LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio
eletrônico
Oração aos moços, de Rui Barbosa
Edição de base:
Senhores:
Não quis Deus que os meus cinqüenta anos de consagração ao direito
viessem receber no templo do seu ensino
Em verdade vos digo, jovens amigos meus, que o
coincidir desta existência declinante com essas carreiras nascentes agora, o
seu coincidir num ponto de interseção tão magnificamente celebrado, era mais do
que eu merecia; e, negando-me a divina bondade um momento de tamanha ventura,
não me negou senão o a que eu não devia ter tido a inconsciência de aspirar.
Mas, recusando-me o privilégio de um dia tão grande, ainda me consentiu o
encanto de vos falar, de conversar convosco, presente entre vós em espírito; o
que é, também, estar presente em verdade.
Assim que não me ides ouvir de longe, como a quem se sente arredado por
centenas de quilômetros, mas ao pé, de em meio a vós, como a quem está debaixo
do mesmo teto, e à beira do mesmo lar, em colóquio de irmãos, ou junto dos mesmos
altares, sob os mesmos campanários, elevando ao Criador as mesmas orações, e
professando o mesmo credo.
Direis que isto de me achar assistindo, assim, entre os
de quem me vejo separado por distância tão vasta, seria dar-se, ou supor
que se está dando, no meio de nós, um verdadeiro milagre?
Será. Milagre do maior dos taumaturgos. Milagre de quem respira entre
milagres. Milagre de um santo, que cada qual tem no sacrário do seu peito.
Milagre do coração, que os sabe chover sobre a criatura humana, como o
firmamento chove nos campos mais áridos e tristes a orvalhada das noites, que
se esvai, com os sonhos de antemanhã, ao cair das primeiras frechas
de oiro do disco solar.
Embora o realismo dos adágios teime no contrário, tolerem-me o arrojo de
afrontar uma vez a sabedoria dos provérbios. Eu me abalanço a lhes dizer e
redizer de não. Não é certo, como corre mundo, ou, pelo menos, muitas e
muitíssimas vezes, não é verdade, como se espalha fama, que "longe da
vista, longe do coração".
O gênio dos anexins, aí, vai longe de andar certo. Esse prolóquio tem mais malícia que ciência, mais epigrama que justiça, mais engenho que filosofia. Vezes sem conto, quando
se está mais fora da vista dos olhos, então (e por isso mesmo) é que mais à
vista do coração estamos; não só bem à. sua vista, senão bem dentro nele.
Não, filhos meus (deixai-me experimentar, uma vez que seja, convosco,
este suavíssimo nome); não: o coração não é tão
frívolo, tão exterior, tão carnal, quanto se cuida. Há, nele, mais que um
assombro fisiológico: um prodígio moral. E o órgão da fé, o órgão da esperança,
o órgão do ideal. Vê, por isso, com os olhos d'alma, o que não vêem os do corpo. Vê ao longe, vê
em ausência, vê no invisível, e até no infinito vê. Onde pára o cérebro de ver,
outorgou-lhe o Senhor que ainda veja; e não se sabe até onde. Até onde chegam
as vibrações do sentimento, até onde se perdem os surtos da poesia, até onde se
somem os vôos da crença: até Deus mesmo, inviso como
os panoramas íntimos do coração, mas presente ao céu e à
terra, a todos nós presentes, enquanto nos palpite, incorrupto, no seio, o
músculo da vida e da nobreza e da bondade humana.
Quando ele já não estende o raio visual pelo horizonte do invisível,
quando sua visão tem por limite a do nervo ótico, é que o coração, já esclerótico, ou degenerescente, e saturado nos resíduos de
uma vida gasta no mal, apenas oscila mecanicamente no interior do arcaboiço, como pêndula de relógio abandonado, que agita,
com as derradeiras pancadas, os vermes e a poeira da caixa. Dêle
se retirou a centelha divina. Até ontem lhe banhava ela de luz todo esse
espaço, que nos distancia do incomensurável desconhecido, e lançava entre este
e nós uma ponte de astros. Agora, apagados esses luzeiros, que o inundavam de
radiosa claridade, lá se foram, com o extinto cintilar das estrelas, as
entreabertas do dia eterno, deixando-nos, tão-somente, entre o longínquo
mistério daquele termo e o aniquilamento da nossa miséria desamparada, as
trevas de outro éter, como esse que se diz encher de escuridão o vago mistério
do espaço.
Entre vós, porém, moços, que me estais escutando, ainda brilha em toda a
sua rutilância o clarão da lâmpada sagrada, ainda
arde em toda a sua energia o centro de calor, a que se aquece a essência d'alma. Vosso coração, pois, ainda
estará incontaminado; e Deus assim o preserve.
Metei a mão no seio, e aí o sentireis com a sua
segunda vista. Desta, sobretudo, é que ele nutre sua vida agitada e criadora.
Pois não sabemos que, com os antepassados, vive ele da memória, do luto e da
saudade? E tudo é viver no pretérito. Não sentimos como, com os nossos conviventes, se alimenta ele na comunhão dos sentimentos e
índoles, das idéias e aspirações? E tudo é viver num mundo, em que estamos
sempre fora deste, pelo amor, pela abnegação, pelo sacrifício, pela caridade.
Não nos será claro que, com os nossos descendentes e sobreviventes, com os
nossos sucessores e pósteros, vive ele de fé,
esperança e sonho? Ora, tudo é viver, previvendo, é existir, preexistindo, é ver, prevendo. E,
assim, está o coração, cada ano, cada dia, cada hora, sempre alimentado em
contemplar o que não vê, por ter em dote dos céus a preexcelência
de ver, ouvir e palpar o que os olhos não divisam, os
ouvidos não escutam, e o tato não sente.
Para o coração, pois, não há passado, nem
futuro, nem ausência. Ausência, pretérito e porvir, tudo lhe é atualidade, tudo
presença. Mas presença animada e vivente, palpitante e criadora, neste regaço
interior, onde os mortos renascem, prenascem os vindoiros, e os distanciados se ajuntam, ao influxo de um
talismã, pelo qual, nesse mágico microcosmo de maravilhas, encerrado na breve
arca de um peito humano, cabe, em evocações de cada instante, a humanidade toda
e a mesma eternidade.
A maior de quantas distâncias logre a imaginação conceber, é a da morte;
e nem esta separa entre si os que a terrível apartadora
de homens arrebatou aos braços uns dos outros. Quantas vezes não entrevemos,
nesse fundo obscuro e remotíssimo, uma imagem cara? quantas
vezes não a vemos assomar nos longes da saudade, sorridente, ou melancólica,
alvoroçada, ou inquieta, severa, ou carinhosa,. trazendo-nos
o bálsamo, ou o conselho, a promessa, ou o desengano, a recompensa, ou o
castigo, o aviso da fatalidade, ou os presságios de bom agoiro?
Quantas nos não vem conversar, afável e tranqüila, ou
pressurosa e sobressaltada, com o afago nas mãos, a doçura na boca, a meiguice
no semblante, o pensamento na fonte, límpida, ou carregada, e lhe saímos do
contato, ora seguros e robustecidos, ora transidos de
cuidado e pesadume, ora cheios de novas inspirações,
e cismando, para a vida, novos rumos? Quantas outras, não somos nós os que
vamos chamar esses leais companheiros de além-mundo, e com eles renovar a
prática interrompida, ou instar com eles por um alvitre, em vão buscado, urna
palavra, um movimento do rosto, um gesto, urna réstia de luz, um traço do que
por lá se sabe, e aqui se ignora?
Se não há, pois, abismo entre duas épocas, nem mesmo a voragem final
desta à outra vida, que não transponha a mútua atração de duas almas, não pode
haver, na mesquinha superfície do globo terrestre, espaços, que não vença, com
os instantâneos de presteza das vibrações luminosas, esse fluido incomparável,
por onde se realiza, na esfera das comunicações morais, a maravilha da
fotografia à distância no mundo positivo da indústria moderna.
Tampouco medeia do Rio a São Paulo! Por que não conseguiremos enxergar de
um a outro cabo, em linha tão curta? Tentemos. Vejamos. Estendamos as mãos, entre
os dois pontos que a limitam. Deste àquele já se estabeleceu a corrente.
Rápida, como o pensamento, corre a emanação magnética desta extremidade à
oposta. Já num aperto se confundiram as mãos, que se procuravam. Já, num
amplexo de todos, nos abraçamos uns aos outros.
Entrelaçando a colação do vosso grau com a comemoração jubilar da minha,
e dando-me a honra de vos ser eu paraninfo, urdis, desta maneira, no ingresso à
carreira que adotastes, um como vínculo sagrado entre
a vossa existência intelectual, que se enceta, e a do vosso padrinho em letras,
que se acerca do seu termo. Do ocaso de uma surde o arrebol da outra.
