com cirios acesos e contritos, apareceu o valoroso capitão-mor da expedição.

Era homem de vulto e de aspecto majestoso, firme como uma torre; a barba farta descia-lhe ao peito que uma couraça luzida forrava e os olhos tinham tanto império que só de os ver humilhavam-se quantos os buscavam.

As vozes dos clérigos subiram no silêncio, ao sol, entoando a ladainha que o povo acompanhava com devoto acatamento e a procissão lenta, grave, foi descendo à praia pelas ervas de cheiro com que haviam juncado o caminho.

O sino passara dos repiques alegres aos dobres compassados e tristes, e através do canto sacro e do farfalhar cadenciado dos passos vagarosos, ouvia-se o pungitivo lamento dos parentes que seguiam os seus naquela hora amarga e contristada do adeus.

Os mesmos homens que ali haviam chegado por simples curiosidade, tocados por tamanha lástima, sentiam-se comovidos. O Gama, entanto, sem dar mostras de tristeza, antes, de olhos ao longe, nas suas velas, parecia querer encurtar o espaço que delas o separava para abri-las, quanto antes, e sair naquele vento pondo-se de rumo ao mar.

Já os bateis balouçavam-se junto à lingueta com a guarnição a postos esperando os que deviam seguir para as naus fundeadas em mais água, ao largo, quando o cortejo parou ajoelhando-se todos os mareantes e os do povo. Então os clérigos cantaram profundamente e o vigário da capela, estendendo as mãos brancas, com os olhos no céu puro, fez, em voz alta, uma confissão geral e aqueles homens de guerra que se iam abarbar com o desconhecido, intrépidos para as lutas a ferro o fogo, curvados, batendo nos peitos com verdadeira intensíssima fé, escutavam as palavras do ministro de Deus que os ia absolvendo para que os não tomasse a morte em culpa no caso de ela sair adiante da Fortuna com a qual todos, por verem o Gama, seguramente contavam.

Finda a cerimônia quiseram todos beijar a mão do sacerdote e, enquanto assim procediam, sempre prosternados, na turba multa mulheres desmaiavam e o pranto corria copioso dos olhos que ficavam.

Só o velho na pedra em que jazia, tinha calma de coração para aquele espetáculo e, quando Vasco da Gama, com um derradeiro e extremoso olhar à ermida, avançou para o batel que o devia conduzir o velho acenou lentamente com a mão encarquilhada despendindo-se: — “Que vades bem! Que vades bem! ”. E os sinos repicaram em festa como se já saudassem um triunfo.

Os remos afundaram na água e, um a um, foram-se todos os batéis em demanda das naus que arfavam, douradas pelos raios do sol. O povo, sem arredar-se do Restelo, queria ver a partida. Ao refrescar da tarde quando os rouxinóis saíam da espessura cedendo o lugar às cotovias, foram-se os panos abrindo.

As naus balouçavam-se brandamente, arfando; as proas, de manso, abriam as águas lustrosas, depois, numa lufada, tufaram-se as velas mostrando os grandes cruzeiros que nelas iam estampados, desfraldaram-se as bandeiras arvoradas, soaram vibrantes charamelas, mas, a um tempo, em todas, largaram-se cutelos e varredouras e, rio abaixo, com a brisa propícia, foram singrando as naus fugindo à Pátria para engrandecê-la e honrá-la. O povo se foi dispersando porque o rio ficou solitário e o velho, com o seu cão, deixou-se estar, de olhos perdidos e, só então, em soledade e silêncio, uma lágrima molhou a sua face rugosa. E a lua grande, subindo, estendeu um alvo clarão sobre a cidade quieta.

MONTANDO O CABO

III

Já a vista pouco e pouco se desterra

Daqueles pátrios montes que ficavam;

Ficava o caro Tejo e a fresca serra

De Cintra, e nela os olhos se alongavam;

Ficava-nos também na amada terra

O coração que as mágoas lá deixavam;

E já depois que toda se escondeo,

Não vimos mais em fim que mar e ceo.

(CAMÕES — OS Lusíadas; canto V.)

Foram-se as naus amarando a todo pano, nem tão dispersas que se não avistassem, nem tão chegadas que abalroassem a uma volta dos ventos desencontrados, e, seguia-as, de conserva, uma naveta da carreira do tráfico, ao mando e Bartolomeu Dias, que obtivera permissão para chegar, ao longo da costa africana, até S. Jorge da Mina, em comércio, não só pelo muito que fizera descobrindo e transpondo o Cabo como também pelo empenho com que se portara na fiscalização dos serviços quando ainda as naus jaziam na envasadura dos estaleiros.

Receoso o Gama de que, por assalto os ventos, houvesse algum desvio, entrou em concerto com os capitães para que uns outros esperassem à vista das Ilhas do Cabo Verde, em caso de extravio, e assim ficou ajustado.

Navegavam. Ia a maruja sossegada porque as águas mal embalavam as naus, tão mansas eram e os ventos apenas refrescavam trazendo ainda o aroma das terras que se haviam abrumado na distância. No céu, alto e fundo, pálida, a lua seguia com toda a sua população de estrelas e a Via Láctea alastrava como uma renda delicada posta sobre o manto da Noite.

O marinheiro, debruçado à borda da grande nau velejante, ia com os olhos a flor de água que as ardentias aljofravam e pensava nos monstros que dormiam no fundo daquele vasto oceano, recordando o que lhe haviam relatado outros antigos marujos acerca das ilhas misteriosas que as naves surgiam, com o seu arvoredo sempre verde e em flor, com os seus alcaçares de torres fulgurantes, de ouro e de prata, com as suas extensíssimas praias de areias rútilas, umas só de homens, de válida estatura, fortes no arremesso dos dardos, destros no manejo das fundas com as quais, despedindo balas, iam buscar as águias nos espaços; outras, só de mulheres, de incomparável formosura e de acessível graça que se banhavam em chusma, nuas, com os cabelos derramados, cantando sobre o dorso verde e mole das ondas ou nos parcéis perigosos onde ficavam de pé, atraindo, com seduções, os que cruzavam os mares.

Ainda se o vento levasse a nau a esses sítios bom seria mas, se viessem repiquetes que a desorientassem atirando-a às rampas agrestes desses reinos fabulosos onde, segundo as lendas que corriam de barco em barco, desde o tempo em que sulcavam os mares as galeras fenícias, viviam homens de medonha presença: acéfalos ou com as cabeças encravadas nos peitos, ou os parvini, de quatro olhos raiados de sangue ou os cinocéfalos, com cabeças de cães e latindo, rondando as praias verdes de sargaço, à espera dos naufrágios que lhes dessem, para repasto, corpos de mareantes.

Não fossem as naus arrancadas a derrota pelos rochedos magnéticos deixando neles toda a ferragem e desfazendo-se desconjuntadas; não se alevantassem brasílicos escamosos do fundo abismo colhendo os lenhos nos seus anéis e estalando-os formidolosamente. Não lampejasse o olhar letal do catoblepas...

E, tão abalado e impressionado ia o marinheiro que, ao mais leve embate da vaga no costado da nau, estremecia julgando ser a investida do monstro, mas, o alvor tingia o céu, iam esmaecendo as luminárias da altura e faixas de rosa e de ouro embrechavam o azul mas, na linha baixa do horizonte nuvens, em disposições caprichosas, davam uma visão fantástica aos olhos do vigilante que, num êxtase vendo o mar esteirado de luz e aqueles minaretes de nácar e aqueles zimbórios de ouro e aqueles visos de neve acreditavam estar à vista das raias dessas ilhas paradisíacas como a de S. Brandão, fundada pelo monge irlandês desse nome ou à das Sete cidades que os tripulantes, mais envelhecidos em toldas, juravam ter entrevisto, mais de uma vez, fugindo diante das proas que as demandavam ambiciosamente.

Em todos trabalhavam conjuntamente o medo e o interesse — se ouviam o marulho sobressaltavam-se, mas logo o terror fugia porque maior era o desejo de alcançarem essas ribas de areias micantes, esses deliciosos lugares de riqueza de onde o ouro e as pedrarias saíam tão abastadamente como as espigas de um trigal num tempo de messe farta.

Os capitães, com os seus astrolábios, iam fazendo minuciosas observações e o Gama, calado e taciturno, no castelo da nau, lançava os olhos pela infinita planície que os ventos iam encarneirando. Ele tinha o seu roteiro traçado e mais o levava a vontade enérgica do que os mesmos ventos.

As suas naus alterosas a bem dizer seguiam impelidas pelo seu querer contra o qual nada podiam os sopros impetuosos nem os escarcéus violentos. Ainda que nele houvesse grande devoção, tanto que se achegava aos clérigos que iam a bordo ouvindo-lhes as predicas, não só a Deus entregava o seu destino cuidando sensatamente que se não entrasse na empresa com o seu próprio esforço nem tanto faria a Providência que, por milagre, o levasse favoravelmente ao destino que buscava.

Só, nos momentos de concentração e silêncio, pedia o auxílio do Senhor, mas, nos instantes de manobra, falava ao timoneiro, animava a maruja e conduzia a fama com o seu exemplo mostrando-se em toda a parte, pondo-se bem aos olhos dos seus homens. E assim navegavam sem acidentes por noites de calma e dias de sol, com ventos afeiçoados sobre bonançoso mar quando, num sábado, o gajeiro bradou anunciando — terra e logo a maruja, acudindo em tropel à amurada, avistou ao longe as Canárias que, de antes, nos tempos das primeiras navegações, eram conhecidas pelo nome bendizente de afortunadas.

Seguiram, mas o tempo começou a variar soprando, com fúria, os ventos e, num crepúsculo denso, uma névoa ferrugínea encobriu o sol que ainda luzia caindo uma noite extemporânea e abafada.

Via-se pouco e mal em torno e o Gama, lutando com tão pesada cerração, deu ordem para que repicassem o sino e logo um homem foi destacado para o campanário, outros tomaram buzinas e charamelas atroando o silêncio porque só assim poderiam dar aviso às naus que, por acaso, andassem perto evitando que se chocassem.

Rompendo a manhã, dissipado o nevoeiro, debalde os olhos procuravam as naus, nenhuma aparecia. Então, como houvera combinado, ordenou o capitão que se fizessem de rumo para as Ilhas do Cabo-verde e, pouco depois de alcançarem a ilha do Sal, avistaram os navios que bordejavam e logo, de todos, romperam sons de trombetas e estouros de bombardas.

Dali por diante, singrando com pequena demora na ilha de S. Tiago para reparo de algumas avarias, seguiram sem desastre de monta a não ser uma das vergas da capitania que se partiu a uma rija lufada do vento sul. Dali apartou-se Bartolomeu Dias para o seu destino a S. Jorge da Mina e a frota fez-se ao oceano.

Numa tarde, estando a maruja em repouso, toldou-se um ponto do céu e, como tudo era novo para aqueles homens, correram todos a ver o fenômeno — uma abalada de garças passou em rumo à terra, reunidas como se, com andarem juntas, melhor pudessem resistir aos temporais daquelas zonas e no mar, porque a natureza desses lugares começavam, com vaidade, a dar amostras do que tinha, anunciando-se por um jorro de água, uma baleia deslizou boiando e outras muitas, de então por diante, foram vistas seguindo lentamente em direções diversas.

A fortuna, que ia como passageira a bordo, farta de andar sobre águas, deixou-se ficar no remanso abrigado de alguma ilha porque o mar banzeiro entrou a rolar, crespo e escuro, espumando como num furor perveso; caíram os ventos de monção e outros vieram tão cheios que as velas inchadas estavalam, rangiam as vergas e as naus, numa desabalada carreira, com as proas afundadas e postiças ao rez da água, fugiam.

Subitamente esfusiava o ponteiro e logo o pano mole trapeava, sustava-se o curso e as embarcações, atrapeladas, ficavam jogando com estridor dos mastros como se ali se fossem desfazer. Como ainda se avistassem as naus de quando em quando, ora em altos vagalhões, ora descendo a cavaduras fundas, iam os homens sofrendo aquelas desfeitas dos elementos sem desânimo, mas, num entardecer abrasado, mergulhando o sol como uma posta de sangue, nuvens sinistras se foram arrumando e todo o mar, liso e quieto, ficou como um lago remansado; respirava uma brisa tépida.

Informados pelo judeu Zaguto e conhecedores daquelas insidias dos elementos o Gama, na sua nau e os capitães nas que levavam começaram a ordenar a manobra, pondo-se a capa, fechando as canhoneiras e as escotilhas e tão depressa andaram os homens como os ventos.

