Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Discurso de posse na ABL de Emílio de Menezes


Edição referência:

Obra Reunida, de Emílio de Menezes,

Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.

1 CONFRADES E MESTRES.

2 Fastidioso vai ser este quarto de hora em que sois forçados a ouvir-me.

3 Circunstâncias de ordem íntima e, por isso mesmo, imperiosas, vão levar-me a um discurso personalíssimo em que falarei mais de mim que do meu ilustre antecessor nesta cadeira. Tal procedimento traria a eiva de exibição ou vaidade, não fora o desejo ardente de um desabafo; não fora o aproveitamento da oportunidade única que se me apresenta para esclarecer pontos da minha pobre vida tão mal-julgada, pontos, aliás, que não elucidaria, não se relacionassem eles com a nunca sonhada honra da minha eleição para membro desta casa.

Faço do momento, que tão propício se me depara, um acantábolo para arrancar espinhos que de há muito me pungem.

Dizer-vos que nunca desejei fazer parte da vossa nobre agremiação, seria mentir à minha própria consciência. Afirmar, entretanto,o emprego dos esforços desairosos que se me atribuem para a conquista da insigne distinção de ser dos vossos, sobre ser um meio de escapulir aos limites da verdade, é transbordar dos da decência.

Fundada a Academia, se eu a não recebi com as irreverências e até torpezas, cuja paternidade me foi dada, não tive para com ela, é certo, grandes e entusiásticos aplausos. Influências múltiplas da época fizeram tomar, à primeira vista, o novo instituto literário como um enxerto, uma cópia, uma espécie de naturalização de hábitos infensos às nossas tradições e usanças. Por essas influências não era eu o único dominado. Era uma corrente quase geral, como bem o podem atestar todos os membros sobreviventes à sua fundação.Essa atmosfera, senão de hostilidade, de suspeição, em que talvez houvesse despeito e inveja, envolveu por espaço, mais ou menos longo, a Academia.

O tempo, a consideração que ela foi adquirindo, com presteza e segurança, o reconhecimento da sua ação profícua e, sobretudo, a elevação de espírito e caráter do principal fundador e dos seus companheiros, foram os fatores que mais concorreram para modificar as primeiras  impressões suspeitosas com que a opinião dos "novos" (alguns dos quais bem velhos, por sinal), recebeu a venerável Companhia.

Eu, por meu lado, já tinha aqui, entre grandes e queridos amigos,os meus maiores e mais amados mestres: Alberto de Oliveira, Olavo Bilac, Luís Murat, Raimundo Correia, para citar somente os poetas. Via aqui, além desses, reunidas, mais que reunidas, unidas no mesmo esforço e no mesmo ideal, as individualidades genuinamente representativas da nossa inteligência e da nossa cultura. Culminando todas, eu divisava as figuras máximas: - o vulto indecifravelmente grande de Machado de Assis, até hoje inatingido por um juízo que o defina em toda a sua, complexidade, apesar do monumental trabalho de  Alfredo Pujol ou do perspícuo e erudito estudo de Alcides Maya, e essa indizível projeção de luz que é o nome de Rui Barbosa. De

Rui Barbosa, cuja obra faz reviver em mim um espetáculo da minha terra, desse paradisíaco pedaço da pátria brasileira, espetáculo que constitui uma das maiores maravilhas da natureza. É o Salto das Sete-Quedas. O Rio Paraná, oceanicamente largo, abrupto, se represa numa garganta angustiosa e formidável massa dágua, assim represada, abruptamente, tomba em cachoeira, de tal altura e com tal violência que, de novo, se levanta formando uma montanha líquida. Diariamente, às horas claras do sol, nessa montanha de cristal fluido, há a formação do espectro solar. É o arco-íris. É a mais bela manifestação da luz celeste a aureolar a maior das energias da terra pátria. Um dos grandes vultos da nossa engenharia afirmou ser essa catarata, por si só, suficiente para fornecer força e luz a toda a extensão territorial do Brasil. Não sei se com esta comparação consigo dizer a obra do Mestre. Ele que me perdoe se por mesquinha a tiver.

Bastavam esses elementos para que houveses em mim a aspiração vaga, o desejo mal definido, de um dia poder sentar-me ao vosso lado. Essa aspiração e esse desejo nunca se corporificaram, porém, em vontade firme, por motivos diversos.

Apesar da minha aparente sociabilidade alegre ou risonha, sou um retraído, não por orgulho, senão por timidez.

