Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos


LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

PARECER LITERÁRIO, de Emílio de Menezes


Obra de referência:
Obra Reunida, de Emílio de Menezes,
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.

 
 

                                         PARECER DE CONCURSO LITERÁRIO
 

"O Sr. Garcia Redondo, convidando-me pela Gazeta de Notícias para indicar publicamente quais os escritos franceses que tratam, com mais ou menos variantes, do assunto que S. S' se serviu para o seu conto. O Modelo, apresentado ao concurso literário da mesma Gazeta, revelou ter sido insensível à extrema delicadeza com que o tratei em meu parecer, e ao empenho com que procurei pôr a coberto a sua reputação literária.

Convidado pela Gazeta de Notícias para seu árbitro, na questão da autoria do referido conto, aceitei a incumbência, primeiro, por não ter motivos para declinar de uma honra que me vinha ao encontro num apelo à minha imparcialidade literária; segundo, porque tratando-se de uma questão facilmente solúvel em vista da fina educação das pessoas interessadas, poderia eu agir sem ferir suscetibilidades.

Procurei, no meu parecer, harmonizar os direitos de cada um, justificando o procedimento dos membros do júri e salvando a honrabilidade literária do Sr. Garcia Redondo.

O meu parecer, em resumo, foi este: 1º Justificava o procedimento dos julgadores em suspeitarem da origem francesa do conto aludido, além de outras razões, por ter sido o "assunto, de que se ocupava, tratado com mais ou menos variantes em diversos escritos franceses", sendo muitíssimo natural que é sua leitura viesse ao espírito dos julgadores a recordação de um desses escritos. 2º Aceitava a autoria do conto, pela "honorabilidade que merecia a afirmação do Sr. Garcia Redondo", opinando pelo pagamento da multa que se impusera a Gazeta, apesar da não originalidade do assunto.

Resumindo mais: tratava-se de um "conto da autoria" do Sr. Garcia Redondo, e assim entenderam todas as pessoas que me leram, havendo mesmo, dentre os íntimos de S.Sª quem me agradecesse o lhe haver sido tão manifestamente favorável.

Acrescentarei, ainda, que houve quem me acusasse de exageradamente generoso para com um antagonista, na minha qualidade de árbitro.

Não o entendeu assim o Sr. Garcia Redondo, e vem, à outrance, procurar se defender das acusações que lhe não foram feitas.

 Não fora a minha posição especial de árbitro e tratar, por conseguinte, por delegação de outrem, eu não responderia ao apelo de S.Sª em vista da manifesta injustiça nele contida.

Aceito-o, porém, e começo de expor a questão, esforçando-me por ser calmo e delicado, como me é habitual.

Na qualidade de árbitro da Gazeta de Notícias, não me competia provar, como julga S.Sª que o seu trabalho era tradução, e sim procurar os meios de justificar a suspeita de que o fosse, conforme entenderam os membros do júri.

Justifiquei-a como disse, além de outras razões, "por ter sido o assunto desse trabalho tratado com mais ou menos variantes em diversos escritos franceses, etc."

Foi nesse ponto que S.Sª julgou encontrar uma insinuação malévola, e, menos generoso do que eu, que só tive como documento a seu favor o seu nome e a sua palavra, julgando-me talvez capaz de lançar uma afirmação menos verdadeira, provoca-me a citar esses escritos.

Comecemos:

Há um romance francês de Henri Greville (edição Plon., Nourrit & C.), intitulado Péril, cujo personagem principal é um pintor que, por motivos que não interessam à questão, abandona Paris, e vai para um recanto da Bretanha (págs. 165 e segs.)

Após os enervamentos dos primeiros tempos de amor com sua amante e noiva, ela própria, na  sua qualidade de mulher superior, inteligente e artista, é que o estimula ao trabalho, antegozando a glória dos sucessos prováveis.

Aparece, porém, a dificuldade de um modelo, e, após diversos alvitres abandonados; ela, sua amante e noiva, encontra meios de lhe aparecer bruscamente nua sobre um fundo de gruta, à beira-mar, para onde o havia conduzido.

Começa, então, o trabalho da "Ondina", em que o artista põe toda a sua alma, copiando o admirável corpo da mulher amada.