Uma noite impenetrável encerrou a frota — só os relâmpagos alumiavam, com fulvos clarões, o mar que rugia. Aos embates da vaga assaltante amparava-se a marinhagem afoita aos mastros ou, agarrando-se às enxarcias, punha o corpo seguro para que não fosse, de roldão, pelo convés molhado. Quando o céu ficava fulminado também o mar acendia-se e por segundos vogavam os míseros como num incêndio, atordoados com o estrondo dos trovões.

O marulho crescia e, em tão apertada urgência, nem mais distinguiam o dia da noite, sendo a escuridão constante. Mal se podia ter o lume aceso para cozer os alimentos e, quando se punham os marinheiros em torno das bandejas, arranchados, vinha uma vaga roncando e lá lhes levava a ração deixando-os encharcados; nem lhes era dado repouso porque andavam as macas escorrendo e, se algum, exausto, procurava a que lhe convinha com um mergulho da nau ou ao rolar de um escarcéu lá saltava o infeliz, cuspido longe, magoando-se nas taboas.

A todo instante os mestres açodados acudiam com vozes, ordenando que achicassem e eram homens às bombas, outros aos gamotes, esgotando a nau que o mar invadia. O Gama não se furtava à ação e aparecia onde maior era o perigo e maior o trabalho.

Para que os seus não ficassem em pusilânime abandono quis que os clérigos descessem, entendendo que, falando a Deus em soledade, mais se fariam ouvir, mas, em verdade, assim procedia porque notava que, andando eles entre a maruja atônita não só a distrairiam como ainda a tiravam do serviço porque, na incerteza de salvamento, queriam os homens buscar a graça para as almas e deixavam de mão o que faziam, acudindo religiosamente às bênçãos absolvedoras.

Ora uma rajada impetuosa arrancava, como um trapo podre, a vela da verga fendida, ora era um batel que se ia ao mar, com a sua palamenta, arrebatado pela água furente. O breu dos calafetos despegava-se e as naus, com o seu arvoredo seco, corriam doidamente sem rumo, aos rebolos, com o gemer alucinado da gente que se tinha por perdida naqueles mares desconhecidos.

O capitão, fazendo face a tormenta, buscava alentar a companha que esfriava, mas tudo era baldado porque, a uma sua palavra de esperança, respondia o vento com ululos, respondia o mar com o vagalhão. Fez-se maior o atropelo quando os retábulos, com imagens de santos, que iam elevados no castelo da popa, vieram abaixo, com as vagas. Encheram-se os homens de um terror sagrado tomando presagamente aquele fato como um aviso funesto de que a Providência os abandonara.

Já os lemes sentiam-se governando mal e os tendais rotos espadanavam juntamente com as velas rebentadas. Queria um homem fazer-se forte respondendo ao apelo do comando mas, de passagem, topava com um companheiro que escabujava enjoado e dolorido pedindo a Pátria; outro bramia contra a temeridade de afrontarem aqueles extremos de tanta aspereza e reclamava, com ameaças, que se fizessem de volta; grumetes, que, pela primeira vez se viam em tais tormentos, mal escondiam as lágrimas do medo e a esses outros se foram ajuntando e mais e mais, tantos, por fim, e tão ameaçadores que os mestres desesperaram de os conter porque avançavam arrogantes, com armas, vacilando aos boléos da nau, uma das mãos num cabo a outra empunhando um ferro com que exigiam o regresso.

Mas veio-lhes à frente o Gama e molhado e ferido, mas sobranceiro e altivo, pos-lhes defronte a vergonha de uma arribada covarde à Pátria quando dela haviam saído com tão nobre mensagem. Fez-lhes ver a humilhação da entrada quando, ao surgirem no rio pátrio, o povo acudisse às praias pressuroso e soubesse que retrocediam miseráveis porque, partindo com honra, tornavam sem ela tendo-a deixado nos mares como deixavam as cargas que alijavam e os farrapos das velas que os ventos repartiam.

Afortunadamente foram-se os ventos amainando e, depois de tantos insultos do mar, luzio um sol de bonança e remitiram-se as vagas procelosas. Por maior fortuna parecendo ao Gama que já deviam andar na altura do Cabo pôs-se na volta da terra sentindo que, em breve, a teriam a vista poiando todos em terreno firme.

E assim, velejando, na manhã gloriosa de um sábado de novembro, quatro meses depois de haverem deixado a Pátria, o gajeiro, com alvoroço, bradou anunciando terra e os de bordo, com os olhos marejados, avistaram arvoredo.

Correram todas as naus à capitania e, de alegria, posto que em terra vissem apenas árvores, como se a mesma natureza cega quisesse aparecer garbosos, vestiram-se os oficiais com louçainhas, paramentaram-se os clérigos, os mesmos marujos escolheram o melhor fato e as naus foram adornadas içando-se em todas as driças bandeiras e galhardetes, estourando festivamente berços e bombadas com que a companha arrependida procurava, saudando-o, reaver a confiança do seu comandante.

Achando o piloto Pero de Alenquer boa tença ali fizera ancoradouro dando ao seguro abrigo o nome de Angra de Santa Helena. Como as naus flageladas necessitavam de fabrico enquanto uns baldeavam lavando-as, e outros, assentados em balsos, iam trabalhando no costado descosido ou, recorrendo a andaria de sobressalente outros substituíam vergas e mastaréus, velas e cabos, arriando a guindola com que, no momento aflito, se haviam conduzido, o Gama, que buscava um leve repouso e alguém que lhe desse informações sobre o roteiro, mandou reconhecer a angra a ver se algum rio ali descia onde pudessem abastecer os tonéis escassos. Foi-se a percorrer o sitio Nicolao Coelho, num batel, com armas, e, quatro léguas acima deparou-se-lhe o que tanto desejavam — águas límpidas de um rio que foi chamado de Santiago.

Enquanto uns iam enchendo os depósitos outros faziam lenha atirando-se às arvores daquelas selvas virgens onde os mimosos passarinhos, longe de se assustarem, pareciam ter alegria com a inesperada presença dos navegadores porque cantavam prazenteiramente; outros atiravam-se a caça fazendo boa provisão de lobos marinhos, manjar que lhes soube deliciosamente depois de tantos meses que passaram nutrindo-se de conservas.

Sairá o Gama com outros capitães munidos do astrolábio para, em terra, determinarem a latitude e achavam-se num aceitoso meandro quando lhes foram dizer que ali perto, por traz de uma colina, andavam dois negros recolhendo mel numa abelheira.

Estavam os negros sossegados como quem sabia que daquelas praias não lhes viria mal algum e iam pelas moitas vasando o doirado licor das providas abelhas quando os portugueses, mandados sobre eles, arremeteram, não com tanta astúcia e pressa que os colhessem a tempo porque um deles, mais prático nas asperezas daqueles caminhos, logo desapareceu assombrado ficando o outro em poder dos assaltantes.

Trazido a presença do Gama sem que mostrasse ódio pôr o haverem aprisionado não foi possível, entretanto, arrancar-lhe uma palavra; nem aos interpretes entendia porque, ouvindo-os, não dava mostras de perceber o que diziam. Mas, acudindo ao capitão a ideia de rendê-lo pela gula, ordenou a dois grumetes da nau, um deles negro, que o levassem a comer e a beber e tanto que isso fizeram logo ao cafre veio o desejo de comunicar e, com uma mímica desabalada, pôs-se a exprimir quanto podia sobre a terra e os seus naturais.

Os marujos que o cercavam riam-se de o verem em tamanha azáfama, comendo, emborcando os vinhos e gesticulando. Terminada a refeição, como se lhe doesse deixar as vitualhas que restavam, lançava a mesa olhares desejosos, mas logo os retirou para os presentes que o Gama lhe oferecia constando de chocalhos e de contas rutilantes de Cristal.

Com essas dadivas pôs-se em terra o negro satisfeito seguindo, a correr, para a sua aringa de onde, pouco depois, tornava com uma multidão de parceiros, vindo uns agachados, como tigres, com desconfiança e medo, outros, mais atrevidos, caminhavam firmes, ostentando os seus limbos aguçados, as suas brutas adargas e as plumas com que se aformoseavam.

A todos mandou o capitão distribuir presentes e foram tais as mostras de alegria que deram e tão significativas as demonstrações de humanidade que os portugueses acreditaram ter surgido em terra de boa gente.

Fernão Veloso, homem de armas, de estirpe nobre, muito "dado a aventuras e grande bravateador, .tanto que os viu reunidos com as suas mulheres que traziam as formas descobertas, com intenção que foi logo adivinhada e maliciosamente comentada, pediu ao capitão licença para acompanhá-los afim de ver a povoação que tinham e a vida que praticavam , Consentio o Gama e, com os negros, partiu o aventureiro formando planos fáceis e na frota ficaram alguns invejosos da sua fortuna porque haviam avistado as mulheres que, não obstante a cor e os traços das feições grosseiras, tinham as seduções próprias do sexo.

Pelo cair da tarde andava Paulo da Gama com dois batéis, a pesca, e Nicolao Coelho dava guarda aos que recolhiam lenha ou mariscavam quando ouviram algazarra e babariso e logo avistaram o atrevido Veloso que tão contente partira, sôfrego, precipitado, fugindo pela encosta íngreme de um outeiro.

O Gama, que andava com os olhos em terra, logo ordenou que acudissem ao mar homens armados e um batel largou da nau a remos acurvados mas, como o mancebo era jactancioso em contos e em prosápias, quiseram os companheiros divertir-se a sua custa e demoraram o auxílio para que maior fosse o seu tormento.

Já o vozeiro dos negros atroava e indo Veloso, esfalfado, pôr o pé no batel que abicava, arremeteram os cafres às pedradas e atirando os fimbos, pondo em alvoroço os homens que guarneciam o pequeno barco.

Vendo-os o Gama em perigo saiu para defendê-los custando-lhe esse arrojo um ferimento em uma perna e ao mestre da sua nau e a dois marinheiros mais feridas de pouco risco.

Mas nem tão felizes foram os negros pérfidos que saíssem da traição incólumes porque ficaram alguns na praia alcançados pela pontaria dos besteiros.

Sentindo-se daquele procedimento e estando já a frota corrigida ordenou o capitão a partida.

Fizeram-se as naus ao mar demandando o Cabo e começou a bordo a aflição pelo terror que a ideia daquela passagem trazia aos corações. Não se tiravam os olhos do céu que se conservava sereno como se Deus quisesse levantar o ânimo aquela gente e o mar espelhava o céu, mas a opressão continuava e, se o gajeiro, posto nas gáveas, fazia um movimento, logo a maruja, sobressaltada, corria a cercar o mastro como, num perigo, as tímidas ovelhas buscam o seu redil.

Uma onda de mais vulto que rolava era logo apontada como anunciadora de levadias e, se rangia um cabo, se estalava um madeiro logo estremeciam os homens assustados.

Só o Gama, sereno e firme no castelo da nau, buscava o horizonte e, na tarde dum sábado, estando a olhar com desejo, viu terras escarpadas, reverdecidas de árvores e anunciou aos marujos o promontório tenebroso.

Foi tamanha a alegria enxertada de uma decepção feliz que, como se quisessem saudar aquela extrema de terra, assopraram, com fúria, buzinas e charamelas espalhando uma ruidosa música nos ares; outros acenavam com panos, tomavam das driças as roupas que secavam e, agitando-as, festejavam o sossegado linde tão temido.

Quis o Gama chegar com os navios aquela costa, mas, tão contrários sopravam os ventos que lhe frustraram todas as investidas. Desanimado de pôr o pé nesse terreno para nele deixar um padrão fez-se ao largo seguindo ao longo da costa. Vingado, com tão inesperada fortuna, o terrível passo aliviaram-se os corações do grande medo que lhes infundia aquele rumo. Eram as colunas terríveis que se iam arredando do caminho, desafrontando-o ás proas cortadoras.

Nem borrascas nem monstros — os vendavais escondiam-se nas suas cavernas, os escarcéus pareciam domados e os monstros dormiam nos seus abismos. Ali estava o sol pacífico e o céu continuava a acurvar-se em abobada sobre as naus. Nem tão grossas arrebentavam as ondas, nem, tão impetuosos eram os ventos e a maruja, desoprimida, enquanto as naus corriam, cantava saudando com as suas árias aquele mistério que aparecia propicio sem os horrores que lhe haviam emprestado as lendas. E, a todo pano, a frota prosseguia empavesada.

AO LONGO DA COSTA

LXVI

Daqui fomos cortando muitos dias,

Entre tormentas tristes e bonanças,

No largo mar fazendo novas vias,

Só conduzidos de árduas esperanças:

C’o mar um tempo andamos em porfias:

Que como tudo n’ele são mudanças,

Corrente nele achamos tão possante,

Que passar não deixava por diante.

(CAMÕES — Os Lusíadas; canto V.)