Além disso fui sempre, mais ou menos, avesso à influência das coletividades, nunca tendo pertencido à grêmios, associações ou grupos, sendo, em arte, um insulado. Esse meu natural  retraimento se agravou por causas que estas palavras não comportam.Tive, é certo, um período, aliás efêmero, de alto convívio social, voltando à primitiva modéstia, quando se me escoou das mãos inábeis e desinteressadas, uma pequena fortuna por mim adquirida, pois, se pobre nasci, rico me não casei, visto a má vocação para caçador de dotes, coisa de tantos, tão à feição. Digo isto por talvez não faltarem moços e donzéis que só ambicionam a imortalidade dos louros acadêmicos, como auxilio ornamental na pesquisa de herdeiras ricas.

Direis que longa e fatigante vai esta divagação e sou dos primeiros a acordar convosco. De muito menos talvez precisasse para dizer-vos das causas pelas quais nunca entrou nas minhas cogitações, nas minhas aspirações claras e definidas, a possibilidade de um dia sentir-me orgulhoso dos vossos sufrágios. Não teria coragem de solicitá-los por julgar empresa arriscada e inútil. Seria tentar uma escalada ao supremo inatingível. Em certo dia,entretanto, tive notícia de haver sido procurado por Sousa Bandeira, Raimundo Correia e Graça Aranha, os quais me deixaram hora para encontro. Não sei como dizer do meu pasmo e da minha emoção, ao ouvir dos meus três amigos, o conselho, e após o conselho a solicitação do meu nome como concorrente a uma cadeira na Academia. Mal lhes pude responder, tal o embaraço e a perplexidade em que me encontrei nesse inesquecível instante. Graça Aranha vivo está. Não me sinto na obrigação de apelar para o seu testemunho, porque ridículo e imoral seria da minha parte o abalançar-me a afirmações de possível desmentido. Morto Sousa Bandeira, que foi um dos meus melhores amigos e um dos amparadores do meu nome, resta sua digna família, conhecedora desse fato.

Nessa mesma tarde, ainda comovido, encontrei-me com Rodrigo Otávio, a quem comuniquei o que se passara. Maior ainda foi a minha emoção ao saber dias depois, que Rio Branco era quem mais se interessava por mim e que Graça Aranha me procurava não só em seu próprio nome, como no de emissário do grande brasileiro. Ainda assim, não tive coragem de apresentar-me e, sucessivamente, por três vezes, o receio me dominou até assumir o compromisso verbal com Rio Branco, que certa manhã me mandou chamar, por Ernesto Sena, à Galeria Cruzeiro, onde se achava acompanhado de dois funcionários, ainda vivos, do seu Ministério e, após palavras não reproduzidas aqui por me serem demasiadamente envaidecedoras, obrigou-me a assumir esse compromisso. Já então eu me sentia amparado por manifestações comovedoramente carinhosas de antigos amigos e companheiros, aos quais se vieram juntar, com surpresa e orgulho para mim, a grande e luminosa personalidade de Pedro Lessa e a modéstia santa e sábia de Inglês de Sousa. De Rui Barbosa, cujo voto, mais que voto, me foi benção, já havia recebido eu, por intermédio de um amigo, a notícia do seu carinhoso acolhimento.

Achareis, provavelmente insólitas e inoportunas estas explicações. Vereis, em breve, que elas têm razão de ser. Depois do que acabais de ouvir e apesar disso, houve quem afirmasse ter eu usado até de ameaça de sátiras mordacíssimas contra os que em mim não votassem. Isto, se não perecesse pela própria. torpeza, melindraria mais à Academia que a mim. Seria pensar que nesta casa houvesse alguém capaz de se intimidar com semelhantes ameaças. Seria pensar, para só falar no maior dos maiores, que Rui Barbosa, cuja vida tem sido uma série ininterrupta de atos de coragem, combatendo e abatendo gigantes da pena e da palavra, descesse a dar atenção a tal indecência. Daí, talvez o autor dessa indecência tenha razão, porque, infelizmente, entre nós, não há injúrias soezes com pretensão a humorismo, calúnias torpes sob o pseudônimo de sátiras e pornografias desvernaculizadas, que me não sejam atribuídas. Há mais. Há quem se apropria por furto ou doação humilde e rastejantemente solicitada, do trabalho literário de outrem, e depois pague o dano ou indenize o dono transferindo-lhe a propriedade de todo o lixo de sua Sapucaia moral e intelectual. Quando começou a haver uma quase certeza da minha eleição, os inimigos rancorosos, muitos dos quais só são por coisas cuja paternidade me foi emprestada, redobraram de esforços demolidores. Um a quem eu fizera um soneto inofensivelmente humorítico, estabelecendo a proporção geométrica entre a sua possível vaidade e a sua enorme massa adiposa, disse a pessoas diversas que eu, em tal soneto, havia ofendido a honra do seu lar. Depois disto, só se centuplicando a área e a cubação será possível conseguir o imensurável âmbito em que se acomoda tão insidiosa falsidade, Choveram ápodos, granizaram, intrigas ...