Mercê, porém, de circunstâncias inopinadas, com o
encerro do meu meio século de trabalho na jurisprudência se ajusta o
remate dos meus cinqüenta anos de serviços à nação. Já o jurista começava a
olhar com os primeiros toques de saudade para o instrumento, que, há dez
lustros, lhe vibra entre os dedos, lidando pelo direito, quando a consciência
lhe mandou que despisse as modestas armas da sua luta, provadamente inútil,
pela grandeza da pátria e suas liberdades, no parlamento.
Essa remoção da metade total de um século de vida laboriosa para o
desentulho do tempo não podia consumar sem abalo sensível numa existência
repentinamente decepada. Mas a comoção foi salutar; porque o espírito encontrou
logo seu equilíbrio na convicção de que, afinal, me chegava eu a conhecer a mim
mesmo, reconhecendo a escassez de minhas reservas de energia, para acomodar o
ambiente da época às minhas idéias de reconciliação da política nacional com o regimen republicano.
Era presunção, era temeridade, era inconsciência insistir na insana
pretensão da minha fraqueza. Só um predestinado poderia arrostar empresa
tamanha. Desde 1892 me empenhava eu em lutar com esses mares e ventos. Não os
venci. Venceram-me eles a mim. Era natural. Deus nos dá sempre mais do que
merecemos. Já me não era pouco a graça (pela qual erguia as mãos ao céu) de abrir
os olhos à realidade evidente da minha impotência, e poder recolher as velas,
navegante desenganado, antes que o naufrágio me arrancasse das mãos a bandeira
sagrada.
Tenho o consolo de haver dado a meu país tudo o que me estava ao alcance:
a desambição, a pureza, a sinceridade, os excessos de atividade incansável, com
que, desde os bancos acadêmicos, o servi, e o tenho servido até hoje.
Por isso me sal da longa odisséia sem créditos de Ulisses. Mas, se o não
soube imitar nas artes medrançosas de político fértil
em meios e manhas, em compensação tudo envidei por
inculcar ao povo os costumes da liberdade e à república as leis do bom governo,
que prosperam os Estados, moralizam as sociedades, e honram as nações.
Preguei, demonstrei, honrei a verdade eleitoral, a verdade
constitucional, a verdade republicana. Pobres clientes estas, entre nós, sem
armas, nem oiro, nem consideração, mal achavam, em
uma nacionalidade esmorecida e indiferente, nos títulos rotos do seu direito,
com que habilitar o mísero advogado a sustentar-lhes com alma, com dignidade,
com sobrançaria, as desprezadas reivindicações. As três verdades não podiam
alcançar melhor sentença no tribunal da corrupção política do que o Deus vivo no de Pilatos.
Quem por uma causa destas combateu, abraçado com ela, em vinte e dito
anos da sua Via Dolorosa, não se pode ter habituado a maldizer, senão a
perdoar, nem a descrer, senão a esperar. Descrer da cegueira humana, sim; mas
da Providência, fatal nas suas soluções, bem que (ao parecer) tarda nos seus
passos, isso nunca.
Assim que a bênção do paraninfo não traz fel. Não lhe encontrareis no
fundo nem rancor, nem azedume, nem despeito. Os maus só lhe inspiram tristeza e
piedade. Só o mal é o que o inflama em ódio. Porque o ódio ao mal é amor do
bem, e a ira contra o mal, entusiasmo divino. Vede Jesus despejando os
vendilhões do tempo, ou Jesus provando a esponja amarga no Gólgota.
Não são o mesmo Cristo, esse ensangüentado Jesus do
Calvário e aqueloutro, o Jesus iroso,
o Jesus armado, o Jesus do látego inexorável? Não serão
um só Jesus, o que morre pelos bons, e o que açoita os maus?
O padre Manuel Bernardes pregava, numa das suas Silvas:
"Bem pode haver ira, sem haver pecado:
Irascimini, et nolite peccare. E às vezes
poderá haver pecado, se não houver ira: porquanto a
paciência, e silêncio, fomenta a negligência dos maus, e tenta a
perseverança dos bons. Qui cum causa non irascitur,
peccat (diz um padre) patientia
enim irrationabilis vitia seminat, negligentiam nutrit, et non solum
malos, sed etiam bonos invitat ad
malum. Nem o irar-se nestes termos é contra a
mansidão: porque esta virtude compreende dous atos:
um é reprimir a ira, quando é desordenada: outro excitá-la, quando convém. A
ira se compara ao cão, que ao ladrão ladra, ao senhor
festeja, ao hóspede nem festeja, nem ladra: e sempre faz o seu ofício. E assim
quem se agasta nas ocasiões, e contra as pessoas, que convém agastar-se, bem pode, com tudo isso, ser verdadeiramente manso. Qui igitur (disse o Filósofo) ad quae oportet, et
quibus oportet, irascitur, laudatur, esse que is mansuetus potest".
Nem toda ira, pois, é maldade; porque a ira, se, as mais das vezes,
rebenta agressiva e daninha, muitas outras, oportuna e necessária, constitui o
específico da cura. Ora deriva da tentação infernal, ora de inspiração
religiosa. Comumente se acende em sentimentos desumanos e paixões cruéis; mas
não raro flameja do amor santo e da verdadeira caridade. Quando um braveja contra o bem, que não entende, ou que o contraria,
é ódio iroso, ou ira odienta. Quando verbera o
escândalo, a brutalidade, ou o orgulho, não é agrestia rude, mas exaltação
virtuosa; não é soberba, que explode, mas indignação que ilumina; não é raiva desaçaimada, mas correção fraterna. Então, não somente não
peca o que se irar, mas pecará, não se irando. Cólera
será; mas cólera da mansuetude, cólera da justiça, cólera que reflete a de
Deus, face também celeste do amor, da misericórdia e da santidade.
Dela esfuzilam centelhas, em que se abrasa, por
vezes, o apóstolo, o sacerdote, o pai, o amigo, o orador, o magistrado. Essas faúlhas da substância divina atravessam o púlpito, a
cátedra, a tribuna, o rosto, a imprensa, quando se debatem, ante o país, ou o
mundo, as grandes causas humanas, as grandes causas nacionais, as grandes
causas populares, as grandes causas sociais, as grandes causas da consciência
religiosa. Então a palavra se eletriza, brame, lampeja, atroa, fulmina.
Descargas sobre descargas rasgam o ar, incendeiam o horizonte, cruzam em raios o espaço. É a hora das responsabilidades, a hora da conta e do castigo, a hora das apóstrofes,
imprecações e anátemas, quando a voz do homem reboa como o canhão, a arena dos
combates da eloqüência estremece como campo de batalha, e as siderações da verdade, que estala sobre as cabeças dos
culpados, revolvem o chão, coberto de vítimas e destroços incruentos,
com abalos de terremoto. Ei-la aí a cólera santa! Eis
a ira divina!
Quem, senão ela, há de expulsar do templo o
renegado, o blasfemo, o profanador, o simoníaco? quem, senão ela, exterminar da ciência o apedeuta,
o plagiário, o charlatão? quem, senão ela, banir da
sociedade o imoral, o corruptor, o libertino? quem,
senão ela, varrer dos serviços do Estado o prevaricador, o concussionário
e o ladrão público? quem, senão ela, precipitar do
governo o negocismo, a prostituição política, ou a
tirania? quem, senão ela, arrancar a defesa da pátria
à cobardia, à inconfidência ou à traição? quem, senão
ela, ela a cólera do celeste inimigo dos vendilhões e dos hipócritas? a cólera do Verbo da verdade, negado pelo poder da mentira? a cólera da santidade suprema, justiçada pela mais sacrílega
das opressões?
Todos os que nos dessedentamos nessa fonte, os que nos saciamos desse
pão, os que adoramos esse ideal, nela vamos buscar a chama incorruptível. É
dela que, ao espetáculo ímpio do mal tripudiante
sobre os reveses do bem, rebenta em labaredas a indignação, golfa a cólera em
borbotões das fráguas da consciência, e a palavra saí, rechinando, esbraseando, chispando como o
metal candente dos seios da fornalha.
Esse metal nobre, porém, na incandescência da sua ebulição, não deixa
escória. Pode crestar os lábios, que atravessa. Poderá inflamar por momentos o
irritado coração, de onde jorra. Mas não o degenera, não o macula, não o
resseca, não o caleja, não o endurece; e, no fundo, são da urna onde
tumultuavam essas procelas e donde borbotam essas erupções, não assenta um
rancor, uma inimizade, uma vingança. As reações da luta cessam, e fica, de envolta com o aborrecimento ao mal, o relevamento
dos males padecidos.