Ia a nau velejando e o gajeiro, no seu posto de atalaia, os olhos ao longe, saudoso da terra que deixara e das gentes do seu vilar, sonhava. Nascido e criado no monte agreste, entre os pinheirais e as carvalheiras, habituara-se, desde a infância, a andar pelas charnecas com o rebanho e o cão, uma taleiga ao flanco, o rijo cajado em punho. Nos tempos brandos da primavera que delicia era o amanhecer na altura, ao fresco e cheiroso ar, sob o azul, junto da água cantante e ouvir, nas curtas noites tépidas, de longe em longe, o canto da moça ou a doçaina do pegureiro no seu colmo.

Nas eras de geada e ventos, como era bom ficar agasalhado junto ao fogo crepitante, agarrado ao velo macio da ovelha, com o cão alerta, rosnando aos lobos que vinham raspar as portas do redil, uivando famintamente.

O pai finara-se em África, levado na frota do infante que enviuvara tanta infeliz e fizera tanto pobrezinho órfão; a mãe, encanecida, fiava o seu linho à porta da choupana enquanto ele e o mais novo andavam com o gado e os tios iam chegando terra às vides ou semeando o pão nas leiras.

Porque andava, retirado do sossego, sobre aquelas águas infestas, no tope de um mastro que rangia, exposto aos temporais tremendos? Um do vilar, moço de herdade, tendo o irmão nos mares, falara-lhe, em certa ocasião, enquanto manducavam, das riquezas do mundo, do ouro que nele havia e das espécies tão procuradas que vinham dessas mouramas encantadas que gênios apaniguavam.

O pobrezinho, ouvindo a narração que o outro lhe fazia, enquanto as ovelhas retouçavam e os cabritos, aos saltos, divertiam-se, ficou maravilhado, e, trazendo à pressa o rebanho atônito, pôs o cajado a um canto, despiu a barragana, ajoelhou-se, beijando a mão trêmula da mãe, anunciando-lhe o propósito em que estava de sair ao mar. E a velha, com sobressalto e lágrimas, diante de tão inopinado intento, interrogou-o:

— Por que hás de ir por esses mundos, filho? Vive na calma do teu país e do teu lar, que a Fortuna é arredia se a tentam perseguir. Deixa-te estar na segurança, e, talvez, quando menos esperes, a Fortuna venha bater a tua porta, pedindo um pouco do teu lume uma codea do teu pão só para ter ensejo de remunerar, com largueza, a tua caridade. O mar é mau e os ventos não têm misericórdia.

— Não! É preciso que eu parta. Lá no monte, uma madrugada, eu vi o céu romper-se todo em luz, e, no fundo brilhante, um barinel fugia com as velas cor de rosa soltas. Era o meu barinel, mãe, que se fazia de vela para as terras do Oriente e, em pouco, tornava tão carregado, que mal as velas o podiam arrastar de atestado que vinha o barinel venturoso. Além do ouro e das pedras de brilho, vinham nele princesas lindas, de olhos sentimentais. É preciso que eu parta... Deus manda! Deus quer, mãe. E partiu. Lá se ficaram sós as ovelhinhas e as charnecas nunca mais ouviram as canções do pastor.

No alto céu, de um azul forte e lúcido, aves negras passaram em fila e o gajeiro, seguindo aquela abalada, viu longe, num fundo nítido, como um dorso de sáurio adormecido à tona de água, ao sol, uma fita negra, estendida dilatadamente, sob a poeira luminosa.

A nau corria apropinquando-se; o moço levou a mão aos olhos fitou o horizonte e, pondo-se de pé nas gáveas, bradou no silêncio do mar vasto: — terra! De toda a nau o mesmo brado surtio e a maruja, precipitada, correu às bordas e às enxárcias alongando os olhos ansiosos.

De rumo à costa rangeram as amarras nos escouvens descendo as âncoras e a frota deu fundo em porto protegido.

Pondo-se o Gama a par do regimento que das mãos de El-Rei tomara, ordenou que se passasse da caravela dos mantimentos para as naus tudo que nela houvesse distribuindo-se, com igualdade, as provisões que vinham de conserva. Findo o serviço, que foi feito com vagar e cuidado, por entre cantos, a quilha aliviada subiu mais alterosa a flor dos mares para acabar em chamas afim de que não a aproveitassem outros que, por acaso, a vissem abandonada.

Com o fumo que se levantou, denso e enrolado, do incêndio que foi grande como cabia a vaso de tanto porte e de tão rijo lenho, chegaram a praia, atraídos, muitos dos naturais e foram ocupando as dunas e os cabeços virentes dos outeiros de onde olhavam o caso novo com espanto.

Vendo-os, o Gama, que vinha escarmentado do que com outros já lhe havia sucedido ao longo daquelas praias africanas, quis que os homens baixassem à terra precavidos e assim comunicaram sem receio fazendo trocas com os íncolas que pareciam hospitaleiros e tratáveis, tanto que se chegavam jocundamente, bailando ao som de estrídulos anafís e de atabales.

Tão bem pareceram aos navegantes aqueles homens que, folgando nos seus bandos, se puseram em alegria com eles; o mesmo Gama, despindo a sua sisuda gravidade, entre eles bailou honrando os trebelhos dos bárbaros, caso que fez espanto a sua gente. Mas, desejando o capitão haver um boi dos muitos que por aquelas ervas engordavam, ordenou a Martin Afonso que se chegasse aos negros propondo-lhes tomar o gado em troca de manilhas, mas os pérfidos já imaginavam uma traição, o que, percebendo o Gama astuto, mandou sair a terra gente armada. Vendo luzir o espículo das lanças abalou a negrada espavorida.

Não querendo o capitão deter-se em contendas inúteis, não só para que dele não ficasse fama de cruel que em muito podia prejudicá-lo como, principalmente, para poupar os poucos homens que levava, chamou às naus os combatentes despejando em terra, como por despedida e exemplo do seu poder, dois estrondosos disparos de bombardas.

Aos estouros os negros, com as mãos nos ouvidos e bramando, embrenharam-se no arvoredo esquecendo na praia, abandonadas, as peles mosqueadas que lhes serviam de resguardo e adorno.

Para assinalarem o sítio erigiram os portugueses um cruzeiro que bem dizia ser de mareantes porque era armado com uma mezena e, num comoro, puseram um dos padrões que traziam com as armas reais e o lema “Do senhorio de Portugal reino de cristãos”. Tanto, porém, que as naus se foram alargando no mar os negros desceram a praia em chusma e, com vozerio selvagem, derribaram o cruzeiro e o padrão tripudiando barbaramente no sítio em que haviam estado os símbolos da religião e da pátria dos exploradores.

Depois de haver de novo chegado a terra, pouco adiante da angra que teve o nome de S. Braz, indo as naus por mar grosso, assaltou-as tão temerosa tempestade que os homens, desanimados, tiveram por certa a morte, pensando que jamais haviam de avistar lindes de salvamento porque, desde que do rio pátrio se haviam amarado, ventos tão fortes nunca os acossara nem tão volumoso oceano os envolvera.

A água era tanta a bordo, rolando, com fragor, no bojo fundo, que não lhe davam vasão todas as bombas; rôto o pano, desfeitos vários cabos, ninguém mais se ocupava com a manobra entendendo que era perder esforço em vão serviço; já o desânimo abatia os mais intrépidos quando se foram abonançando as águas sendo de novo vista a nau de Nicolao Coelho que se havia desgarrado.

Por sobre mares, de então por diante favoráveis, seguiu a frota escalavrada avistando, de bem longe, os chamados llhéus Chãos e pouco além o Ilhéu da Cruz onde deixara Bartolomeu Dias o seu padrão derradeiro. Nesse ponto algum tempo demoraram e, descendo a terra, foram alguns procurando indícios dos que por ali haviam passado e, como na frota seguiam vários homens dos que tinham servido ao dobrador do Cabo, foram esses narrando aos mais as peripécias do primeiro desembarque, apontando lugares em que haviam estado, relatando feitos que haviam cometido.

Eram as terras de magnífica e aceitosa perspectiva, recobertas de árvores frondentes, forradas de ervas verdes e macias que se estendiam dilatadamente como mimosos tapetes naturais e o passaredo vário cantava de mil modos cortando os ares ou nos ramos onde tinha seus ninhos pendurados. Dali partindo em à noite imediata achou-se a frota à altura do Rio Infante que foi o ponto extremo da viagem de Bartolomeu Dias.

Navegavam com sossego; os oficiais gozando o doce lazer que o mar lhes dava recompunham as memórias da aventura, tal relembrando um facto ou corrigindo-o, qual acautelando uma lembrança que trouxera desta ou daquela terra em que poiara e a maruja, descansada, cantava, como na Pátria, desafiando as saudades perigosas. Iam nesse descanso quando, demandando novamente a terra, acharam- se, como por encanto, diante do Ilhéu da Cruz que haviam deixado.

Foi grande o espanto a bordo e, se o capitão não houvesse explicado que as correntes haviam feito desandar a frota ficaria no espírito da maruja uma nova e prejudicial crendice. Puseram novo esforço e, com o favor dos ventos, foram por avante passando a 25 de dezembro a vista de uma costa que foi chamada de Natal em comemoração da festa que naquele dia era celebrada em toda a cristandade. Pouco adiante viram, com mágoa, os marujos que um dos mastros da nau do Gama era fendido e, como melhor puderam, repararam-no aguardando momento mais propício para um fabrico cuidadoso; ainda, para maior prejuízo, rebentando um dos calabretes, foi-se ao fundo, perdida, uma das âncoras da capitania. Entrementes começou a sentir-se a sede a bordo porque os tonéis estavam quase enxutos tanto que a água foi parcamente distribuída, cabendo a cada homem um escasso quartilho e cozendo-se os alimentos com a que tiravam do mar. Buscaram de novo a terra e tanto que com ela se avistaram, viram na praia robustos homens e mulheres de porte válido que os olhavam, com espanto, vir chegando.

Apesar do que lhe vinha acontecendo ao longo do litoral inóspito e selvagem quis ainda o Gama tratar com os naturais e mandou Martin Afonso e outro de bordo para com eles entreterem falas mas não os entendeu o intérprete; isso, porém, não descoroçoou o Gama que, conhecedor do povo que ali tinha, soube fazer com que logo se houvesse com bom jeito e humana compostura. Assim pensando mandou ao senhor da região umas calças, uma jaqueta, uma carapuça vermelha e uma manilha de cobre. Com tais ofertas pôs-se o regulo em tão agitada alegria que os mesmos marinheiros riram de seus modos e, como para demonstrar a sua gratidão, ofereceu aos portugueses tudo quanto dele dependia.

À noite Martin Afonso e o companheiro seguiram o magnata negro a sua aldeia e ali acharam afável diversório sendo-lhes servida uma ceia farta ao abrigo da choupana que era a residência nobre do rei negro. Enquanto comiam, viam eles andar a gente bárbara que acudira maravilhada a contemplá-los — os homens nús e nuas as mulheres com uma tanga apenas a compô-los, uns mostrando os seus torsos, de basalto e os seus bíceps rijíssimos, outras com os seios tesos reluzindo, algumas traziam filhos; e exprimiam-se em tal algaravia que nem perceber, podiam os da nau o que diziam senão pelos olhares espantados com que os fitavam acompanhando-os.

O magnata não se continha de contente olhando as suas louçainhas e quando os hóspedes, regalados e satisfeitos, despediram-se quis o regulo honrá-los dando-lhes uma escolta que os acompanhasse ao embarque.

O que mais apreciavam os negros dessa localidade eram os panos de linho e por eles davam grandes porções de cobre que ali era nativo e abundante porque todos traziam enfeites desse metal, não só nos braços e nos tornozelos como nas carapinhas duras.

O Gama, surpreendido com a afabilidade do povo, deu àquela paragem o nome amigo de Terra da boa gente, e ao rio onde se provera chamou do Cobre. Dali partiram com grande pena dos naturais passando ao largo do cabo das Correntes e da costa aurífera de Sofala.

Vendo adiante da proa a foz de um rio de margens frondosamente arborescidas foi-se por ele acima o Gama ousado notando que se adensava o bosque e que as margens se alongavam em balseiros mortos. Ia singrando quando avistou, descendo, várias almadias com homens que as governavam alegremente e outros que nelas vinham de passagem. Como os da Terra da boa gente eram tratáveis e, tanto que viram as naus puseram-se a acenar saudando os da companha e logo, atracando, como se amigos fossem, guindaram-se pelos cabos acudindo jocundamente aos reclamos que lhes faziam. E de todos partiam vozes de amizade que eram correspondidas pelos portugueses. Alguns dos que chegavam, interpelados por Fernão Martin, em árabe, respondiam como se lhes não fosse desconhecido o idioma, posto que em outro se exprimissem; com isto teve o Gama grande alegria percebendo que assim falando tinham eles tratam com muçulmanos e poderiam prestar-lhe informações que servissem ao seu roteiro. Trazendo a nau o que a terra produzia, recebiam do Gama outros presentes e, com tais permutas, mais se foram apertando as alianças.