Boêmio e desregrado...

Boêmio e desregrado, porque nos momentos decisivos faz o que qualquer homem medianamente digno tem obrigação de fazer.

Boêmio e desregrado, que nunca foi visto em bordéis ou espeluncas. Boêmio e desregrado, que com mais de trinta anos de residência no Rio, não sabe o que seja um desses celebrizados bailes carnavalescos, onde o meretrício elegante se excita de jogo e condimenta de álcool. Boêmio e desregrado, porque gosta de fazer a sua hora à mesa de um café ou de uma confeitaria, trocando idéias, dizendo ou ouvindo versos e frases de espírito, como faziam e fazem ainda alguns dos que muito brilho emprestam às cadeiras que entre nós ocupam. Posso garantir-vos que essas alegres confabulações literárias, apesar da dose de wisky ou d'água de coco, ou de ambos juntos, segundo a fórmula aceita e consagrada por eminente clínico baiano, são muito mais inocentes, menos demolidores que as reuniões de certas portas de livraria, onde uns gênios incipientes, à espera da primeira desova, enquanto não aparecem as obras nascituras, se vão contentando em demolir os que já se fizeram em reputação. Aí é que os escritores de nome feito devem ir buscar os verdadeiros inimigos que, além do mais, têm a cobardia de atirar para cima de outrem a responsabilidade do que fazem e dizem. Coitados! Querem, abrindo caminho na suntuosidade da floresta virgem, abater cedros e jacarandá com membros que foram feitos para o retuço nos gramados. A esses (a Academia que me perdoe o emprego de um vocábulo que, além de mau inquilino da nossa língua, é de gíria e só agasalhado pelo noticiário policial), a esses pivetes da literatura, junta-se infalível e diariamente, às mesmas longas horas e à mesma soleira, uma classe dez vezes mais venenosa. mil vezes mais perigosa. É a dos velhos inéditos à força de publicidade. É composta de uns venerandos senhores que já publicaram por dezenas de anos, dezenas de livros, volumosos e ponderados, mas sem alguém que lhes repita o nome.Daí a intoxicação pelo ineditismo e o ódio à repercussão do nome alheio . Houve quem os comparasse a essas máquinas de costura. aperfeiçoadas, que gozem anos e anos consecutivos sem que se lhes ouça o ruído. A comparação seria melhor se mais completa o fosse, determinando a causa do silêncio. O costureiro quase sempre é perito e a máquina perfeita. A culpa não é nem de um nem de outra. Não é da pena nem do cérebro. É da obra. Há obras, tanto em literatura como em costura, que são feitas para os recessos da intimidade. Compreende-se que um alfaiate granjeie fama pela correção e pelo gosto no acabamento de um par de calças. Por quê? Por ser coisa que aparece, é vista, foi feita para o trânsito das ruas e praças, para o passeio às praias e aos jardins, para o teatro e para os grandes bailes à ação da grande luz. O, de todo, impossível, é adquirir renome fazendo. ... ceroulas. Levam a vida esses senhores a perder saúde e alegria no trabalho árduo e obscuro de unir fundilhos de ceroulas, para hospitais ou quartéis e depois se envenenam com a nomeada dos grandes alfaiates. Os pivetes urdidores do fio da intriga, unidos aos anciãos cerouleiros, fazem a greve (agasalhemos o termo) permanente contra o capital ... depredando o nome. Sabem que este representa aquele. Os primeiros me não toleram como não toleram todos aqueles que já atingiram o cume da montanha, que tal é, para mim, o estar entre vós. Os segundos. os cerouleiros, me abominam por isso e mais, talvez, pela injusta fama que adquiri de. ... ... cortador de casacas.

Cansei-vos, bem o sei. Só me não cansei a mim, por já me ser impossível aumentar o cansaço que de longe trago.