Nest'alma, tantas
vezes ferida e traspassada tantas vezes, nem de agressões, nem de infamações,
nem de preterições, nem de' ingratidões, nem de perseguições, nem de traições,
nem de expatriações perdura o menor rasto, a menor idéia de revindita.
Deus me é testemunha de que tudo tenho perdoado. E,
quando lhe digo, na oração dominical: "Perdoai-nos, Senhor, as nossas
dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores", julgo não lhe estar
mentindo; e a consciência me atesta que, até onde alcance a imperfeição humana,
tenho conseguido, e consigo todos os dias, obedecer ao
sublime mandamento. Assim me perdoem, também, os a quem tenho agravado, os com
quem houver sido injusto, violento, intolerante, maligno, ou descaridoso.
Estou-vos abrindo o livro da minha vida. Se me não quiserdes aceitar como
expressão fiel da realidade esta versão rigorosa de uma das suas páginas, com
que mais me consolo, recebei-a, ao menos, como ato de fé, ou como conselho de
pai a filhos, quando não como o testamento de uma carreira, que poderá ter
discrepado, muitas vezes, do bem, mas sempre o evangelizou com entusiasmo, o
procurou com fervor, e o adorou com sinceridade.
Desde que o tempo começou, lento lento,
a me decantar o espírito do sedimento das paixões, com que o verdor dos anos e
o amargor das lutas o enturbavam, entrando eu a
considerar com filosofia nas leis da natureza humana, fui sentindo quanto esta
necessita da contradição, como a lima dos sofrimentos a melhora, a que ponto o
acerbo das provações a expurga, a tempera, a nobilita, a regenera. Então vim a
perceber vivamente que imensa dívida cada criatura da nossa espécie deve aos
seus inimigos e desfortunas. Por mais desagrestes que sejam os contratempos da sorte e as
maldades dos homens, raro nos causam mal tamanho, que nos não façam ainda maior bem. Ai de nós, se esta purificação
gradual, que nos deparam as vicissitudes cruéis da existência, não encontrasse
a colaboração providencial da fortuna adversa e dos nossos desafetos. Ninguém
mete em conta o serviço contínuo, de que lhes está em obrigação.
Diríeis, até que, mandando-nos amar aos nossos inimigos, em boa parte nos
quis o divino legislador entremostrar o muito, de que eles nos são credores. A
caridade com os que nos malquerem, e os que nos malfazem,
não é, em bem larga escala, senão pago dos benefícios, que, mal a seu grado,
mas muito deveras, eles nos granjeiam.
Destarte, não equivocaremos a aparência com a realidade, se, nos dissabores
que malquerentes e malfazentes nos propinam, discernirmos a quota de lucro, com que eles, não
levando em tal o sentido, quase sempre nos favorecem. Quanto é pela minha
parte, o melhor do que sou, bem assim o melhor do que
me acontece, freqüentemente acaba o tempo convencendo-me de que não me vem das
doçuras da fortuna propícia, ou da verdadeira amizade, senão sim que o devo,
principalmente, às maquinações dos malévolos e às contradições da sorte
madrasta. Que seria, hoje, de mim, se o veto dos meus adversários, sistemático
e pertinaz, me não houvesse poupado aos tremendos riscos dessas alturas,
"alturas de Satanás", como as de que fala o Apocalipse, em que tantos
se têm perdido, mas a que tantas vezes me tem tentado exalçar
o voto dos meus amigos? Amigos e inimigos estão, amiúde, em posições trocadas.
Uns nos querem mal, e fazem-nos bem. Outros nos almejam o bem, e nos trazem o
mal.
Não poucas vezes, pois, razão é lastimar o zelo dos amigos, e agradecer a
malevolência dos opositores. Estes nos salvam, quando aqueles nos extraviam. De
sorte que, no perdoar aos inimigos, muita vez não vai semente caridade cristã,
senão também justiça ordinária e reconhecimento humano. E, ainda quando, aos
olhos de mundo, como aos do nosso juízo descaminhado, tenham logrado a nossa
desgraça, bem pode ser que, aos olhos da filosofia, aos da crença e aos da
verdade suprema, não nos hajam contribuído senão para a felicidade.
Estes, senhores, será um saber vulgar, um saber rasteiro, "um saber
só de experiência feito".
Não é o saber da ciência, que se libra acima das nuvens, e alteia o vôo
soberbo, além das regiões siderais, até aos páramos
indevassáveis do infinito. Mas, ainda assim, este saber fácil mereceu a Camões
o ter a sua legenda insculpida em versos imortais;
quanto mais a nós outros, bichos da terra tão pequenos, a ninharia de ocupar
divagações, como estas, de um dia, folhas de árvore morta, que, talvez, não
vinguem ao de amanhã.
Da ciência estamos aqui numa catedral. Não cabia em um velho catecúmeno
vir ensinar a religião aos seus bispos e pontífices, nem aos que agora nela
recebem as ordens do seu sacerdócio. E hoje é féria, ensejo para tréguas ao
trabalho ordinário, quase dia santo. Labutastes a semana toda, o vosso curso de
cinco anos, com teorias, hipóteses e sistemas, com princípios, teses e
demonstrações, com leis, códigos e jurisprudências, com expositores,
intérpretes e escolas. Chegou o momento de voe assentardes, mão por mão, com os
vossos sentimentos, de vos pordes à fala com a vossa consciência, de
praticardes familiarmente com os vossos afetos, esperanças e propósitos.
Eis ao que vem o padrinho, o velho, o abendiçoador,
carregado de anos e tradições, versado nas longas lições do tempo, mestre de
humildade, arrependimento e desconfiança, nulo entre os grandes da
inteligência, grande entre os experimentados na fraqueza humana. Que se feche,
pois, alguns momentos, o livro da ciência; e folheemos juntos
o da experiência. Desaliviemo-nos do saber
humano, carga formidável, e voltemo-nos uma hora para
este outro, leve, comezinho, desalinhado, conversável, seguro, sem altitudes,
nem despenhadeiros.
Ninguém, senhores meus, que empreenda uma jornada extraordinária,
primeiro que meta o pé na estrada, se esquecerá de entrar em conta com as suas
forças, por saber se a levarão ao cabo. Mas, na grande viagem, na viagem de
trânsito deste a outro mundo, não há possa, ou não
possa, não há querer, ou não querer. A vida não tem mais que duas portas: uma
de entrar, pelo nascimento; outra de sair, pela morte. Ninguém, cabendo-lhe a
vez, se poderá furtar à entrada. Ninguém, desde que entrou, em lhe chegando o
turno, se conseguirá evadir à saída. E, de um ao outro extremo, vai o caminho,
longo, ou breve, ninguém o sabe, entre cujos termos fatais se debate o homem, pesaroso de que entrasse, receoso da hora em
que saia, cativo de um e outro mistério, que lhe confinam a passagem terrestre.
Não há nada mais trágico do que a fatalidade inexorável deste destino,
cuja rapidez ainda lhe agrava a severidade.
Em tão breve trajeto cada um há de acabar a sua tarefa. Com que
elementos? Com os que herdou, e os que cria. Aqueles são a parte da natureza. Estes, a
do trabalho.
A parte da natureza varia ao infinito. Não há, no universo, duas coisas
iguais. Muitas se parecem umas às outras. Mas todas entre si diversificam. Os
ramos de uma só árvore, as folhas da mesma planta, os traços da polpa de um
dedo humano, as gotas do mesmo fluido, os argueiros do mesmo pó, as raias do
espectro de um só raio solar ou estelar. Tudo assim, desde os astros, no céu,
até os micróbios no sangue, desde as nebulosas no espaço, até aos aljôfares do
rocio na relva dos prados.
A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar
desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade
social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da
igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar
com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade
flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a
norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que
vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se eqüivalessem.
Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a
humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos direitos do
trabalho; e, executada, não faria senão inaugurar, em vez da supremacia do
trabalho, a organização da miséria.
Mas, se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais,
cada um, nos limites da sua energia moral, pode reagir sobre as desigualdades
nativas, pela educação, atividade e perseverança. Tal a missão do trabalho.
Os portentos de que esta força é capaz, ninguém os calcula. Suas vitórias
na reconstituição da criatura mal dotada só se comparam às da oração.
Oração e trabalho são os recursos mais poderosos na criação moral do
homem. A oração é o íntimo sublimar-se d'alma
pelo contato com Deus. O trabalho é o inteirar, o
desenvolver, o apurar das energias do corpo e do espírito, mediante a ação
contínua de cada um sobre si mesmo e sobre o mundo onde labutamos.