Entre os que vinham foi logo observado um mancebo de simpática figura e lhano que, conversado, explicou por acenos, ser de longes terras e que já vira barcos como aqueles do mesmo porte e assim mesmo armados.

Essas notícias ouvidas em tal sítio puseram em alvoroço os corações dos nautas e o Gama, por esses sucessos venturosos, chamou ao rio dos Bons signaes pondo em terra um padrão dos que trazia o qual, por vir da nau S. Rafael, o mesmo nome guardou. Ali ficaram em resguardado porto refazendo o que os ventos estragaram, recompondo o que o mar descompusera.

O Gama, durante as noites, ouvindo o murmulho daquelas selvas pujantes que beiravam o rio entre as quais, pelas horas altas e repousadas, formas monstruosas caminhavam estalando os ramos secos e atroando o silêncio com ululos, sorvendo o perfume das grandes flores que desabrochavam nos ramos que eram viveiros de pássaros canoros, lançava os olhos ao céu, crivado de astros palpitantes, como se nele quisesse ler augúrios.

Os homens do quarto iam e vinham lentamente vigiando e, na proa, algum insone, a lembrar-se da Pátria que deixara, debruçado sobre o rio claro, suspirava; os mais dormiam, só ele, no castelo da popa, solitário, recolhido, pensava nesse país longínquo que os horizontes abafavam ao qual devia chegar com as proas para sua glória e glória da sua Pátria, tornando ao reino com as amostras da conquista e a chave dos mares largos.

Tão contente estava com os indícios que naquela extrema achara que entrou a amar a terra e as árvores e aquelas águas lentas e aqueles marnéis extensos.

Mas, com o correr dos dias abrasados, começou a bordo o sofrimento. Aos homens inchavam as gengivas e faziam-se roxas rompendo um sangue fétido dentre os dentes abalados; iam-se-lhes as bocas inflamando e, queimados de febre, apodrecidos em vida, mal podiam gemer porque os mesmos gemidos lhes doíam e, se lhes passava alimento ou água pela boca torciam-se de dores repelindo-os; outros definhavam lívidos, tiritando num grande frio mortal e acabavam, sem que os cirurgiões pudessem aliviá-los, com os clérigos junto a maca falando-lhes de misericórdia, a cruz erguida mostrando o céu que se curvava, azul e calmo, sobre aquelas terras de peste. Quantos ali ficaram! O mesmo Gama se ia perdendo num desastre na água e a nau de Paulo da Gama esteve a entregar-se a areia pérfida de um banco de onde foi arrastada, com o favor da maré, pondo-se a nado.

Dali partiram: uns tristes por haver deixado companheiros, outros contentes porque se arredavam de tal sítio. Navegando passaram a vista de três ilhotas às quais não quis o navegador chegar; adiante outras ilhas lhes surgiram, mas, como a noite caía tenebrosa, detiveram-se os navios até a manhã seguinte ordenando o Gama a Nicolao Coelho que fosse na sua nau, a mais esguia, sondar aquelas águas até que chegasse a terra.

Foi-se o valente, mas não com tanta ventura que logo achasse caminho livre, antepôs-se-lhe a proa um baixo extenso que o forçou a virar de bordo, tornando ao fundeadouro, mas de terra largavam vários pangaios, com as suas velas de palma expostas a um vento galerno. Isso vendo exultou o Gama que, ao brado de Nicolao Coelho: “Que vos parece, senhor? Já esta é outra gente. ” Demonstrou alegria, ordenando que os navios buscassem fundo mais próximo daquela ilha.

Os que vinham nos pangaios não só faziam gestos de amizade como tangiam os seus instrumentos. Abaçanados de cor, fortes de corpo e graciosos traziam abas nos ombros e fotas nas cabeças, por armas usavam adagas e terçados e, nas maneiras mostravam mais cultura do que os seus irmãos do litoral.

Recebendo-os a bordo soube o Gama por eles que se achavam em Moçambique, terras do domínio do rei de Quiloa governadas por um xeque, de nome Cacoeja. E mais disseram: que ali chegavam mercadores trazendo os preciosos produtos da Índia e ouro de Sofala e levando o que dava a terra fértil. Também informaram sobre o reino do Preste João, dizendo que já não distava dali grandes jornadas e que, submetidas ao seu poder, muitas cidades mercadoras haviam junto ao mar, ele, porém vivia concentrado no coração do reino sendo necessário, para lá chegarem, que montassem camelos pois só esses animais de força e abstinentes venciam os alcantis e os andurriais, ao sol vivíssimo, sem refresco de sombras.

Foi tamanha a alegria a bordo com essas novas que muitos choraram de prazer, dando sentidas graças a Deus por os haver posto no caminho que buscavam. E o Gama, ouvindo tais informações, resolveu levar as naus ao porto de Moçambique para ter confirmação de quanto ouvira e buscar um piloto que os guiasse à Índia. E foi Nicolao Coelho sondar o porto e posto que se lhe houvesse partido o leme achou fundeadouro. Quando as naus entraram viram sobre ancora quatro fustas de mouros que descarregavam e a gente que as guarnecia deteve-se no serviço, vendo chegar o bando navegante.

Iam e vinham pirogas remadas por homens de busto nu e nas praias, cobertas de imundícies, andavam bandos apressados em algazarra, mercando e frautas concertavam, soavam tambores roucos e, pôr vezes, no ar, azas fortes batiam e aves de grandeza e larga envergadura iam-se ao céu em voos arrojados, sumindo-se para lá das árvores, nas montanhas verçudas que fechavam a terra.

TRAIÇÕES

LXXXIV

Assi que deste porto nos partimos

Com maior esperança e mór tristeza,

E pela costa abaixo o mar abrimos,

Buscando algum signal de mais firmeza;

Na dura Moçambique, em fim, surgimos,

De cuja falsidade e má vileza,

Já serás sabedor, e dos enganos

Dos povos de Mombaça pouco humanos.

(CAMÕES, OS Lusíadas; canto V.)

Tendo o mouro notícia do surgimento da frota despachou emissários que foram de visita ao Gama levando-lhe presentes e expondo o desejo do xeque de ir pessoalmente levar-lhe as boas-vindas. O Gama, que desejava a amizade do mouro, pretendendo aproveitá-la em seu serviço, não só acedeu ao que pedia como fez um dom de uma marlota, corais e outros vários engodos enviando-lho com expressões de paz e de amizade. O mouro, porém, desdenhando os donativos, pediu-lhe algumas peças de escarlata e, não levando as naus essa fazenda, com tal desculpa verdadeira o Gama respondeu.

Longe de retrair-se com a resposta fez-se o xeque anunciar. Entrou a nau em aprestos de aformoseamento — pôs-se a maruja em faina lavando o convés, brunindo os metais, reparando avarias mais visíveis — escachoava a água dos gamotes, cosiam-se rasgões das velas, calafetavam-se frinchas, breavam-se cabos, substituíam-se roldanas.

Tapetes forraram as taboas salitradas, toldos, de vários matizes, esticaram-se, bandeiras e galhardetes foram subindo às driças e, para maior ostentação de garbo e força, fez o Gama mudar-se para os demais navios a gente fraca e doentia, escolhendo entre os homens os mais válidos aos quais distribuiu vistosas roupas.

Já rebrilhava a nau garrida quando estrondaram no mar as músicas dos negros. Estavam as águas coalhadas de pirogas, porque todos queriam contemplar esse espetáculo, e uma frota de almadias vinha suavemente deslizando em direção a capitania. O fausto com que vinham enriquecidas era próprio de um príncipe; a comitiva era grande e bem-disposta e de pé, com os seus turbantes afogupados, trombeteiros sopravam clangorosamente.

Desembarcando o xeque amparou-o o Gama fazendo-o passar por entre duas alas de homens de armas que formavam na tolda. Vestia o mouro soberbo uma cabaia de algodão finíssimo e, sobre ela, outra de precioso veludo levantino, a fota, entressachada de fios de ouro, fulgurava, um terçado à cinta cravejado de pedras e nos pés abarcas de veludo e ouro.

Sem dar mostras de espanto, como se tudo quanto visse já lhe fosse comum, seguiu para a mesa na qual fora servida uma colação profusa e, tanto se regalaram que o xerife dela saiu cambaleando, com os olhos amortecidos, a baba em fio pela boca de onde escapavam grugulho desconexos.

Ali se entretiveram o Gama e o xeque perguntando o mouro de onde vinham e, respondendo-lhe o navegador com a verdade, ajuntou que iam de caminho à Índia. Para engrandecer seu Rei disse que aquelas naus eram parte mesquinha de uma numerosa frota que largara de Lisboa perdendo-se a maior parte dos navios nas tormentas daqueles mares.

Falaram de mercadorias, dizendo o Gama que o precioso que trazia era nas outras naus. Houve, então, ensejo de chegarem aos pilotos e logo o xeque comprometeu-se a dá-los retirando-se, em seguida, com as mesmas mostras de amizade ao tempo em que soavam as trombetas e as charamelas, e as flautas e as buzinas dos bárbaros respondiam.

Vindo a bordo os dois pilotos logo o Gama lhes deu trinta meticais e, a cada um à sua marlota, dispondo-se que, se um saísse a terra outro ficasse a bordo que era o meio de haverem sempre um de refém. Noite e dia rondavam as naus pirogas com indígenas que olhavam o movimento da maruja; em terra parecia haver absoluta calma, disso mesmo desconfiava o Gama e para não se comprometer em luta desigual, quis logo fazer-se ao mar, ordenando, porém, antes de levarem, que saísse uma partida de homens em dois batéis armados para fazer provisão de água. Iam seguindo quando contra eles partiram muitos zambucos com mouros que bramavam despedindo flechas e brandindo machadas e azagaias. Responderam os dos batéis com as suas bombardas e os besteiros fizeram claros na horda dos bandidos. Dali, tristonhos, se partiram indo fundear diante de uma ilha que ficou chamada de S. Jorge onde o Gama mandou erigir um altar celebrando um dos clérigos da frota e muitos homens confessaram-se e comungaram voltando, com mais alivio, às naus que logo desataram as velas.

Ia a bordo um dos pilotos mouros porque o outro ficara em terra homiziado e, com esse, navegando ou demorando em abafadas e mortas calmarias, depois de muito andarem, viram os nautas, com surpresa, que se achavam a quatro ou cinco léguas abaixo de Moçambique.

Para esperar os ventos que ajudassem a vencer as rápidas correntes que tanto faziam desandar as naus resolveu o Gama surgir diante da mesma ilha de S. Jorge. Ali, firmados sobre as âncoras, receberam do xeque de Moçambique, como embaixador, um mouro branco que era xerife propondo fazer a aliança e outro mouro, com um filho, guindou-se a nau pedindo que o levassem porque era dos arredores de Meca e chegara a Moçambique como piloto de uma fusta.

Com esses sucessos os dias se passaram resolvendo o Gama entrar em Moçambique chegarem aos pilotos e logo o xeque comprometeu-se a dá-los retirando-se, em seguida, com as mesmas mostras de amizade ao tempo em que soavam as trombetas e as charamelas, e as flautas e as buzinas dos bárbaros respondiam.

Vindo a bordo os dois pilotos, logo o Gama lhes deu trinta miticais e, a cada um à sua marlota, dispondo-se que, se um saísse a terra outro ficasse a bordo que era o meio de haverem sempre um de refém. Noite e dia rondavam as naus pirogas com indígenas que olhavam o movimento da maruja; em terra parecia haver absoluta calma, disso mesmo desconfiava o Gama e, para não se comprometer em luta desigual, quis logo fazer-se ao mar, ordenando, porém, antes de levarem, que saísse uma partida de homens em dois batéis armados para fazer provisão de água. Iam seguindo quando contra eles partiram muitos zambucos com mouros que bramavam despedindo flechas e brandindo machadas e azagaias. Responderam os dos batéis com as suas bombardas e os besteiros fizeram claros na horda dos bandidos. D’ali, tristonhos, se partiram indo fundear diante de uma ilha que ficou chamada de S. Jorge onde o Gama mandou erigir um altar celebrando um dos clérigos da frota e muitos homens confessaram-se e comungaram voltando, com mais alívio, às naus que logo desataram as velas.