Dês que tão inconvenientemente vos falei de mim, vou dizer-vos quão difícil me é falar do meu antecessor, não por se lhe não encontrar na vida e na obra assunto de monta e realce.

Antes da minha própria franqueza que da sua força me vem essa dificuldade. E tanto maior é a franqueza quando se deriva de fontes fortes e diversas.

Em primeiro lugar já sentistes, pelo descosido do que acima disse, as incertezas e vacilações com que manejo a prosa, dela desabituado desde que deixei o jornalismo e mais assíduo me tomei do exercício do verso. A compreensão que tenho dessas incertezas e vacilações tem retardado a publicação de um ensaio de romance, Pensão Virgínia, já terminado, e que estou expurgando, nas medidas do possível, das arestas ou impulsivas asperezas naturais numa obra feita sob a influência de paixões que precisam ser abrandadas para não fugir às raias da justeza e da verdade.

Em segundo lugar seria abalançar-me aos riscos de um estudo crítico, para o que nunca tive a menor vocação, tendo mesmo sobre esse gênero de literatura, uma opinião que de todo não será agradável aos que o cultivam. É, para mim, uma quase função da incompetência, pois denota, não raro, a incapacidade de produzir. É uma espécie de eunuquismo mental, o contentar-se, na impossibilidade de fazer obra própria, em espinçar na alheia o fio precocemente encanecido, que porventura exista, na opulência de uma cabeleira negra ou loura.

Esses dois motivos se dilatam fundindo-se em um que, encerrando-se, mais os avoluma, dando a cada um de si, proporções maiores e mais graves. É que tenho de falar de uma personalidade com quem nunca mantive relações apesar de amigo que era de Lúcio de Mendonça e que, só me conhecendo através da opinião que de mim formam pivetes e cerouleiros, foi dos que mais repulsa manifestaram pelo meu nome. Nessas condições, se por escassez da minha própria compreensão ou por existência real lhe encontrasse na vida e na obra coisa de reparo, seria forçado a calar não só por motivos de pragmática, o que sempre repugnou ao  meu temperamento, como para evitar a pecha de exercer vingança póstuma. Feliz seria ainda se os seus  amigos, ao lado dos meus inimigos me não atirassem a apóstrofe de Baudelaire a um crítico de Edgar Poe,  apóstrofe em que vai um grande espanto por não existir nos Estados Unidos uma lei proibindo a entrada de cães no cemitério.

Não me deterei muito, por isso, ao atravessar a sua seara, vasta e fecunda é verdade, mas por muito plana  pouco interessante. É uma dessas grandes planícies com os repetidos espetáculos diários de aurora e ocaso  nos horizontes dilatados, mas sem os imprevistos, sem as surpresas de perspectiva que são o melhor da arte. Em compensação, a sua vida jornalística e política, cheia de impetuosidades e desafogos, nem sempre  adaptáveis ao justo e ao razoável, é cheia de acidentes verdadeiramente inesperáveis para quem, com minúcia, a investiga. Em muitos pontos as oscilações e esquivanças da sua orientação, política se  refletiram na vida diplomática, na qual, muitas vezes é certo, foi acusado injustamente por força de despeitos, rivalidades e animosidades antigas. Nessas ocasiões o seu esforço era impetuosíssimo

e poucas vezes se acomodava ao comedimento indispensável a um diplomata.

Há na vida de Salvador de Mendonça, de tão difícil apreensão, um traço de suave e melancólica poesia que a perfuma e aformoseia toda.

É a revivescência do seu primeiro sonho de amor.

Velho, fez reflorir na velhice o melhor trecho da mocidade de um homem. Morreu entre as rosas que  cultivava paternalmente. Dizia ele que a sua melhor página era o conto escrito no início da carreira literária, dedicado à mulher amada, à sua primeira noiva e intitulada A tua roseira. Filio a essa  roseira todas as outras que ele, já velho, cultivou. Suave e melancólica, disse eu. Quanta poesia e quanta melancolia. Cultivando as suas flores prediletas, por intermédio das filhas, solícita e santamente dedicadas, ele, cego, não lhes podia ver a forma e a cor. Era obrigado a senti-las tão só pelo olfato e pelo tato e, desgraçadamente, nem todas as rosas têm perfume e quase todas têm espinhos. Como vos seria  melhor se em vez de tanta palavra inútil, e tanta coisa má, por comoção e orgulho de aqui estar,  tivesse eu emudecido numa longa, numa interminável, numa dolorosa reticência...

Jornal do Commercio, Rio de Janeiro. 7 jun. 1918.

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