O indivíduo que trabalha acerca-se continuamente do autor de todas as
coisas, tomando na sua obra uma parte, de que depende também a dele. O Criador
começa, e a criatura acaba a criação de si própria.
Quem quer, pois, que trabalhe, está em oração ao Senhor. Oração pelos
atos, ela emparelha com a oração pelo culto. Nem pode ser que uma ande verdadeiramente
sem a outra. Não é trabalho digno de tal nome o do mau; porque a malícia do
trabalhador o contamina. Não é oração aceitável a do ocioso; porque a
ociosidade a dessagra. Mas, quando o trabalho se
junta à oração, e a oração com o trabalho, a segunda criação do homem, a
criação do homem pelo homem, semelha às vezes, em maravilhas, à criação do
homem pelo divino Criador.
Ninguém desanime, pois, de que o berço lhe não fosse generoso, ninguém se
creia malfadado, por lhe minguarem de nascença haveres e qualidades. Em tudo
isso não há surpresas, que se não possam esperar da tenacidade e santidade no
trabalho. Quem não conhece a história do padre Suárez,
o autor do tratado "Das Leis e de Deus Legislador" (De Legibus ac Deo
Legislatore), monumento jurídico, a que os
trezentos anos de sua idade ainda não gastaram o conceito de honra das letras
castelhanas? De cinqüenta aspirantes, que, em 1564, solicitavam, em Salamanca, ingresso à Companhia de Jesus, esse foi o único
rejeitado, por curto de entendimento e revesso ao ensino. Admitido, todavia, a
insistências suas, com a nota de indiferente, embora primasse entre os mais
aplicados, tudo lhe eram, no estudo, espessas trevas. Não avançava um passo,
Afinal, por consenso de todos, passava por invencível a sua incapacidade. Confessou-a, por fim, ê]e mesmo, requerendo ao reitor, o
célebre padre Martin Gutierrez, que o escusasse da vida escolar, e o entregasse
aos misteres corporais de irmão coadjutor. Gutierrez animou-o a orar,
persistir, e esperar. De repente se lhe alagou de claridade a inteligência.
Mergulhou-se, então, cada vez mais no estudo; e daí, com estupenda mudança, começa a deixar ver o a que era destinada aquela
extraordinária cabeça, até esse tempo submersa em densa escuridade.
Já é mestre insigne, já encarna todo o saber da renascença teológica, em
que brilham as letras de Espanha. Sucessivamente ilustra as cadeiras de
filosofia, teologia e cânones nas mais famosas
universidades européias: em Segóvia, em Valhadolid, em Roma, em Alcalã,
em Salamanca, em Ávila,
Já vedes que ao trabalho nada é impossível. Dele não há extremos, que não
sejam de esperar. Com ele nada pode haver, de que desesperar.
Mas, do século XVI ao século XX, o que as ciências cresceram, é
incomensurável. Entre o currículo da teologia e filosofia no primeiro, e o
programa de um curso jurídico, no segundo, a distância é infinita. Sobre os
mestres, os sábios e os estudantes de agora pesam montanhas e montanhas mais de
questões, problemas e estudos que quantos, há três ou quatro séculos, se
abrangiam no saber humano.
O trabalho, pois, vos há de bater à porta dia e noite; e nunca vos
negueis às suas visitas, se quereis honrar vossa vocação, e estais dispostos a
cavar nos veios de vossa natureza, até dardes com os tesouros, que aí vos haja
reservado, com ânimo benigno, a dadivosa Providência. Ouvistes o aldrabar da mão oculta, que vos chama ao estudo? Abri,
abri, sem detença. Nem por vir muito cedo, lho leveis
a mal, lho tenhais à conta de importuna. Quanto mais matutinas essas
interrupções do vosso dormir, mais lhas deveis agradecer.
O amanhecer do trabalho há de antecipar-se ao amanhecer do dias Não vos
fieis muito de quem esperta já sol nascente, ou sol
nado. Curtos se fizeram os dias, para que nós os dobrássemos, madrugando.
Experimentai, e vereis quanto vai do deitar tarde ao acordar cedo. Sobre a
noite o cérebro pende ao sono. Antemanhã, tende a despertar.
Não invertais a economia do nosso organismo: não troqueis a noite pelo
dia, dedicando este à cama, e aquela às distrações. O que se esperdiça para o trabalho com as noitadas inúteis, não se
lhe recobra com as manhãs de extemporâneo dormir, ou as tardes de cansado
labutar. A ciência, zelosa do escasso tempo que nos deixa a vida, não dá lugar
aos tresnoites libertinos. Nem a cabeça já exausta, ou estafada nos prazeres,
tem onde caiba o inquirir, o revolver, o meditar do estudo.
Os próprios estudiosos desacertam, quando, iludidos por um hábito de
inversão, antepõem o trabalho, que entra pela noite,
ao que precede o dia. A natureza nos está mostrando com exemplos a verdade.
Toda ela, nos viventes, ao anoitecer, inclina para o sono. A esta lição geral
só abrem triste exceção os animais sinistros e os carniceiros. Mas, quando se
avizinha o volver da luz, muito antes que ela arraie
a natureza, e ainda primeiro que alvoreça no firmamento, já rompeu na terra em
cânticos a alvorada, já se orquestram de harmonias e melodias campos e selvas,
já o galo, não o galo triste do luar dos sertões do nosso Catulo, mas o galo
festivo das madrugadas, retine ao longe a estridência dos seus clarins, vibrantes de jubilosa
alegria.
Ouvi, no poema de Jó, a voz do Senhor,
perguntando a seu servo, onde estava, quando o louvavam as estrelas da manhã: "Ubi eras cum me laudarent simul astra matutina"? E que têm mais as estrelas da
manhã, dizia um grande escritor nosso, "que têm
mais as estrelas da manhã que as da tarde, ou as da noite, para fazer Deus mais
caso do louvor de umas que das outras? Não é ele o Senhor do tempo, que deve
ser louvado a todo o tempo, não só da luz, senão também das trevas? Assim é:
porém as estrelas da manhã têm esta vantagem que madrugam, antecipam-se, e
despertam aos outros, que se levantem a servir a Deus. Pois disto é que Deus se
honra, e agrada em presença de Jó".
Tomai exemplo, estudantes e doutores, tomai exemplo das estrelas da
manhã, o gozareis das mesmas vantagens: não só a de levantardes mais cedo a Deus a oração do trabalho, mas a de antecederdes aos
demais, logrando mais para vós mesmos, e estimulando os outros a que vos
rivalizem no ganho bendito.
Há estudar, e estudar. Há trabalhar, e trabalhar. Desde que o mundo é
mundo, se vem dizendo que o homem nasce para o trabalho: "Homo nascitur ad laborem".
Mas o trabalhar é como o semear, onde tudo vai muito
das sazões, dos dias e das horas. O cérebro, cansado e seco do laborar diurno,
não acolhe bem a semente: não a recebe fresco e de bom grado, como a terra
orvalhada. Nem a colheita acode tão suave às mãos do lavrador, quando o torrão
já lhe não está sorrindo entre o sereno da noite e os alvores do dia.
Assim, todos sabem que para trabalhar nascemos. Mas muitos somos os que
ignoramos certas condições, talvez as mais elementares, do trabalho, ou, pelo
menos, mui poucos os que as praticamos. Quantos serão os que acreditem que os
melhores trabalhadores sejam os melhores madrugadores? que
os mais estudiosos não sejam os que oferecem ao estudo os sobejos do dia, mas
os que o honram com as primícias da manhã?
Dirão que tais trivialidades, cediças e corriqueiras, não são para
contempladas num discurso acadêmico, nem para escutadas entre doutores, lentes
e sábios. Cada um se avém como entende, e faz o que pode. Mas eu, nisto aqui,
faço ainda o que devo. Porque, vindo pregar-vos experiência, cumpria que
relevasse mais a que mais sobressai na minha estirada carreira de estudante.
Estudante sou. Nada
mais. Mau sabedor, fraco jurista, mesquinho advogado, pouco mais sei do que
saber estudar, saber como se estuda, e saber que tenho estudado. Nem isso mesmo sei se saberei bem. Mas, do que tenho logrado
saber, o melhor devo às manhãs e madrugadas. Muitas lendas se têm inventado,
por aí, sobre excessos da minha vida laboriosa. Deram, nos meus progressos
intelectuais, larga parte ao uso em abuso do café e ao estímulo habitual dos
pés mergulhados n'água fria.
Contos de imaginadores. Refratário sou ao café. Nunca
recorri a ele como a estimulante cerebral. Nem uma só vez na
minha vida busquei num pedilúvio o espantalho
do sono.