Ia a bordo um dos pilotos mouros porque o outro ficara em terra homiziado e, com esse, navegando ou demorando em abafadas e mortas calmarias, depois de muito andarem, viram os nautas, com surpresa, que se achavam a quatro ou, cinco léguas abaixo de Moçambique.

Para esperar os ventos que ajudassem a vencer as rápidas correntes que tanto faziam desandar as naus resolveu o Gama surgir diante da mesma ilha de S. Jorge. Ali, firmados sobre as âncoras, receberam do xeque de Moçambique, como embaixador, um mouro branco que era xerife propondo fazer a aliança e outro mouro, com um filho, guindou-se a nau pedindo que o levassem porque era dos arredores de Meca e chegara a Moçambique como piloto de uma fusta.

Com esses sucessos os dias se passaram resolvendo o Gama entrar em Moçambique para prover-se de água que ia escasseando. Feita a manobra, à meia-noite, estando em silêncio e deserto o porto, arriaram-se batéis indo neles o Gama e Nicolao Coelho e o piloto mouro, entre gente de guerra.

Em terra andaram perdidos, embrenhando-se nas matas sem descobrir aguada e, como suspeitavam do piloto que era o mais atordoado posto que houvesse dito conhecer o sítio onde a encontrariam, apertavam a mais e mais a vigilância.

Na tarde do dia seguinte foram de novo a terra achando o que buscavam sendo, porém, forçados a repelir o indígena que dava mostras de hostilidade como se os quisesse privar do que tanto careciam. Andavam eles nesse empenho quando um grumete negro que levavam, vendo-se em terra mais simpática ao seu gênio, desviou-se escapando-se.

Ainda tornaram a terra querendo responder, como convinha, as abafas de um mouro que lhes dissera que na aguada eram esperados como convinha. Lá chegando, viram uma paliçada forte trançada com chamiça por trás da qual a mourisma se escondia despedindo frechas e pedras que lhes saíam das fundas com soído agudo; mas foram tais os destroços que fizeram as bestas e as bombardas que, em pouco, estava a praça livre e os inimigos, de longe, bramiam e ameaçavam.

Voltando a bordo ainda fizeram presa — tomaram uma almadia do xerife que ia abarrotada de panos e outra onde seguiam quatro negros. Apercebidos para o mar de novo fizeram-se ao largo fundeando diante dos ilhéus de S. Jorge de onde partiram, três dias depois, com ventos brandos.

Sucedendo avistarem umas ilhas e havendo o piloto mouro, com perfídia, afirmado que era boa terra, para lá velejaram achando-se em presença de áridos desterros e tanto se acendeu o capitão-mor em fúria que, fazendo descer o mentiroso, ali lhe foram as roupas arrancadas e, com calabretes, dois homens açoitaram-no.

Aos seus gritos lancinantes respondiam os da frota com apupos e, para memória desse exemplo, deixou o capitão ao triste paramo o nome de ilha do Açoutado.

Recolhido o mouro, a gemer, com o lombo retalhado, fez-se sorumbático, negando-se a responder aos da companha que o picavam com remoques.

À vista de duas ilhas cercadas de baixios, onde o mar espumava, arrebentando, foi de novo o mouro interrogado dizendo, então, com desfaçada calma, que já iam longe de Quiloa, terra que era de cristãos e farta. Com essa notícia assanhou-se tanto o Gama que esteve para submeter ao suplício o traiçoeiro e, se os ventos e as correntes não se houvessem tão obstinadamente oposto, teriam as naus retrocedido ao porto mencionado.

Foi resolvido que surgissem diante da ilha de Mombaça que o piloto perversamente afirmava ser em parte habitada de cristãos. Levada por ele encaminhou-se a frota a uns baixos, duas léguas distantes da terra firme, por acaso ou por maldade vingativa do piloto. Quis Deus, porém, que não sofressem maior dano os que andavam com o cruzeiro de Jesus nas velas e o seu nome nos corações. Foi a nau S. Rafael, de Paulo da Gama, que se encravou, rangendo, nos baixos perigosos, detendo-se as mais ao longe, mas, com o favor da maré e dos ventos que tufaram as velas despegou-se a quilha safando-se o navio com grande alegria de todos. Aos recifes foi dado o nome de S. Rafael e também a umas serras que avultavam na costa, muito embrenhadas e altivas. Foi a 7 de abril que chegaram à vista da ilha de Mombaça onde jazia a cidade do mesmo nome que era uma aljama, sem nada de cristã.

Certo de que havia naquela terra cristandade, para entrar mais garboso mandou Gama empavesar as naus e a maruja, com alvoroço, acudia às amuradas, agarrava-se às enxarcias, marinhando pelos mastros trepava às vergas para estender a vista olhando a cidade que aparecia com aspecto mais vistoso do que as cabildas nas quais apenas colmados avultavam, entre palmeiras e árvores de fronde basta.

Ali o casario alvejava ao sol e as mesmas ervas como que recebiam trato, e havia, à maneira de eidos, terrenos defendidos e forrados de relva muito verde sobre a qual cresciam arbustos em flor e árvores de sombra e frutos. Ainda as amarras rangiam descendo à areia as ancoras e já pelas praias, lisas e brancas, onde pequenos nus patinhavam folgando, surgiam mouros nos seus trajos de linho raiado, com turbantes e adagas nas cinturas, axorcas de ouro nos braços e nos tornozelos, olhando e formando grupos. E, como os seguiam nos movimentos que operavam, viram os da nau largar da terra uma zabra cheia de homens, todos de muito corpo, com terçados e, alcançando a nau, foram-se a ela querendo todos subir ao mesmo tempo, mas o capitão apenas permitiu que entrassem quatro dos principais ficando os outros a murmurar lançando olhares de despeito aos marinheiros.

O regulo, sabendo que ali chegara a frota, logo se pôs em plano astuto de apoderar-se dela trucidando ou prendendo os portugueses e, para ter entrada a bordo, fez chegar ao capitão um regalo de frutas e o seu anel, assegurando que ali teriam tudo quanto lhes fosse necessário desde que se aproximassem do porto.

O Gama respondeu com gentileza que, na manhã seguinte, levaria as naus para mais perto e despachou o embaixador com um ramo de coral, e, em significação de paz e de amizade, mandou com ele dois dos degradados para que vissem a terra e se nela havia cristãos.

Desde o porto, com a sua água banzeira e sórdida, sobre a qual boiavam carniças e folhagens podres, ao terreno enlameado onde ferviam moscas, foram os degradados olhando a terra que tão formosa lhes parecera na distância do mar, ao vivo esplendor do sol, entre a verdura viçosa do arvoredo.

Pelas vielas tortuosas, atravancadas de cães, apertava-se o casario acaçapado, com uma entrada baixa, profunda e sombria, entre grossos muros manchados de humidade tresuante. Mouros iam e vinham, uns quase nus, miseráveis, descalços, de uma cor fula, doentia, outros com albornozes listrados, com alparcas nos pés, com armas a luzirem na cinta e todos paravam para os ver passar e ficavam voltados gesticulando e falando; as mesmas mulheres, com os seus gomes de barro a cabeça, detinham-se curiosas.

Numa grande praça toda plantada de árvores havia um ajuntamento como de feira e bois imensos, de cornos negros, deitados na terra fofa e calcinada ruminavam mansamente. Era, sem dúvida, um mercado e atroavam pregões e vozerio e gritos e, de longe em longe, através da algaravia, uma voz de animal subia longa, triste e profunda. Crianças rebolcavam-se na erva entanguida, outras, em tremedais, empastadas de lama, riam e saltavam jocundamente e, para um canto, na sombra, um camelo do deserto, deitado, as pernas sob o corpo, os olhos semicerrados, remoía um feixe de ervas tenras e um negro, junto dele, sentado sobre os calcanhares, batia com uma vareta na corda tensa de um arco, gemendo uma cantiga.

Em uma das estreitas vielas detiveram-se, com o embaixador, diante de uma casa atarracada, muito branca, com dois degraus de pedra à entrada. Introduzidos, atravessando uma angústia passagem lôbrega, deram numa sala que abria sobre um pátio, com muita luz e muito aroma, onde cantavam pássaros e uma cabra, presa, berrava de instante a instante.

Ali dois mouros acobreados tomaram-nos com muita alegria levando-os a um recanto forrado de panos raros onde viram um retábulo com o Espírito Santo, várias cruzes e rosários que os da casa veneravam.

Depois de haverem feito sua reza, saíram com os mouros à sala onde lhes foi servido um refresco de várias frutas, regalando-se todos como num ágape enquanto fora, no pátio, a grande luz, a passarada contente concertava.

Despedindo-se, dali se foram agradavelmente impressionados ao palácio do xeque que ficava num largo desafogado e de grande asseio com muitas palmeiras e moutas em flor. Ao fundo de um horto de árvores copadas, com uma fonte que cantava num bosquezinho recatado, crescia a residência real.

Subindo os degraus que eram seis, de pedra negra e luzente, foram, por cima de tapetes, a primeira porta onde se achava um negro espadaúdo, de ferocíssima presença, com um saio amarelo e uma fota vermelha, firme como uma figura de pedra, com o terçado nu entre os braços cruzados e, como esse, três outros encontraram guardando outras tantas entradas até que chegaram à sala régia, toda branca, de muita luz, com o ambiente cheirando a resinas que as caçoulas defumavam.

Sobre almofadas de matizes variegados havia mouros reclinados e mulheres, com as cabeças cheias de moedas, como besantes, os braços cingidos por armilas e grandes pingentes de cobre nas orelhas, tão moles e entorpecidas, movendo com vagar os braços, que pareciam ali estar pedindo amores.

O xeque, em grande fausto, cercado de uma turma de guerreiros negros, com o xerife ao lado, esperava em fofos coxins, com a altiva majestade de um príncipe cristão e vendo-os sorriu bondosamente indicando-lhes, com um gesto lento, como se lhe pesassem os anéis que lhe enchiam os dedos, dois assentos macios onde repousassem.

Já ali havia, sobre uma mesa de magníficos entalhes, várias amostras de especiarias e ouro e prata e cera e alambre e, dizendo o xeque, que de tudo aquilo havia abundância em Mombaça e que, a preço mínimo, daria, fez entrega aos dois homens servindo-lhes, depois, alimentos que rescendiam e frutas de sumo doce.

Tornando a bordo ajuntaram-se os marujos apertando os dois homens com perguntas, eles, porém, que levavam uma comissão, foram direito ao Gama e, marrando-lhe o que haviam visto, entregaram-lhe as amostras que levavam repetindo as palavras do soberano negro.

Vendo o Gama as especiarias que eram, a bem dizer, a causa da sua saída aos grandes mares, não pode disfarçar o seu contentamento e ouvindo em conselho os capitães, porque os mouros continuavam a demonstrar amizade, resolveu fundear mais próximo do porto.

Saindo à frente a nau S. Gabriel, numa volta de mar, foi sobre um baixo adernando o que, percebendo os dos mais navios puderam, colhendo as velas com tempo, sustar outros desastres e as âncoras, de novo, unharam a areia.

Mouros, que se achavam dentro da S. Gabriel, ouvindo os constantes brados da maruja que corria azafamada e aflita para salvar o barco, julgaram que lhes haviam descoberto a perfídia e, com tal ideia, precipitaram-se na água fugindo a bom nadar em direção à terra. Em grande cólera, aos berros, transfigurado de ódio mandou o capitão-mor que pingassem dois outros que não haviam podido acompanhar os fugitivos e foram os traidores agarrados e, desnudando-se-lhes os ventres com pez fervente foram pingando as gotas sobre as carnes que chiavam; retorcendo-se, aos brados, confessaram a traição e que os pilotos que lhes dera o xeque iam peitados para atirar as naus sobre baixios. Um terceiro ia ainda ser submetido ao suplício, mas, já de mãos atadas, arrojou-se temerariamente ao mar e o piloto que levavam de Moçambique com tamanho azedume do navegador e recoso da sua ira, ao luzir da manhã, achando a gente distraída, pôs-se a nado.

Não era o Gama de coração sensível e, se continha os seus impulsos violentos, era que tinha em mais conta o êxito da empresa do que a vingança mas, em se lhe encrespando a raiva, nada o detinha e castigava e torturava com a crueldade cega do seu ódio.

Os mouros, certos de que não ganhariam as naus com a astúcia, resolveram perdê-las com a audácia e, à noite, nas suas zabras ligeiras, remando surdamente, coseram-se com o costado dos navios e uns palmeando, outros subindo às abotocaduras, preparavam o assalto enquanto outros, à frente, iam, sem ruído, picando as amarras para que as naus, garrando, fossem sobre os baixios e neles ficassem à mercê do xeque. Descobertos com tempo, e alarmada a companha, fugiram desabaladamente tornando, porém, em à noite seguinte sem, todavia atracarem por haver maior cuidado e redobrada vigilância a bordo.