As semanas se sucedem, o trabalho avança, e uma vez concluído o corpo surge outra dificuldade: o rosto, a cabeça. Que alvitre tomar? - Recorrer a outro modelo para a cabeça? - Mas que cabeça poderia fazer ensemble com aquele corpo inimitável, único? - Novo desânimo do artista, e nova idéia fornecida ainda por la: a sua própria cabeça serviria, desde que fosse envolta na sua basta "cabeleira negra", na qual o rosto ficaria inteiramente velado, sem receio portanto de ser reconhecido.

É essa "cabeleira negra" que dá toda vida, todo o destaque à tela, evidenciando o contraste da cor sobre a pele branca da "Ondina".

Vem após o sucesso do "Salão", onde a multidão dos entendidos pára maravilhada ante o esplendor daquela carne suntuosa, pronun-ciando nomes, segredando suposições, etc.

Há também  um amador de arte, amigo do pintor, que o tinha visto na Bretanha, julga-o perdido para a arte, absorvido pela paixão da mulher, etc.

Eis aqui, pois, uma das "variantes" da questão.

Se, por acaso, fui infundadamente impressionado pela flagrante coincidência dos assuntos, esse erro crítico, certo, não foi só meu. Teve-o também Figueiredo Coimbra, que antes de mim, leu o Péril; teve-o Pedro Rabelo; teve-o Luís Gonzaga Duque Estrada e teve-o Lima Campos.

Realmente não haverá nisto tudo a coincidência do local, - a Bretanha? Do assunto, - um "nu", e um nu em identidade de condições - a aproximação da água?

Do contraste, o tom negro da máscara de veludo e da cabeleira negra sobre a alvura do corpo? - Não há, além disto, a circunstância desse amador de arte que, pelo mesmo motivo, julga um artista perdido?

A diferença capital entre os dois trabalhos é esta:

No livro de Greville a amante se oferece para modelo, e o artista "conhece" o corpo que está pintando, o que é natural. No conto do Sr. Redondo, a esposa se oferece usando um estratagema  o de uma máscara negra; - de modo que o artista "ignora" que está pintando o corpo de sua própria mulher, o que é inverossímil.

Mas estará nisso a originalidade da idéia do Sr. Garcia Redondo?

Acha-se na redação da Gazeta de Notícias, à disposição das pessoas interessadas, um exemplar do Gil Blas Blustré, de 12 de julho de 1891, onde vem um conto, assinado por Jeanne Thylda, acompanhado da `respectiva gravura", cujo assunto é este, em resumo:

A mulher de Otávio, pintor, está no atelier de seu marido, patenteando a deslumbrante nudez de seu corpo à admiração do artista, tendo o rosto velado por uma "máscara de veludo negro".

"Un masque de velours noir cachait complètement ses traits.

Des yeux bleus luisaient dans les trous du masque.

Ce marbre palpitait, là devant lui et maintenant qu'il le regadait avec une admiration d'artiste et d'homine, maintenant qu'agenouillé devant Ia Jemme il baisait ses pieds nus avec des larmes d'extase, il semblait que ce beau corps se rosait, etc." (pág 5).

Afinal, Otávio reconhece que havia, se mo saber, tido como modelo a sua própria mulher.

Além disso, a vista simples do original, ou da cópia do quadro de Gervex, La Femme au masque, poderia ter dado a Jeanne Thylda o assunto do seu conto, como poderia tê-lo dado ao Sr. Garcia Redondo.

Não estão aí, pois, as variantes do assunto de que se serviu o Sr. Garcia Redondo?

Em vista disto poderia eu afirmar a originalidade desse assunto?

Dadas, entretanto, as condições de honorabilidade literária que me merecia o Sr. Garcia Redondo, toda esta questão, apesar das coincidências, não se deveria resumir para mim nisto apenas: - "um conto do Sr. Garcia Redondo, sobre assunto comum, sem originalidade?"

Nada mais do que evidenciei no meu parecer.

Só à força de muita prevenção se poderia ver nele a intenção de melindrar quem quer que fosse.

Dadas estas explicações, incômodas para mim e para o Sr. Garcia Redondo, só me resta patentear que o meu maior desejo é que S.Sª consiga mostrar ao público que só me provocou a isto para, mais uma vez, provar que é incapaz de emprestar a responsabilidade literária do seu nome a um trabalho que não seja seu.

EMÍLIO DE MENEZES

Rio, 15 de julho de 1894.

Apud. MENEZES, Raimundo de. Emílio de Menezes, o último boémio. São Paulo, Martins, 1960, p. 58-62.

 
 



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