Ao que devo, sim, o mais dos frutos do meu trabalho, a relativa exabundância de sua fertilidade, a parte produtiva e
durável da sua safra, é às minhas madrugadas. Menino ainda, assim que entrei ao
colégio, alvidrei eu mesmo a
conveniência desse costume, e daí avante o observei, sem cessar, toda a
vida. Eduquei nele o meu cérebro, a ponto de espertar exatamente à hora, que
comigo mesmo assentava, ao dormir. Sucedia, muito amiúde, encetar eu a minha
solitária banca de estudo à uma ou às duas da
antemanhã. Muitas vezes me mandava meu pai volver ao leito; e eu fazia apenas
que lhe obedecia, tornando, logo após, àquelas amadas lucubrações, as de que me
lembro com saudade mais deleitosa e entranhável.
Tenho, ainda hoje, convicção de que nessa observância persistente está o
segredo feliz, não só das minhas primeiras vitórias no trabalho, mas de quantas
vantagens alcancei jamais levar aos meus concorrentes, em todo o andar dos
anos, até à velhice. Muito há que já não subtraio tanto às horas da cama, para
acrescentar às do estudo. Mas o sistema ainda perdura, bem que largamente
cerceado nas antigas imoderações. Até agora, nunca o
sol deu comigo deitado, e, ainda hoje, um dos meus raros e modestos
desvanecimentos é o de ser grande madrugador, madrugador impenitente.
Mas, senhores, os que madrugam no ler, convém madrugarem também no
pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia,
que se absorve, mas, principalmente, nas idéias próprias, que se geram dos
conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito
que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas
transformador reflexivo de aquisições digeridas.
Já se vê quanto vai do saber aparente ao saber real. O saber de aparência
crê e ostenta saber tudo. O saber de realidade, quanto mais real, mais
desconfia, assim do que vai apreendendo. como do que
elabora.
Haveis de conhecer, como eu conheço, países,
onde quanto menos ciência se apurar, mais sábios florescem. Há, sim, dessas
regiões, por este mundo além. Um homem (nessas terras de promissão) que nunca
se mostrou lido ou sabido em coisa nenhuma, tido e havido é por corrente e moente no que quer que seja; porque assim o aclamam as
trombetas da política, do elogio mútuo, ou dos corrilhos
pessoais, e o povo subscreve a néscia atoarda.
Financeiro, administrador, estadista, chefe de Estado, ou qualquer outro lugar
de ingente situação e assustadoras responsabilidades, é, a pedir de boca, o que
se diz mão de pronto desempenho, fórmula viva a quaisquer dificuldades, chave
de todos os enigmas.
Tenham por averiguado que, onde quer que o colocarem,
dará conta o sujeito das mais árduas empresas e solução aos mais emaranhados
problemas. Se em nada se aparelhou, está em tudo e para tudo aparelhado.
Ninguém vos saberá informar por quê. Mas todo o mundo vo-lo dará por líquido e
certo. Não aprendeu nada, e sabe tudo. Ler, não leu. Escrever, não escreveu.
Ruminar, não ruminou. Produzir, não produziu. E um improviso onisciente, o
fenômeno de que poetava Dante: "In picciol
tempo gran dottor si feo".
A esses homens-panacéias, a esses empreiteiros de todas as empreitadas, a
esses aviadores de todas a encomenda, se escancelam os portões da fama, do poderio, da grandeza, e,
não contentes de lhes aplaudir entre os da terra a nulidade, ainda, quando Deus
quer, a mandam expor à admiração do estrangeiro.
Pelo contrário, os que se tem por notório e incontestável excederem o
nível da instrução ordinária, esses para nada servem. Por quê? Porque
"sabem demais". Sustenta-se aí que a competência reside, justamente,
na incompetência. Vai-se, até, ao incrível de se inculcar "medo aos
preparados", de havê-los como cidadãos perigosos, e ter-se por dogma que
um homem, cujos estudos passarem da craveira vulgar, não poderia ocupar
qualquer posto mais grado no governo, em país de analfabetos. Se o povo é
analfabeto, só ignorantes estarão em termos de o governar.
Nação de analfabetos, governo de analfabetos. E o que eles, muita vez às
escâncaras, e em letra redonda, por aí dizem.
Sócrates, certo dia, numa das suas conversações, que O Primeiro
Alcibíades nos deixa escutar ainda hoje, dava grande
lição de modéstia ao interlocutor, dizendo-lhe, com a costumada lhaneza:
"A pior espécie de ignorância é cuidar uma pessoa saber o que não sabe...
Tal, meu caro Alcibíades, o teu caso. Entraste pela política, antes de a teres
estudado. E não és tu só o que te vejas nessa condição: é esta mesma a da mor
parte dos que se metem nos negócios da república. Apenas excetuo exíguo número,
e pode ser que, unicamente, a Péricles, teu tutor; porque tem cursado os
filósofos".
Vede agora os que intentais exercitar-vos na ciência das leis, e vir a
ser seus intérpretes, se de tal jeito é que conceberíeis sabê-las, e
executá-las. Desse jeito; isto é: como as entendiam os políticos da Grécia,
pintada pelo mestre de Platão.
Uma vez, que Alcibíades discutia com Péricles, em palestra registrada por
Xenofonte, acertou de se debater o que seja lei, e
quando exista, ou não exista.
"- Que vem a ser lei?" indaga Alcibiades.
"- A expressão da vontade do povo",
responde Péricles.
"- Mas que é o que determina esse povo? O
bem, ou o mal?" replica-lhe o sobrinho.
"- Certo que o bem, mancebo.
"- Mas, sendo uma oligarquia quem mande,
isto é, um diminuto número de homens, serão, ainda assim, respeitáveis as leis?
"- Sem dúvida.
"- Mas, se a disposição vier de um tirano?
Se ocorrer violência, ou ilegalidade? Se o poderoso coagir o fraco? Cumprirá,
todavia, obedecer"?
Péricles hesita; mas acaba admitindo:
"- Creio que sim.
"- Mas então", insiste Alcibíades,
"o tirano, que constrange os cidadãos a lhe acatarem os caprichos, não
será, esse sim, o inimigo das leis?
"- Sim; vejo agora que errei em chamar leis
às ordens de um tirano, costumado a mandar, sem persuadir.
"- Mas, quando um diminuto número de
cidadãos impõe seus arbítrios à multidão, daremos, ou não, a isso o nome de
violência?
Parece-me a mim", concede Péricles, cada vez mais vacilante, "que, em caso tal, é de
violência que se trata, não de lei".
Admitido isso, já Alcibíades triunfa:
"- Logo, quando a multidão, governando,
obrigar os ricos, sem consenso destes, não será, também, violência, e não
lei?"
Péricles não acha que responder; e a própria razão não o acharia. Não é
lei a lei, senão quando assenta no consentimento da maioria, já que, exigido o
de todos, desiderandum irrealizável, não haveria meio
jamais de se chegar a uma lei.
Ora, senhores bacharelandos, pesai bem que vos ides consagrar à lei, num
país onde a lei absolutamente não exprime o consentimento da maioria, onde são
as minorias, as oligarquias mais acanhadas, mais impopulares e menos
respeitáveis, as que põem, e dispõem, as que mandam, e
desmandam em tudo; a saber: num país, onde, verdadeiramente, não há lei, não há
moral, política ou juridicamente falando.
Considerai, pois, nas dificuldades, em que se vão enlear os que professam
a missão de sustentáculos e auxiliares da lei, seus mestres e executores.
É verdade que a execução corrige, ou atenua, muitas vezes, a legislação
de má nota. Mas, no Brasil, a lei se deslegítima,
anula e torna inexistente, não só pela bastardia da origem, senão ainda pelos
horrores da aplicação.
Ora, dizia S. Paulo que boa é a lei, onde se executa legitimamente. Bona est lex, si quis ea legitime utatur. Quereria dizer: Boa é a lei quando executada
com retidão. Isto é: boa será, em havendo no executor a virtude, que no
legislador não havia. Porque só a moderação, a inteireza e a eqüidade, no
aplicar das más leis, as poderiam, em certa medida, escoimar da impureza,
dureza e maldade, que encerrarem. Ou, mais lisa e claramente, se bem o entendo,
pretenderia significar o apóstolo das gentes que mais vale a lei má, quando inexecutada, ou mal executada (para o bem), que a boa lei
sofismada e não observada (contra ele).
Que extraordinário, que imensurável, que, por assim dizer, estupendo e
sobre-humano, logo, não será, em tais condições, o papel da justiça! Maior que
o da própria legislação. Porque, se dignos são os juizes, como parte suprema,
que constituem, no executar das leis, em sendo justas, lhes manterão eles a sua
justiça, e, injustas, lhes poderão moderar, se não, até, no seu tanto, corrigir
a injustiça.