Ainda demorou-se a frota nesse porto tão salteado de insídias porque o Gama não perdia a esperança de encontrar piloto que o guiasse ao desejado termo mas, ao fim de dois dias, safaram-se os navios fazendo-se ao mar roleiro onde, entretanto, andavam as vidas mais seguras.

Iam longe de Mombaça quando avistaram um zambuco no qual viajavam vários homens e uma jovem mulher que era de um ouro, o principal do bando. Do que traziam em mantimentos fez presa o capitão-mor e interrogando os homens sobre se conheciam o caminho que demandava todos negaram dizendo, entretanto, que, pouco além, à beira do mar, jazia uma cidade, Melinde de nome, governada por um rei muito humano, onde o Gama poderia achar o que buscava, ajuntando — que naquele porto estavam fundeados três ou quatro navios de cristãos.

Melhor seria ao Gama haver achado em um daqueles homens o piloto de que tanto carecia para a navegação naqueles mares que jamais haviam sido cavados pelas proas europeias, melhor seria que pudesse fazer rumo direto, porque, tão más eram as impressões que da gente negra lhe ficaram durante o comércio que com ela tivera no seu curso que, de vê-la, já se lhe arreliava o coração e o ânimo abrasava-se, mas, acima de tudo, estava a sua empresa, e, pensando na índia e na glória de avistá-la, resolutamente governou para Melinde.

MELINDE

II

Com jogos, danças e outras alegrias,

A segundo a policia Melindana,

Com usadas e ledas pescarias,

Com que a Lageia Antonio alegra e engana,

Este famoso Rei todos os dias,

Festeja a companhia Lusitana,

Com banquetes, manjares desusados,

Com frutas, aves, carnes e pescados.

(CAMÕES — Os Lusíadas, Canto VI.)

Do indeciso lusco-fusco — quase extintas as ardentias, com as estrelas morrendo no céu que se arreava de purpura e de ouro, num esplendor de vitória, como se pela Altura límpida anjos andassem estendendo brocados para a festa magnífica da Ressurreição — rompia a manhã de Páscoa.

As águas, apenas frisadas por uma brisa fraca, brilhavam trêmulas como se fossem recobertas de pequeninas escamas reluzentes e as naus, com bandeiras e flâmulas, seguiam a um brando balouço ao tempo em que a maruja, celebrando a memorável data, tão gloriosa para a cristandade, acordava o silêncio com trombetas e charamelas nas quais tocava a alvorada excelsa.

Chegavam-se todos às bordas porque os mouros, aprisionados no zambuco, haviam anunciado Melinde; olhavam longamente, ansiosamente quando uma claridade irradiante alastrou pelas águas envolvendo as naus em um fluido de púrpura, tingindo as velas e os cabos de um louro avermelhado: era o sol que nascia grande e rubro, surgindo da água como um deus oceânico que irrompesse, todo em galas tírias, seguindo sobre ouro e coral e pérolas esparsas.

Mas já, ao longe, o arvoredo aparecia como uma flora marinha que houvesse repentinamente surgido à tona da água e brancos muros por entre árvores e outeiros de um verde alegre e estendidas praias alvas. Mostravam-se, com o andar das naus, mais largas e pitorescas, as terras do novo reino.

Pássaros voavam no ar sereno e macio, alguns pousavam nas vergas e ficavam debicando as penas e, como a água era transparente, viam-se os peixes nadando em volta das naus, em cardumes de prata. De nau a nau, indo elas próximas, os marujos exclamavam: “Oh! que beleza!” Como se reciprocamente se felicitassem.

O Gama, no seu posto, olhava indiferente a luz sem ver as belezas daquele remansado porto, de águas tão limpas e fáceis e de tanta alegria na terra e no céu; o seu pensamento seguia por aquelas areias rasas, não que as desejasse, mas porque nelas suspeitava encontrar o homem que o devia conduzir a extrema do Levante. Talvez em terra, entre o arvoredo basto, esse desejado amigo estivesse contemplando as naus que deram fundo a meia légua da costa; talvez os olhares se encontrassem e o Gama, descuidoso de tudo que o cercava, com a aflição de ver esse misterioso guia, aguçava as pupilas que apenas apanhavam a vasta paisagem da África dourada pelo sol nascente.

Meditava quando o mouro principal dos que vinham no zambuco subido ao Castelo pedindo para falar-lhe: recebeu-o cortesmente e, propôs-lhe o prisioneiro, que tivera, em viagem, todas as atenções, ir-se a terra com uma embaixada para o rei de Melinde, garantindo que ele os havia de receber com lhaneza.

Aceitou o Gama mandando imediatamente arriar um batel que levou uma guarnição de escolha e, forrando-lhe o paneiro lustrosamente, acompanhou a escada o velho mouro que se foi, a largas remadas, sempre a acenar para os de bordo como a garantir o bom êxito da comissão de que se encarregara e, como em a nau ficara a moça, está falava-lhe, sem dúvida a pedir que fosse breve para resgatá-la porque já ,se afligia de andar como cativa posto que tivesse trato de princesa, e os mouros agitavam os seus turbantes ou os lenços de cores vivas que traziam até que o barco ficou como um vulto negro no mar.

Mas, ao pino do sol, quando as toldas estalavam a luz cáustica, viramos da nau que uma almadia os demandava e, atracando, logo desembarcaram, com gravidade, dois homens, postos com muita riqueza sendo um deles magnata da corte melindana e outro o caciz da mesquita e, recebidos com todas as deferências, com muita galhardia deram conta da embaixada que traziam, principiando por entregarem ao Gama, como prova de aliança, o régio anel que do soberano levavam, assegurando boa hospedagem em terra com as honras que merecia.

E, como terminassem a fala, dois negros, com marlotas e barretes de seda, à cinta adagas curvas, subiram com presentes de frutas e, pondo-se de joelhos, ofereceram ao Gama, com um gesto tão cortês e tão gracioso que o seco navegador sorriu agradecendo.

Em resposta disse o capitão quem era e porque andava por aqueles mares, entre tormentas, traições, sirtes e marraxos, enaltecendo subidamente o poderio do seu Rei e a grandeza da sua Pátria, rica e forte. E, em troca dos presentes que recebera, outros mandou a terra pelos embaixadores constando de várias peças de vestuário, alambéis e ramos de coral.

No dia seguinte, ao luzir dalva, largaram os navios de onde estavam para que mais próximos ficassem do porto e ali mandou o rei nova embaixada a bordo, com presentes e instâncias para que desembarcassem indo os nautas repousar em terra, mas o Gama, advertido pela experiência que tinha das demonstrações falazes de amizade que lhe haviam dado os outros régulos, negou-se, desconfiado, dizendo que trazia do seu Rei proibição expressa de deixar o seu posto em os navios em outro porto que não aquele que ia procurando, e, se contrariamente procedesse, falhando a disciplina, abriria um perigoso precedente a gente que comandava.

Resolveu então que, saindo o rei em um dos seus barcos, sairia ele em outro encontrando-se sobre as águas. No dia ajustado para a entrevista, desde cedo, começou a gente a mover-se na praia com alvoroço: cavaleiros, com os mantos ao vento, traziam os seus ginetes caracolando; ao fulgor do sol áscuas cintilavam nos ferros das lanças e os muros brancos das casas refulgiam destacando-se vivamente, em largas manchas, entre os pomares cerrados; altas, esguias, com os seus penachos verdes, perdiam-se ao longe as colunadas das palmeiras.

O Gama, querendo mostrar-se com esplendor, mandou adornar o seu batel forrando-o de estofos; um brocado, com precioso cadilho de ouro, alastrava o paneiro protegido por um toldo de seda com franjas e, sob o toldo, num assento de finos embutidos e marchetes de ouro e coral ia ele, entre os seus oficiais, vestidos com louçania; os mesmos remeiros ostentavam os seus trajos a primor e tanto era o fausto que os estropos que prendiam os remos aos toletes eram de fina seda e, por ostentoso luxo, as abas dos forros, rolando das bordas do batel, iam roçando na água —e, com a bandeira real desfraldada à popa e galhardetes nas driças foi-se o batel afastando com o estridor das trombetas que os de bordo assopravam alegremente.

Já de terra partira o monarca melindano numa almadia de graciosa forma e ornada custosamente. Vestia o rei uma ampla cabaia de damasco forrada de cetim verde e a cabeça trazia a fota de seda com torsais de ouro e arrecadas de pérolas que com o fino estofo se embrechavam.

O peito, como se do peso se sentisse, arfava sob um colar ou tosão cravejado de pedras preciosas e, tão longo era que, dando duas voltas folgadas ao pescoço, lhe descia a altura da cinta; os dedos pareciam ser de ouro e de gemas tantos eram os anéis que por eles se enroscavam.

Reclinado sobre moles e amplos coxins de seda ficava a sombra de um flabelo carmesim, cuja haste tauxiada um negro sustentava. De pé, com as brancas barbas soltas destacando-se da tez abaçanada do seu rosto onde os olhos brilhavam, um velho aio, de aspecto venerando, sustentava-lhe o alfanje, resguardado numa bainha de prata e, a proa, dois alentados mouros embocando buzinas altas, de marfim, sopravam para o mar forte e sonorosamente, outros tocavam anafes e, como guardas reais, fidalgos apertavam um círculo deslumbrante em torno do soberano.

Alcançando o batel do Gama onde a equipagem mantinha os remos arvorados passou-se para ele o rei e, tais demonstrações ali trocaram os dois que mais pareciam amigos que se reviam depois de longo apartamento que dois homens que se encontravam pela primeira vez.

Como para conservar o nome grato e amigo do Rei de Portugal pediu ao Gama que lho desse escrito e, depois, ainda instou com ele para que fosse a terra onde teria aceitoso descanso e regalo pitoresco naqueles eidos que mandavam, de tão longe, o seu perfume ao mar, na brisa.

Para dar maior prova de amizade ordenou o Gama que fossem soltos os mouros que havia aprisionado no zambuco e a linda moça, com a ordem, como que se refazendo na liberdade da tristeza em que a trazia a vida que levava a bordo, ainda mais formosa apareceu nas suas vestes fofas, com o donaire próprio das mulheres da sua raça.

Formada a paz foi-se o rei a sua almadia e os remeiros conduziram-no para mais perto das naus. Logo os bombardeiros acudiram com as mechas e os ares atroavam com os estampidos festivos que enchiam de assombro e medo a gente de Melinde. O rei, entanto, alegrava-se com aquele ruído que se ia repetindo de eco em eco pelo mar e pela terra e, como falasse ao Gama, gabando as tremendas armas, teve o capitão ensejo de exaltar ainda mais o poderio do seu rei dizendo que eram tantas as naus que velejavam com as armas reais que, todas juntas, assoalhariam aquele mar que por ali fora se estendia mas, forte e aguerrido como era, o orgulho não cabia no seu generoso peito tanto que não negava o seu auxílio, antes com ele acudia solicito, aos que, em urgência de guerra, sendo seus aliados, dele careciam.

Despedindo-se com os mesmos sinais com que se haviam encontrado tornou o rei a terra voltando o Gama a nau; mas, diariamente pangaios procuravam-no com recados e dádivas do rei.

Para não parecer indiferente ou soberbo negando-se às reiteradas mensagens do mouro que lhe pedia fosse a terra ou mandasse algum dos seus para que recebesse agasalho e regalo nos seus paços, firme no propósito de não arriscar-se, saio o Gama com Nicolao Coelho em um batel armado e, lentamente, por um mar chão, foram seguindo ao longo da cidade.

Tão perto ia o batel da praia que, os de bordo, distinguiam as feições dos que por ali andavam, uns a pé, outros em camelos ou a cavalo galopando pela areia. As casas, altas e brancas, abertas em muitas janelas tinham, para protegê-las contra o sol ardente daquelas zonas, copadas árvores sempre verdes e, por entre as finas ervas, num fio cintilante, derivava um arroio que, depois de muitas voltas graciosas, por eidos e hortas, despejava-se no mar.

Vastos campos de milho lourejavam e latadas formavam toldos diante das casas silenciosas; para o fundo, nos cerros, choças trepavam e, como se ali vivesse um povo de pastores, rebanhos espalhavam-se pelas vertentes iluminadas.

Por todos os lados encontravam os olhos filas de palmeiras com as suas franças juntas como que formando um viaduto de bronze sobre altíssimas colunas de granito. Como passasse o batel defronte de um edifício branco, de proporções monumentais, com um terraço de pedra lavrada onde uma multidão apinhava-se parecendo de nobres e de gente de guerra, viram os portugueses negros buzinadores com as suas altas e roucas trombetas de marfim, outros com atabales, outros com sistros e anafes rompendo dos instrumentos tão formidável concerto que fez abalar uma nuvem de pássaros na direção longínqua das montanhas.

Mas, dentre as grossas árvores que espalhavam uma sombra larga sobre o saibro da alameda, irromperam cavaleiros com albornozes soltos, acometendo-se, com sarilho de lanças e vozeiro de guerra. Os ginetes saltavam, caracolavam, nitriam, iam aos recuões com as caudas de um longo e fino sedenho varrendo a terra ou avançavam em escaramuça e os seus donos, contendo-os, faziam com que estacassem subitamente, quase tocando o solo com as ancas, ficando eles firmes nas selas com as lanças altas e as adargas jogadas ao flanco dos animais que remordiam os freios espumando.

Foram-se, porém, as alas apartando e estrondosamente, longamente, a fanfarra vibrou; voltearam nos ares, arremessadas, as lanças dos cavaleiros, mas tanto que as apanharam na corrida, e tão certos no movimento que nem uma só ficou sem o seu dono, partiram com grita horrível perdendo-se entre as altas árvores e logo os do batel viram aparecer no terraço o rei melindano.

Não vinha a pé, mas num andor preciosamente recamado e os negros fortes que o conduziam, sem receio do mar, meteram-se por ele dentro apartando as águas com os seus largos peitos e, quando já pelos ombros ia-lhes dando o mar, alcançou o soberano o batel onde era grande a admiração dos homens por tão estranho quão formoso espetáculo. Em terra, sem pausa, reboavam as trombetas. Ali ainda apertou o rei com o navegante para que fosse a cidade dizendo que nela jazia seu pai entrevado que muito desejava vê-lo, comprometendo-se a deixar, em refém, um dos seus filhos e, se tanto não bastasse, ele mesmo ficaria; o Gama, porém, ficando sobre as razões que antes lhe dera, pode esquivar-se a visita.

Ainda estiveram longo tempo conversando e ouvindo o rumor das festas que em terra celebravam, porque a praia coalhara-se de povo e, de todas as partes, partiam clamores. Despedindo-se foi-se o rei levado pelos negros que andavam nas águas como se fossem o seu elemento e o batel fez-se vagarosamente ao largo acenando aos de terra e, quando viram os condutores do régio andor ganhar a praia enxuta os bombardeiros fizeram detonar os berços que levavam.

De volta às naus, passando junto ao ancoradouro das fustas dos índios cristãos, correram todos às amuradas, outros foram trepando pelos cabos e as suas grandes barbas e os seus compridos cabelos esvoaçavam dando-lhes uma original feição que os portugueses não podiam ver sem certo riso e, em sinal de festa, foram também às suas bombardas, que as tinham em canhoneiras, e despejaram vários tiros que foram correspondidos e, à maneira de saudação, firmando-se alguns nas abotocaduras, agarrados aos cabos, bradavam: Christe ! Christe!

À noite, havendo conseguido permissão do rei, os índios fizeram uma grande festa nos seus navios atirando com as bombardas e lançando foguetes tudo acompanhado de grande algazarra que isso, neles, era a mais expressiva demonstração de alegria. A noite convidava aquele divertimento porque, sendo o tempo de lua cheia, todo o mar rebrilhava como um vasto estendal de prata e, em terra, onde ardiam fogos, as casas, muito brancas, apareciam iluminadas; mesmo nos montes afastados como se, até lá, houvesse chegado a alegria, flamejavam fogueiras.

A maruja, com tão maravilhoso espetáculo, pôs-se em jucundo alvoroço a bordo bailando e cantando, mas, como sempre acontece, onde vai a alegria sempre a tristeza aparece.

Um triste, posto solitariamente no cesto de gávea, discordava daquela alacridade, e, tanto maior era o prazer dos companheiros quanto mais se lhe aumentava a melancolia aquele doce luar.

Iam-se-lhes os olhos arrasando e o coração batia aforçurado e só, na altura, balançado docemente, o marinheiro cantava baixinho uma canção triste e as lágrimas, uma a uma, pingavam dos seus olhos.

Os índios, ou porque fossem leais e verdadeiros ou porque, por intrigantes, quisessem indispor os das naus com os melindanos, deram-lhes aviso de que se não deixassem arrastar pelos rogos do mouro, antes pérfidos que amigos.

Isso ouvindo, porque já andavam suspeitosos, mais se acautelaram os portugueses posto que não houvesse, até então, motivo para que mal julgassem aquela gente. Mas, com essas vozes e outras atoardas e porque já ia ganhando enfaite com a pressa que tinha de se fazer ao mar no rumo que almejava vendo, num domingo, chegar-se a nau uma zabra com um valido do rei o Gama reteve-o prisioneiro mandando recado ao mouro: que só o entregaria quando ele lhe enviasse os pilotos que prometera.

Tanto que a terra chegou o portador de tão atrevida embaixada pôs-se o rei em movimento e, pouco depois, aparecia um cristão conhecedor dos mares que as naus deviam afrontar desbravando o caminho misterioso.

Vendo o Gama o piloto e querendo experimentá-lo mandou que viesse um astrolábio, o indiano, porém, a quem não era estranho esse instrumento, não só não fez espanto como ainda, calmamente, foi desdobrando uma carta dos mares que deviam percorrer descrevendo, com segurança, todo o golfo extenso e o que nele havia até as chamadas terras do Malabar.

Convencido da sua ciência e contente mas, não querendo partir sem deixar um sinal da sua demora naquele porto feliz e de tanta hospitalidade, obteve o Gama permissão do rei para implantar na terra um padrão que ficou chamado do Espírito Santo e, depois de nove dias de constantes festas, já cansado de ver escaramuças e trebelhos, ordenou que tivessem as velas prontas para o vento e ao roxo entardecer, com lua, foram-se as naus distanciando com os adeuses da terra e com o vozeiro dos índios que das suas fustas amigamente desejavam abonançados mares e propícios ventos. A maruja esteve debruçada até que de todo se perdeu no mar a hospitaleira e aprazível terra de Melinde, e, já em mar alto, ao luar, os clérigos entoaram a oração da noite, partindo, de todas as naus, no silêncio, o mesmo canto religioso.

A ÍNDIA

I

Já se viam chegados junto a terra,

Que desejada já de tantos fora,

Que entre as correntes Indicas se encerra,

E o Ganges, que no seu terreno móra.

Ora sus, gente forte, que na guerra

Quereis levar a palma vencedora,

Já sois chegados, já tendes diante

A terra de riquezas abundante.

(CAMÕES — Os Lusíadas; canto VII.)

Alongando-se as naus foi-se, a pouco e pouco, resumindo o movimento a bordo— apenas os homens de quarto caminhavam lentamente, de um para outro lado, detendo-se, por vezes, em extasiado silêncio, contemplando a lua. Estrelas cadentes, como se fossem presas por um fio luminoso, voavam e morriam, e, no rolar macio da onda, espalhavam-se micantes ardentias.

O grosso da companha repousava. Àquela hora, no castelo da popa, junto dos retábulos iluminados, dois homens conversavam baixinho como se receassem que a brisa lhes levasse as palavras e o assunto de que tratavam, com empenhado interesse, era essa índia absconsa. Um deles, que era o piloto indiano, dizia:

— Neste tempo de inverno raros são os navios que se arriscam a fazer a travessia, com os ventos antipáticos que fazem crescer o marouço. Os que se dão ao comércio da especiaria aguardam os meses do estio e, com as águas pacíficas, com os ventos de monção, facilmente vencem o grande golfo onde não há um porto a que se arribe em caso de tormenta.

O Gama, que era o interlocutor do índio, não respondeu estendendo a vista perscrutadora pelo céu e pelo mar, demorando-a depois num dos retábulos onde a meiga Senhora de Belém sorria com Jesus nos braços. Naquela oração muda o nauta pôs toda a sua grande fé e, reconfortado, certo de que, contra ele que ali ia protegido pela Rainha dos céus e Clara Estrela dos mares nada poderiam as ondas aborrascadas nem os ventos marulheiros, quedou-se enquanto o piloto, consultando os astros, ia traçando o rumo naquele mudo e vastíssimo páramo de céus e de águas.

E navegavam sem risco demorando-se, às vezes, em curtas calmarias, ouvindo o embate da vaga e o rangido monótono das vergas, com as velas colhidas, mas, ao primeiro sopro, desferravam-nas, e, aproveitando-o, seguiam scindindo aquele mar virgem que a maruja olhava supersticiosamente e com medo esperando, a todo o instante, uma surpresa fatal.

Foi para a tarde de um dia azul e frio que os ventos desabridos começaram a uivar com fúria — o mar, encarneirado, picava-se a mais e mais e uma nuvem, densa e negra, levantando-se no horizonte e enchendo-se foi assoalhando o espaço impelida violentamente pelo vendaval.

A maruja, com o coração minguado, corria à faina manobrando com a pressa que urgia, pois, o piloto anunciara tormenta. Já o Gama, como que revestindo uma armadura, retomara a sua severidade e os grumetes, lançando olhares tímidos ao alto, balbuciavam rezas procurando as suas nominas debaixo das grossas camisas, junto ao coração.

O céu escurecia como forrado de chumbo e o mar grosso, espumoso, ampolava-se rugindo. A nau de Paulo da Gama que ia à frente arfava e a proa, espadanando as águas que se opunham à sua marcha ligeira, subia e mergulhava; e a de Nicolao Coelho, abalroada pelos vagalhões, bailava como um batel ligeiro, sobre aquelas fortíssimas águas encrespadas.

Subitamente grossos pingos de chuva bateram no convés como balas, esparrimando-se. Corriam os homens às aberturas fechando escotilhas e canhoneiras, recolhiam as roupas que arejavam nas driças, cobriam a artilheira com as capas breadas e, os mais devotos, lembrando-se da primeira tormenta que haviam sofrido, cuidavam de segurar fortemente os retábulos para que o mar não os ultrajasse.

Longínquos e profundos trovões rolavam e, de espaço a espaço, o fogo do céu zebrava as nuvens com estrépito, perdendo-se no mar; o vento esfriava esfuziando e a chuva que caiu, a princípio, com a ameaça de um dilúvio, estiou como se as águas se fossem ajuntando para um assalto decisivo às naus que iam desabaladamente pelo oceano com a precipitação de perseguidas que fugissem.

Negro, não mais plúmbeo, o céu como que abaixava abafando e as nuvens pejadas passavam tão perto que, a um salto dos navios, o tope dos mastros parecia poder tocá-las.

Se o espetáculo era medonho maior era o pânico da maruja que nele não via um fenômeno da natureza, mas o anuncio de um assombro trágico no qual entrava, como protagonista, o mistério maligno.

Eram as falanges infernais que ali se iam encontrar num sinistro e pávido sabbat e, cada uma daquelas vagas orgulhosas, parecia rolar cavalgada por um tritão de horrível catadura e ódio inexorável; cada uma daquelas nuvens que lá por cima navegavam em breve, desventradas, despejariam legiões satânicas e todo o largo oceano, transformado num inferno que os relâmpagos já começavam a acender, atroava — Não era a voz profunda da vaga e do vento, eram o bramido bravio e os sibilantes guinchos das cohortes abrepticias, era o estrupido das patas dos capros nas águas, eram as cornadas dos basiliscos nos penedos, eram os estalos das alas êneas da ave Fênix, eram os uivos sensuais das sereias e mais o lancinante guaiar das almas penitentes que sofriam, desde tempos imemoriais, nos abismos, vindo à tona com as tempestades, acossadas pelos demos glaucos.

Alguns juravam ter entrevisto egípcias disformes esvoaçando acima dos mastros, outros ficavam com os dedos hirtos apontando o mar porque diziam ter avistado hórridas figuras, nadando, com os membrudos corpos híspidos de cerdas, com barbatanas em vez de braços, dentes enormes, recurvados e um olho único, redondo, enorme no meio da fronte, reluzindo como um fogaréu.

Alguns atribuíam ao piloto índio todos aqueles males julgando-o pactuado com o demônio para perdê-los a todos; outros afirmavam que era o próprio demônio que conseguira iludir o capitão metendo-se a bordo e persignavam-se quando o viam aparecer a luz lívida de um relâmpago no castelo da nau firme, os olhos ao longe; ao mesmo tempo, porém duvidavam desses pensamentos vendo-o tão sereno entre os retábulos de Deus e da Virgem.

Apesar do terror o Gama, com o seu império, conseguia manter a gente nos seus postos e o piloto governava a nau que se debatia aos encontrões dos escarcéus formidáveis. Já as vozes não eram atendidas, não por desobediência senão porque ninguém as ouvia e os mestres andavam de grupo em grupo ordenando — aqui para que ferrassem um resto de pano que ia solto batendo de encontro à verga, ali acudindo a um batel que se desprendera do seu aparelho despejando no mar a palamenta, mais adiante prendendo uma bombarda que se soltara do reparo e, indo e vindo, os homens em serviço estabeleciam a confusão encontrando-se aos esbarros, escorregando, caindo de encontro aos mastros.

Sempre firme, inabalável, afrontando o horror o Gama no seu posto de comando, ordenava, sem comover-se com aquele inspirado assalto em tão vasto e desprotegido golfo, tão forte era nele a certeza de que havia de alcançar a terra da índia a qual, para incitar o ardor nos que a buscavam, encarecia-se opondo borrascas e baixios como empeços para experimentar o ânimo dos que a deviam vencer e dominar.

Justamente como nas bailadas do tempo as lindas princesas encantadas que dormiam em selvas abscônditas, dentro de paços de cristal e de ouro com as aias dormindo em torno do seu leito e também adormecidos o arvoredo, os pássaros, os regatos, apenas vigilante o monstro que a guardava desconforme, com o corpo forrado de escamas de aço, os olhos fulminantes acendidos, as garras prontas, o arpéo da cauda agudo, os dentes afiados e ainda, para horror maior, respirando um hálito pútrido e de chamas que lhe saia roncando das fauces encardidas. O seu monstro ali estava — era o oceano.

Num momento, porém, estalando um raio que iluminou todo o mar os da nau, lançando os olhos em torno e não avistando os outros navios, julgaram-se perdidos. Houve um instante de assombro mudo, mas, um assomado, naquele desespero de morte, bradou: “Queremos voltar! ” e outro ajuntou, arrancando uma das malaguetas para armar-se: “Para Portugal”

“Para Portugal! ” Clamaram todos em revolta, mal se podendo ter firmes; ainda assim, aos solavancos, tomando cada qual o que lhe vinha ás mãos, foram avançando para o castelo.

O vento rompeu numa assuada, o mar cuspia-lhes a sua baba e, para que vissem bem o horror em que estavam, relâmpagos luziam. Eram, por certo, os demônios que ordenavam aquelas zombarias. “Para Portugal! ”

Uma das vergas estalou e fendida ficou pendurada pelos cabos batendo violentamente de encontro ao mastro; já a água rolava de um bordo a outro bordo e fragorosamente os vagalhões batiam no costado da nau.

“Para Portugal! Para Portugal! Queremos voltar! Este é o mar intransmontravel! Este é o mar assombrado... para o reino com a nau! Para o reino! Ao leme! ”

Quiseram os mestres contê-los com brandura, mas foram repelidos com violência e, porque neles o terror começava a sufocar a energia, foram na coda daquele bando infeliz de homens encharcados, feridos, descalços, com os cabelos e as barbas gotejantes, as vestes em retalhos, unidos numa solidariedade de desgraça. Iam ali os mestres prontos para se bandear para o vencedor: dizendo-se pacificadores se o capitão conseguisse suplantar os revoltosos ou aderindo à revolta se os homens não se submetessem; e a maruja avançava desequilibrada, rugindo. O Gama, porém, vendo o tumulto e como vários marinheiros mais audazes subiam ao castelo de gatinhas, cravando as unhas nos degraus úmidos da escada ou agarrando-se aos mainéis, impôs-se sobranceiro e, com um gesto altivo e dominador, repeli-os, fazendo descer aos trancos um que já ia com a mão ensanguentada nos últimos degraus, a faca atravessada nos dentes.

Baixando ao convés, pondo-se soberbamente entre eles, com os cabelos empastados, sob a chuva que jorrava impetuosa, a luz intermitente dos relâmpagos, mostrando aos rebeldes os montes de grilhetas e estendendo o braço, com a cabeça energicamente levantada, enquanto a borrasca estrondava, apontou o fundo tenebroso do horizonte, bradando:

— O rumo é este!

E, como no bando que se apertava um ainda ousasse dizer, não mais em tom altivo, mas humilde, a pedir: “Queremos voltar...” o Gama passou os olhos severos por todos e, sem dizer palavra, chegando-se a uma das bordas, agarrou as cartas que levava e os astrolábios e atirou-os ao mar que depressa os engulio alijando assim a esperança de uma vergonhosa volta, fechando a porta por onde se queriam escapar covardemente os tímidos, dando um único remédio àquela desventura — o seguirem por diante.

Vendo a maruja tamanha audácia abrandou-se animando-se — tal é o poder dos fortes sobre os fracos — e os mestres, com aquele rasgo, ganharam nova energia chamando a obediência os marinheiros; e tremendo, com os seus breves apertados nas mãos engelhadas de frio, as orações na boca, foram-se todos, cabisbaixos, ao serviço — uns gemendo com as dores dos esbarros que iam dando, outros com suspiros julgando que nunca mais tornariam a doce pátria. E o piloto índio, o olhar agudo ao longe, governava.

Já iam exaustos os marinheiros, e no desespero, pediam a Deus que acabasse de uma vez com aquele sofrimento porque já não esperavam salvação —posto que outras maiores tormentas houvessem já sofrido — quando um grumete descobriu, no negrume do céu, entre os cerrados nimbus, uma estrelinha palpitando.

Foi tal o alvoroço a bordo que os mestres, ignorando a causa daqueles amotinados movimentos, como em presença de outra revolta mais bravia, procuraram na cinta os seus cutelos, não porque pensassem em manter a disciplina, mas querendo garantir a própria vida. A maruja, porém, apinhada a proa, olhava ao longe, acenando a clara estrela e os mais crentes viam nela a própria luz de Maria, protetora dos navegantes.

E, com o rugir dos ventos que ainda sopravam, os da companha, ajoelhados no convés lutulento, entoaram um cântico de misericórdia agradecendo a Deus aquele signo de bonança que fulgurava no céu.

E as nuvens foram, a pouco e pouco dissipando-se, rasgões apareciam estrelados e um triste e pálido luar iluminou o oceano revolto como um farol celeste que anunciasse o porto venturoso.

A manhã foi de sol posto que ainda grossas vagas rolassem e longe, montando os vagalhões, foram vistas as outras naus rompendo de todos os peitos um grito de vitória.

Os marinheiros, vendo o capitão impassível e tão sereno na bonança como o fora na tormenta, sentiram-se humilhados e, querendo mostrar-se arrependidos, redobraram de esforço esgotando a nau e acudindo aos concertos e reparos mais urgentes.

Vinte e dois dias depois de haverem deixado o porto de Melinde, flagelados por tamanha borrasca, avistaram no mar, correndo a vela um junco, mas, por mais que andassem com o úmido e frio vento anunciador de aguaceiros, não conseguiram alcançá-lo.

À tarde, já com chuva forte, viram uma grande albetoça passando ao largo, muito enfunada, com a sua coberta de palha.

Eram indícios de terra porque barcos daquele porte, por mais ousados que fossem os da tripulação, não afrontariam o mar largo com tempo tão adverso, o piloto ia calado no seu posto e, ainda que com insistência aguda os marinheiros buscassem ler na sua fisionomia nada tiravam da imobilidade daquele rosto.

Na manhã seguinte, chovendo copiosamente, com trovões ribombantes, acharam-se à vista de umas terras altas que o gajeiro anunciou três vezes com alegria desusada e mais não mostraria pondo os olhos na mesma terra da Pátria, mas, como a tarde vinha caindo, não quis o capitão levar a nau por mar incerto, com a noite. Mas já avistavam lorcas, manchuas e jurupangos navegando com aqueles chuveiros que os ventos açoutavam.

No dia seguinte, cedo, chegando-se a terra, viram bem perto uma montanha e o piloto, que guardara o maior silêncio, moveu-se no castelo da nau pondo-se junto ao Gama e os dois ficaram de olhos fitos naquelas altitudes tão viçosamente arborizadas vendo aparecer, pouco a pouco, do seio verde do mar, uma grande cidade toda cercada de palmeiras, com um alvo casario alegre espalhado pela praia e pelos montes. Vinha a todo o vento um champanha e, como passasse junto da nau o piloto entendeu-se com um dos homens fazendo-lhe uma pergunta e o do barco respondeu afirmativamente. Estavam diante de Calecut: era a índia.

Quando a maruja teve a feliz notícia prorrompeu em festivos clamores saudando ó capitão temerário; e a nau empavesou-se vistosamente, ressoaram os instrumentos e, de todas as naus que se vinham chegando a capitania, desmanteladas, com os costados mostrando as feridas ganhas na tormenta, partia o mesmo brado triunfal: — “É a índia! É a índia! ”

Aves passavam nos ares e fugiam aturdidas com os estrondos das bombardas e, como andassem lantéas de pesca cruzando junto dos vasos, os de bordo saudavam festivamente os pescadores falando-lhes como se os índios espantados pudessem perceber o que diziam.

Mas, através da celeuma, soaram lentas badaladas; os clérigos apareceram revestidos dos seus hábitos, com a imagem do Cristo e o Gama, que até então parecera esquecido do seu Deus, chegou-se a tolda e ajoelhando-se, sem a espada e descoberto, entre os seus homens ajoelhados e cabisbaixos, de mãos postas, contrito rezou com eles acompanhando as orações que os clérigos entoavam à medida que, na proa, outros marujos, com um canto guaiado, iam desprendendo a âncora; de repente houve um rangido seco de amarras que corriam nos escouvens salitrados e um choque na água — a ancora mergulhara. Estavam fundeados diante da terra da especiaria. Era o dia 2 de maio de 1498.

O Gama, então, sem levantar os olhos para os homens que o cercavam, subiu ao castelo e ficou-se a contemplar o mar, o grande mar misterioso que ele havia vencido e o piloto, que ali estava, vendo duas lágrimas rolarem pelas barbas do navegante e como se estranhasse essa fraqueza naquele homem formidável que não tremera nos momentos mais arriscados, ficou a contemplá-lo mudo e com assombro.

O Gama, porém, voltou-se e trêmulo, numa viva “emoção, mandou arvorar a bandeira real como para anunciar-se aos da terra e ele mesmo, veneradamente, foi, de uma em uma, acendendo as lâmpadas que iluminavam os retábulos.

O porto estava vazio, barcos miúdos apenas por ele andavam com as suas velas de palma e, sob a chuva que caía miúda, pondo uma tela diante da vista, Calecut foi desaparecendo como um sonho que se houvesse esvaecido. Veio à noite, porém, clara, de luar, e a índia ali se mostrou formosa, adormecida nos mares, dominada pelas naus como a princesa da bailada que, depois de quebrado o encanto que a guardava, aparecia linda e solitária, à espera do beijo que a devia despertar para o amor.

E o Gama, no castelo da nau que se balouçava, com a face na mão, contemplava aquela maravilha enquanto a maruja, grata ao Senhor, entoava contente a oração da noite.

De quando em quando, no silêncio das horas mortas, as vígias de uma nau bradavam para as da outra: — A índia! E o Gama, que velava pensativo, com o espírito longe, na Pátria bem-querida, estremecia, ouvindo aqueles brados e baixinho, como um eco longínquo, repetia suspirando: — A índia! ... com a alma a fugir-lhe para aquela terra branca e verde que era o sonho dos Reis.

VENIA

Escrevendo esta narrativa, em tempo sobremodo escasso, ative-me mais estreitamente ao Roteiro indo por ele posto que os olhos fossem na epopeia —um foi, a bem dizer, o caminho da minha aventura e foi o poeta a minha estrela polar.

Em certos episódios, talvez, melhor andasse se quisesse seguir as indicações de Gaspar Corrêa, no geral eivadas de imaginação, mas, subordinei-me ao ingênuo marujo que traçou, em singela linguagem, as peripécias da temerária travessia.

Em Melinde, no ponto relativo a tomada do piloto, parece-me violento o proceder do Gama visto como, havendo o régulo sempre demonstrado bons desejos, justo seria que o navegador com ele usasse de mais cordura ou, digamos: de mais diplomacia, buscando razões mais brandas para haver o homem necessário ao seu discurso.

Posto que todos afirmem que a travessia do mar índico foi afortunada e com ventos felizes dei a tormenta (e ainda tenho por mim o poeta) para maior realce da bravura temerária do Gama no momento em que, para conter a revolta, arroja resolutamente ao mar as cartas e os instrumentos.

De resto parece-me que, se a navegação houvesse sempre sido bonançosa, não haveria tão impetuoso levante a bordo simplesmente por não ver a maruja as extremas de alguma terra em mares tão dilatados.

Enfim, se há fantasia, tenho a minha ressalva demais, ela repousa sobre a absoluta verdade — a flor surgiu da terra. O próprio mar tem a sua Morgana.