De nada aproveitam leis, bem se sabe, não existindo quem as ampare contra
os abusos; e o amparo sobre todos essencial é o de uma justiça tão alta no seu
poder, quanto na sua missão. "Aí temos as leis", dizia o Florentino.
"Mas quem lhes há de ter mão? Ninguém".
"Le leggi son, ma chi pon
mano ad esse? Nullo".
Entre nós não seria lícito responder assim tão em absoluto à interrogação
do poeta. Na constituição brasileira, a mão que ele não via
na sua república e em sua época, a mão sustentadora das leis, aí a temos,
hoje, criada, e tão grande, que nada lhe iguala a majestade, nada lhe rivaliza
o poder. Entre as leis, é a justiça quem decide, fulminando aquelas, quando com
esta colidirem.
Soberania tamanha só nas federações de molde norte-americano cabe ao
poder judiciário, subordinado aos outros poderes nas demais formas de governo,
mas, nesta, superior a todos.
Dessas democracias, pois, o eixo é a justiça, eixo não abstrato, não supositício, não meramente moral, mas de uma realidade
profunda, e tão seriamente implantado no mecanismo do regímen,
tão praticamente embebido através de todas as suas peças, que, falseando ele ao
seu mister, todo o sistema cairá em paralisia,
desordem e subversão. Os poderes constitucionais entrarão em conflitos
insolúveis, as franquias constitucionais ruirão por terra, e da organização
constitucional, do seu caráter, das suas funções, de suas garantias apenas
restarão destroços.
Eis o de que nos há de preservar a justiça brasileira, se a deixarem
sobreviver, ainda que agredida, oscilante e mal segura, aos outros elementos
constitutivos da república, no meio das ruínas, em que mal se conservam
ligeiros traços da sua verdade.
Ora, senhores, esse poder eminencialmente
necessário, vital e salvador, tem os dois braços, nos quais agüenta a lei, em
duas instituições: a magistratura e a advocacia, tão velhas como a sociedade
humana, mas elevadas ao cem-dobro, na vida
constitucional do Brasil, pela estupenda importância, que o novo regímen veio dar à justiça.
Meus amigos, é para colaborardes em dar
existência a essas duas instituições que hoje saís daqui habilitados. Magistrados ou advogados sereis. São duas carreiras quase
sagradas, inseparáveis uma da outra, e, tanto uma como a outra, imensas nas
dificuldades, responsabilidades e utilidades.
Se cada um de vós meter bem a mão na
consciência, certo que tremerá da perspectiva. O tremer próprio é dos que se
defrontam com as grandes vocações, e são talhados para as
desempenhar. O tremer, mas não o descorçoar. O tremer, mas não o
renunciar. O tremer, com o ousar. O tremer, com o empreender. O tremer, com o
confiar. Confiai, senhores. Ousai. Reagi. E haveis de
ser bem sucedidos. Deus, pátria, e trabalho. Metei no
regaço essas três fés, esses três amores, esses três
signos santos. E segui, com o coração puro. Não hajais medo a que a sorte vos
ludibrie. Mais pode que os seus azares a constância, a
coragem e a virtude.
Idealismo? Não: experiência da vida. Não há forças, que mais a
senhoreiem, do que essas. Experimentai-o, como eu o tenho experimentado. Poderá
ser que resigneis certas situações, como eu as tenho resignado. Mas meramente
para variar de posto, e, em vos sentindo incapazes de uns, buscar outros, onde vos venha ao encontro o dever, que a Providência vos
havia reservado.
Encarai, jovens
colegas meus, nessas duas estradas, que se vos patenteiam. Tomai a que vos
indicarem vossos pressentimentos, gostos e explorações, no campo dessas nobres
disciplinas, com que lida a ciência das leis e a distribuição da justiça. Abraçai a que vos sentirdes indicada pelo conhecimento de
vós mesmos. Mas não primeiro que hajais buscado na experiência de outrem um
pouco da que vos é mister, e que ainda não tendes,
para eleger a melhor derrota, entre as duas que se oferecem à carta de
idoneidade, hoje obtida.
Pelo que me toca, escassamente avalio até onde, nisso, vos poderia eu ser
útil. Muito vi em cinqüenta anos. Mas o que constitui a experiência, consiste menos no ver, que no saber observar. Observar com
clareza, com desinteresse, com seleção. Observar, deduzindo, induzindo, e
generalizando, com pausa, com critério com desconfiança. Observar, apurando, contrasteando, e guardando.
Que espécie de observador seja eu, não vo-lo poderia dizer. Mas, seguro,
ou não, no averiguar e discernir, - de uma qualidade, ao menos, me posso abonar
a mim mesmo: a de exato e consciencioso no expender e narrar.
Como me dilataria, porém, numa ou noutra coisa, quando tão longamente,
aqui, já me tenho excedido em abusar de vós e de mim mesmo?
Não recontarei, pois, senhores, a minha experiência, e
muito menos tentarei explaná-la. Cingir-me-ei, estritamente, a falar-vos
como falaria e mim próprio, se vós estivésseis em mim, sabendo o que tenho
experimentado, e eu me achasse em vós, tendo que resolver essa escolha.
Todo pai é conselheiro natural. Todos os pais aconselham, se bem que nem
todos possam jurar pelo valor dos seus conselhos. Os meus
serão os a que me julgo obrigado, na situação em que momentaneamente
estou, pelo vosso arbítrio, de pai espiritual dos meus afilhados em letras,
nesta solenidade.
E à magistratura que vos ides votar?
Elegeis, então, a mais eminente das profissões, a que um homem se pode
entregar neste mundo. Essa elevação me impressiona seriamente; de modo que não
sei se a comoção me não atalhará o juízo, ou tolherá o discurso. Mas não se
dirá que, em boa vontade, fiquei aquém dos meus deveres.
Serão, talvez, meras vulgaridades, tão singelas, quão sabidas, mas ande o
senso comum, a moral e o direito, associando-se à experiência, lhe nobilitam os
ditames. Vulgaridades, que qualquer outro orador se avantajaria em esmaltar de
melhor linguagem, mas que, na ocasião, a mim tocam, e no meu ensoado vernáculo hão de ser ditas. Baste, porém, que s~ digam com isenção, com firmeza, com lealdade; e assim hão
de ser ditas, hoje, desta nobre tribuna.
Moços, se vos ides medir com o direito e o crime na cadeira de juizes,
começai, esquadrinhando as exigências aparentemente menos altas dos vossos
cargos, e proponde-vos caprichar nelas com dobrado rigor; porque, para sermos
fiéis no muito, o devemos ser no pouco.
Qui fidelis est in minimo, et in majori fidel
est; et qui
in modico iniquus est, et in majori
iniquus est".
Ponho exemplo, senhores. Nada se leva em menos conta, na judicatura, a
uma boa fé de ofício que o vezo de tardança nos despachos e sentenças. Os
códigos se cansam debalde em o punir. Mas a geral
habitualidade e a conivência geral o entretêm, inocentam e universalizam.
Destarte se incrementa e demanda ele em proporções incalculáveis, chegando as causas a contar a idade por lustras, ou décadas, em vez
de anos.
Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e
manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito
escrito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade. Os
juizes tardinheiros são culpados, que a lassidão
comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que o
lesado não tem meio de reagir contra o delinqüente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente.
Não sejais, pois, desses magistrados, nas mãos de quem os autos penam
como as almas do purgatório, ou arrastam sonos esquecidos como as preguiças do
mato.
Não vos pareçais com esses outros juizes, que, com tabuleta de
escrupulosos, imaginam em risco a sua boa fama, se não evitarem o contato dos
pleiteantes, recebendo-os com má sombra, em lugar de os ouvir
a todos com desprevenção, doçura e serenidade.
Não imiteis os que, em se lhes oferecendo o mais leve pretexto, a si
mesmos põem suspeições rebuscadas, para esquivar responsabilidades, que seria
do seu dever arrostar sem quebra de ânimo ou de confiança no prestígio dos seus
cargos.
Não sigais os que argumentam com o grave das acusações, para se armarem
de suspeita e execração contra os acusados; como se, pelo contrário, quanto
mais odiosa a acusação, não houvesse o juiz de se
precaver mais contra os acusadores, e menos perder de vista a presunção de
inocência, comum a todos os réus enquanto não liquidada a prova e reconhecido o
delito.
Não acompanheis os que, no pretório, ou no júri, se convertem de
julgadores em verdugos, torturando o réu com severidades inoportunas,
descabidas, ou indecentes; como se todos os acusados não tivessem direito à
proteção dos seus juizes, e a lei processual, em todo o mundo civilizado, não
houvesse por sagrado o homem, sobre quem recai acusação ainda inverificada.
Não estejais com os que agravam o rigor das leis, para se acreditar com o
nome de austeros e ilibados. Porque não há nada menos nobre e aplausível que
agenciar uma reputação malignamente obtida em prejuízo da verdadeira
inteligência dos textos legais.
Não julgueis por considerações de pessoas, ou pelas do valor das quantias
litigadas, negando as somas, que se pleiteiam, em razão da sua grandeza, ou
escolhendo, entre as partes na lide, segundo a situação social delas, seu
poderio, opulência e conspicuidade. Porque quanto mais armados estão de tais
armas os poderosos, mais inclinados é de recear que sejam à extorsão contra os
menos ajudados da fortuna; e, por outro lado, quanto maiores são os valores demandados e maior, portanto, a lesão argüida, mais grave
iniqüidade será negar a reparação, que se demanda.
Não vos mistureis com os togados, que contraíram
a doença de achar sempre razão ao Estado, ao Governo, à Fazenda; por onde os
condecora o povo com o título de "fazendeiros". Essa presunção de
terem, de ordinário, razão contra o resto do mundo, nenhuma lei a reconhece à
Fazenda, ao Governo, ou ao Estado.
Antes, se admissível fosse aí qualquer presunção, havia de ser em sentido
contrário; pois essas entidades são as mais irresponsáveis, as que mais abundam
em meios de corromper, as que exercem as perseguições, administrativas,
políticas e policiais, as que, demitindo funcionários indemissíveìs,
rasgando contratos solenes, consumando lesões de toda a ordem (por não serem os
perpetradores de tais atentados os que os pagam), acumulam, continuamente,
sobre o tesoiro público terríveis responsabilidades.
No Brasil, durante o Império, os liberais tinham por artigo do seu programa cercear os privilégios, já espantosos, da
Fazenda Nacional. Pasmoso é que eles, sob a
República, se cem-dobrem ainda, conculcando-se,
até, a Constituição, em pontos de alto melindre, para assegurar ao Fisco esta
situação monstruosa, e que ainda haja quem, sobre todas essas conquistas, lhe
queira granjear a de um lugar de predileções e vantagens na consciência
judiciária, no foro íntimo de cada magistrado.
Magistrados futuros, não vos deixeis contagiar de contágio tão maligno. Não negueis jamais ao Erário, à
Administração, à União, os seus direitos. São tão invioláveis, como quaisquer
outros. Mas o direito dos mais miseráveis dos homens, o direito do mendigo, do
escravo, do criminoso, não é menos sagrado, perante a justiça, que o do mais
alto dos poderes. Antes, com os mais miseráveis é que a justiça deve ser mais
atenta, e redobrar de escrúpulo; porque são os mais mal defendidos, os que
suscitam menos interesse, e os contra cujo direito conspiram a inferioridade na
condição com a míngua nos recursos.
Preservai, juizes de amanhã., preservai vossas
almas juvenis desses baixos e abomináveis sofismas. A ninguém importa mais do
que à magistratura fugir do medo, esquivar humilhações, e não conhecer
cobardia. Todo o bom magistrado tem muito de heróico em si mesmo, na pureza
imaculada e na plácida rigidez, que a nada se dobre, e de nada se tema, senão
da outra justiça, assente, cá embaixo, na consciência das nações, e culminante,
lá em cima, no juízo divino.
Não tergiverseis com as vossas responsabilidades, por mais atribulações
que vos imponham, e mais perigos a que vos exponham. Nem receeis soberanias da
terra: nem a do povo, nem a do poder. O povo é uma torrente, que rara vez se
não deixa conter pelas ações magnânimas. A intrepidez do
juiz, como a bravura do soldado, o arrebatam, e fascinam. Os governos
investem contra a justiça, provocam e desrespeitam a tribunais; mas, por mais
que lhes espumem contra as sentenças, quando justas, não terão, por muito
tempo, a cabeça erguida em ameaça ou desobediência diante dos magistrados, que
os enfrentem com dignidade e firmeza.
Os presidentes de certas repúblicas são, às vezes, mais intolerantes com
os magistrados, quando lhes resistem, como devem, do que os antigos monarcas
absolutos. Mas, se os chefes das democracias de tal jaez se esquecem do seu
lugar, até o extremo de se haverem, quando lhes pica o orgulho, com os juizes
vitalícios e inamovíveis de hoje, coma se haveriam com ou ouvidores e
desembargadores d'El-Rei
Nosso Senhor, frágeis instrumentos nas mãos de déspotas coroados, - cumpre aos
amesquinhados pela jactância dessas rebeldias ter em mente que, instituindo-os
em guardas da Constituição contra os legisladores e da lei contra os governos,
esses pactos de liberdade não os revestiram de prerrogativas ultramajestáticas, senão para que a sua autoridade não
torça às exigências de nenhuma potestade humana.
Os tiranos e bárbaros antigos tinham, por vezes, mais compreensão real da
justiça que os civilizados e democratas de hoje. Haja vista a história, que nos
conta um pregador do século XVII.
"A todo o que faz pessoa de juiz, ou ministro", dizia o orador
sacro, "manda Deus que não considere na parte a razão de príncipe
poderoso, ou de pobre desvalido, senão só a razão do seu próximo...Bem
praticou esta virtude Canuto, rei dos Vândalos, que,
mandando justiçar uma quadrilha de salteadores, e pondo um deles embargos de
que era parente d'El-Rei, respondeu: Se provar ser
nosso parente, razão é que lhe façam a forca mais alta".
Bom é que os bárbaros tivessem deixado lições tão inesperadas às nossas
democracias. Bem poderia ser que, barbarizando-se com esses modelos,
antepusessem elas, enfim, a justiça ao parentesco, e nos livrassem da peste das
parentelas, em matérias de governo.
Como vedes, senhores, para me não chamarem a mim
revolucionário, ando a catar minha literatura de hoje nos livros religiosos.
Outro ponto dos maiores na educação do magistrado: corar menos de ter
errado que de se não emendar. Melhor será que a sentença não erre. Mas, se cair
em erro, o pior é que se não corrija. E, se o próprio autor do erro o remeditar, tanto melhor; porque tanto mais cresce, com a
confissão, em crédito de justo, o magistrado, e tanto mais se soleniza a
reparação dada ao ofendido.
Muitas vezes, ainda, teria eu de vos dizer: Não façais, não façais. Mas
já é tempo de caçar as velas ao discurso. Pouco agora vos direi.
Não anteponhais o draconianismo à eqüidade.
Dados a tão cruel mania, ganharíeis, com razão, conceito de maus, e não de
retos.
Não cultiveis sistemas, extravagâncias e singularidades. Por esse meio
lucraríeis a néscia reputação de originais; mas nunca a de sábios, doutos, ou
conscienciosos.
Não militeis em partidos, dando à política o que deveis à imparcialidade.
Dessa maneira venderíeis as almas e famas ao demônio da ambição, da intriga e
da servidão às paixões mais detestáveis.
Não cortejeis a popularidade. Não transijais com as conveniências. Não
tenhais negócios
Por derradeiro, amigos de minha alma, por derradeiro, a última, a melhor
lição da minha experiência. De quanto no mundo tenho visto, o resumo se abrange
nestas cinco palavras:
Não há justiça, onde não haja Deus.
Quereríeis que vo-lo demonstrasse? Mas seria perder tempo, se já não
encontrastes a demonstração no espetáculo atual da terra, na catástrofe da
humanidade. O gênero humano afundiu-se na matéria, e
no oceano violento da matéria flutuam, hoje, os destroços da civilização meio
destruída. Esse fatal excídio está clamando por Deus.
Quando ele tornar a nós, as nações abandonarão a guerra, e a paz, então,
assomará entre elas, a paz das leis e da justiça, que o mundo ainda não tem,
porque ainda não crê.
A justiça humana cabe, nessa regeneração, papel essencial. Assim o saiba
ela honrar. Trabalhai por isso os que abraçardes essa
carreira, com a influência da altíssima dignidade que do seu exercício
recebereis.
Dela vos falei, da sua grandeza e dos seus deveres, com a incompetência
de quem não a tem exercido. Não tive a honra de ser magistrado. Advogado sou, há cinqüenta anos, e, já agora, morrerei
advogado.
E, entretanto, da advocacia no Brasil, da minha profissão, do que nela,
em experiência, acumulei, praticando-a, que me não será dado agora tratar. A
extensão já demasiadíssima deste colóquio em
desalinho não me consentiriaria acréscimo tamanho.
Mas que perdereis, com tal omissão? Nada.
Na missão do advogado também se desenvolve uma espécie de magistratura.
As duas se entrelaçam, diversas nas funções, mas idênticas no objeto e na
resultante; a justiça. Com o advogado, justiça militante. Justiça imperante, no magistrado.
Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado. Nelas se
encerra, para ele, a síntese de todos os mandamentos. Não desertar a justiça,
nem cortejá-la. Não lhe f altar com a fidelidade, nem lhe recusar o conselho.
Não transfugir da legalidade para a violência, nem trocar a ordem pela anarquia.
Não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínio a estes contra
aqueles. Não servir sem independência à justiça, nem quebrar da verdade ante o
poder. Não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniqüidade
ou imoralidade. Não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das
perigosas, quando justas. Onde for apurável um grão, que seja,
de verdadeiro direito, não regatear ao atribulado o consolo do amparo judicial.
Não proceder, nas consultas, senão com a imparcialidade real do juiz nas
sentenças. Não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura.
Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Servir aos
opulentos com altivez e aos indigentes com caridade. Amar a pátria, estremecer
o próximo, guardar fé em Deus, na verdade e no bem.
Senhores, devo acabar. Quando, há cinqüenta
anos, saía eu daqui, na velha Paulicéia, solitária e brumosa, como hoje saís da
transfigurada metrópole do máximo Estado brasileiro, bem outros eram este país
e todo o mundo ocidental.
O Brasil acabava de varrer do seu território a invasão paraguaia, e, na
América do Norte, poucos anos antes, a guerra civil limpara da grande república
o cativeiro negro, cuja agonia esteve a pique de a soçobrar
despedaçada. Eram dois prenúncios de uma alvorada, que doirava
os cimos do mundo cristão, anunciando futuras vitórias da liberdade.
Mas, ao mesmo tempo, a invasão germânica alagava terras de França,
deixando-a violada, transpassada no coração e cruelmente mutilada, aos olhos
secos e indiferentes das outras potências e mais nações européias, grandes ou
pequenas.
Ninguém percebeu que se estavam semeando o cativeiro e a subversão do
mundo. Daí a menos de cinqüenta anos, aquela atroz exacerbação do egoísmo
político envolvia culpados e inocentes numa série de convulsões, tal, que
acreditaríeis haver-se despejado o inferno entre as nações da terra, dando ao
inaudito fenômeno humano proporções quase capazes de representar, na sua
espantosa imensidade, um cataclismo cósmico. Parecia estar-se desmanchando e
aniquilando o mundo. Mas era a eterna justiça que se mostrava. Era o velho
continente que principiava e expiar a velha política, desalmada, mercantil e
cínica, dos Napoleões, Metternichs
e Bismarcks, num ciclone de abominações inenarráveis,
que bem depressa abrangeria, como abrangeu, na zona
das suas tremendas comoções, os outros continentes, e deixaria revolvido o orbe
inteiro em tormentas catastróficas, só Deus sabe por quantas gerações além dos
nossos dias.
O Briareu do inexorável mercantilismo que
explorava a humanidade, o colosso do egoísmo universal, que, durante um século,
assistira impassível à entronização dos cálculos dos governos sobre os direitos
dos povos, o reinado ímpio da ambição e da força rolava, e se desfazia, num
desmoronamento pavoroso, levando por aí a rojo impérios e dinastias, reis,
domínios, constituições e tratados. Mas a medonha intervenção dos poderes
tenebrosos do nosso destino mal estava começada. Ninguém poderia conjeturar
ainda como e quando acabará.
Neste canto da terra, o Brasil "da hegemonia sul-americana", entreluzida com a guerra do Paraguai, não cultivava tais
veleidades, ainda bem que, hoje, de todo em todo extintas Mas encetara uma era
de aspirações jurídicas e revoluções incruentas. Em
1888 aboliu a propriedade servil. Em 1889 baniu a coroa, e organizou a
república. Em 1907 entrou, pela porta de Haia, ao
concerto das nações. Em 1917 alistou-se na aliança da civilização, para
empenhar a sua responsabilidade e as suas forças navais na guerra das guerras,
em socorro do direito das gentes, cujo código ajudara a organizar na Segunda
Conferência da Paz.
Mas, de súbito, agora, um movimento desvairado parece estar-nos levando,
empuxados de uma corrente submarina, a um recuo inexplicável. Diríeis que o
Brasil de 1921 tendesse, hoje, a repudiar o Brasil de 1917. Por quê? Porque a
nossa política nos descurou dos interesses, e, ante isso, delirando em acesso
de frívolo despeito, iríamos desmentir a excelsa tradição, tão gloriosa, quão
inteligente e fecunda?
Não; senhores, não seria possível. Na resolução
de 1917 o Brasil ascendeu à elevação mais alta de toda a nossa história. Não
descerá.
Amigos meus, não. Compromissos daquela natureza, daquele alcance, daquela
dignidade não se revogam. Não convertamos uma questão de futuro em questão de
relance. Não transformemos uma questão de previdência em questão de cobiça. Não
reduzamos uma imensa questão de princípios a vil questão de interesses. Não
demos de barato a essência eterna da justiça por uma rasteira desavença de
mercadores. Não barganhemos o nosso porvir a troco de um mesquinho prato de
lentilhas. Não arrastemos o Brasil ao escândalo de se dar em espetáculo à terra
toda como a mais fútil das nações, nação que, à distância de quatro anos, se
desdissesse de um dos mais memoráveis atos de sua vida, trocasse de idéias,
variasse de afeições, mudasse de caráter, e se renegasse a si mesma.
Ó, senhores, não, não e não! Paladinos, ainda ontem, do direito e da
liberdade, não vamos agora mostrar os punhos contraídos aos irmãos, com que
comungávamos, há pouco, nessa verdadeira cruzada. Não percamos, assim, o
equilíbrio da dignidade, por amor de uma pendência de estreito caráter
comercial, ainda mal liquidada, sobre a qual as explicações dadas à nação pelos
seus agentes, até esta data, são inconsistentes e furta-cores. Não culpemos o
estrangeiro das nossas decepções políticas no exterior, antes de averiguarmos
se os culpados não se achariam aqui mesmo, entre os a quem se depara, nestas
cegas agitações de ódio a outros povos, a diversão mais oportuna dos nossos
erros e misérias intestinas.
O Brasil, em 1917, plantou a sua bandeira entre as da civilização nos
mares da Europa. Daí não se retrocede facilmente, sem quebra da seriedade e do
decoro, se não dos próprios interesses. Mais cuidado
tivéssemos, em tempo, com os nossos, nos conselhos da paz, se neles
quiséssemos brilhar melhor do que brilhamos nos atos da guerra, e acabar sem
contratempos ou dissabores.
Agora, o que a política e a honra nos indicam, é outra coisa. Não
busquemos o caminho de volta à situação colonial. Guardemo-nos
das proteções internacionais. Acautelemos-nos das invasões econômicos. Vigiemo-nos das potências absorventes e das raças
expansionistas. Não nos temamos tanto dos grandes impérios já saciados, quanto
dos ansiosos por se fazerem tais à custa dos povos indefesos e mal governados.
Tenhamos sentido nos ventos, que sopram de certos quadrantes do céu. O Brasil é
a mais cobiçável das presas; e, oferecida, como está, incauta, ingênua, inerme,
a todas as ambições, tem, de sobejo, com que fartar
duas ou três das mais formidáveis.
Mas o que lhe importa, é que dê começo a governar-se a si mesmo;
porquanto nenhum dos árbitros da paz e da guerra leva em conta uma
nacionalidade adormecida e anemizada na tutela
perpétua do governos, que não escolhe. Um povo
dependente no seu próprio território e nele mesmo sujeito ao domínio de
senhores não pode almejar seriamente, nem seriamente manter a sua independência
para com o estrangeiro.
Eia, senhores!
Mocidade viril! Inteligência brasileira! Nobre nação explorada! Brasil de ontem
e amanhã! Dai-nos o de hoje, que nos falta.
Mãos à obra da reivindicação de nossa perdida autonomia; mãos à obra da
nossa reconstituição interior; mãos à obra de reconciliarmos a vida nacional
com as instituições nacionais; mãos à obra de substituir pela verdade o
simulacro político da nossa existência entre as nações. Trabalhai por essa que
há de ser a salvação nossa. Mas não buscando salvadores. Ainda vos podereis
salvar a vós mesmos. Não é sonho, meus amigos; bem
sinto eu, nas pulsações do sangue, essa ressurreição ansiada. Oxalá não se me
fechem os olhos, antes de lhe ver os primeiros indícios no horizonte. Assim o
queira Deus.
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística