Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

 
LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Prosa literária, de Emílio de Menezes


Obra de referência:
Obra Reunida, de Emílio de Menezes,
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980
 



ÍNDICE

HORRIDA VITA

PARA CANAÃ

NO CORCOVADO

 

HORRIDA VITA

"Eu habitarei o seu corpo, afirmou Satã."
DEBAUNE - A  tentação
"E quando algum dos cidadãos era atacado da sagrada moléstia, Roma dissolviá as suas assembléias."
 GAL
 

1 A luz doente, agônica, de um lampadário verde, vi-o.

2 A luz envolvia-o, nimbava-o, mansa, pressagamente.

3 O olhar fixo, de uma fixidez implacável de idiota, de olhos chamados para dentro, por uma inaudita contração interior de imbecilizado, refletia numa reverberação augural, sonambulesca,

toda aquela encenação silenciosa, secular, de velha Capela, onde os resplendores simbólicos se amontoam, se enfileiram, se superpõem aos Cristos lívidos, contorcidos no desalento das cruzes de ébano, sobre um fundo viúvo de veludo roxo, e nichos, e presepes, e toda a ornamentação ritual da Fé Católica, envolta na luz doente, agônica, de um lampadário verde.

4 E passou-me, cortejalmente pelo espírito, num desfilar processional de símbolos sangrentos, surpreendentes nó imprevisto das combinações delirantes, caleidoscópias da Cor - procissão

lacerante dos Fogaréus da Loucura - a sua história de místico, pontuada, cromatizada já pela entontecedora cambiante das Alucinações.

5 Vinha de trás, da Gênese criminosa, da degenerescência herdada de Pecado, da mendicidade ascorosa e farrapenta de uma surdamuda, fecundada sobre uma arca de paramentos, na Sacristia deserta, por um pálido Vigário de olhar místico e mãos esguias e brancas, desbotadas pelos beijos dos fiéis.

6 Depois, o nascimento a ferros, nidorosamente, no hospital, sob as vistas de doutorandos, à hora de aula prática, saindo daquela maternidade inconsciente como de dentro de um Tratado.

7 E a sua longa amamentação de três anos, sob o sol, através dos aguaceiros, pelos dias tumultuosos e pelas noites desabrigadas, ao relento, servindo de isca aos impulsos da Caridade, como uma tabuleta de Miséria.

8 E veio ainda, a sua entrada solene para o Conforto num dia inaugural, em que foi apanhado da sarjeta, entre elogios de santidade e aplausos de lágrimas, pela infinita Bondade, pela Caridade suprema de um pálido Vigário de olhar místico e mãos esguias e brancas, desbotadas pelos beijos dos fiéis.

9 E ainda a precocidade doentia do Pessimismo, que o fazia rir aos doze anos, rir nervosamente, num riso soluçado e terrível retalhante de sátira sangrenta, onde se lhe sentia a Alma de Artista

e de Neurótico, arrepanhando-se em apertos, em compressões, para não estourar a frágil carcassa cerebral de adolescente.

10   Veio também como o seu cortejo de sonhos faustênicos - visões cabriolantes de formas de Mulher, fundindo-se em bruma modificando-se em névoa, ressurgindo em nimbos, no fundo leite ouro opalino dos êxtases indefinidos - a sua primeira surpresa de virilidade que lhe arrebatou as inocentes ignorâncias infantis, apa- nhadas flagrantemente na nervosa trama compressora das sensações.

11   Para esse período supremo da Vida, em que o 'Homem se define pela vitória da Animalidade na conquista do Sexo, ou a criança se embrenha nos artifícios imbecilizantes que o Instituto lhe descobre, ele tivera a severidade monástica da Sacristia, acolitando missas, turibulando icenso (sie) suas místicas visões de Despertado, mais do que os símbolos rituais da Fé seguida.

1 E era assim que, quando a sua exacerbada Imaginação de nervoso lhe aguçava o desejo das formas vivas, escaldantes de Febre, à realidade baça e mortuária dos fundos de Capela, punha-lhe à vista, a forma litúrgica das "Matar-Dolorosa" estateladas no frio gesso frágil das Imagens.

13   E era de ver, com que estertorante agonia, ele, olhos em alvo, convulso, um laivo de escuma ao canto da boca, beijava-as, enlaçava-as, despia-as, ao fundo das grandes arcas de paramentos, de fechos lavorados em prata, quando lhes ia trocar as roxas vestes comuns do ano pelas ostentosas vestiduras cênicas dos Dias Celebrados.

14   Era de então, dessas alucinadas ocasiões de Pecado, que ele saía numa inconsciência epilética de Crime, esgazeado, quase feroz, dentes cerrados a traçar apocaliticamente, num esforço titânico de Criador, monstruosidades obscenas nas desoladas paredes nuas da velha sacristia.

*

15   Vejo-o agora, ainda e sempre, o olhar fixo, de uma fixidez implacável de idiota, auguramente nimbado, pela luz doente, agônica, ,de um lampadário verde ...

16   E perpetuamente me será fixado no espírito o espetáculo revoltante da sua morte, ao decorrer do grande dia mortuário da sexta-feira, em que se celebrava o Ofício da Paixão.

17   Na atmosfera espessa, fumarenta, do incensório dos turíbulos, sob a nave abobadada, naquele dia cálido, pairava, como evolado no espírito da grande massa de Fiéis, um torpor lento e pesado.

18   O Ofício, arrastado em meio por um Cantochão, monótono e pausado, estuporando as Consciências, foi num súbito despertar de sobressalto, interrompido por um grito agudo de histérica convulsionada abruptamente, em pleno êxtase. E um corpo latescente, de uma brancura de desmaio, na fuga sincopai do sangue, foi trazido quase arrastado, dentre a cerrada concorrência de Fiéis, como numa enchente de grande espetáculo, para a Sacristia, e pousado, inerte sobre uma secular banqueta de marroquim roxo e de alto encosto de ébano talhado em alegorias da Criação.

19   E enquanto o coro sacerdotal, paramentado em gala, na comemoração da Morte do Remidor, arrastava a desolada plangência dos Cânticos num fervor gemido, quase moribundo, de Crenças agonizantes, ele, o acólito de sempre, do Ofício comum, hoje à margem para não destoar a pompa, vinha, trôpego e trêmulo, trazer para a desmaiada a água vivificadora num escorregadio vaso baço de Unções.

20   E ali, em frente àquele corpo de mulher, o vaso d'água na mão, o seu olhar adquiriu de repente o imprevisto brilho dos Desejos que lhe surgiram n'Alma como uma blasfêmia na santificação do dia.

21   E quando os seios premidos da desmaiada, no desacatar solícito das compressoras formas da mundanária elegância, soltaram-se brancos e fartos, ostentando à luz amarelenta dos círios a glória da Carne liberta, ele, diante, pela primeira vez, da sonhada Carne, que lhe passava em torturas pelo doentio espírito tresmalhado, sentiu como que a púrpura sangrenta das apunhalações toldar-lhe a vista. A boca se lhe contraiu num momo, os olhos circularam nas órbitas, a fisionomia toda se lhe arrepanhou para um lado, e num giro macabro de minuto, rodopiou, atirando para cima da desmaiada a fria água despertadora, e caiu.

22  Uma praga esmoreceu nso lábios dos Fiéis, e só a Morte o salvou das explosões de uma hostilidade contida.

23  No dia seguinte, da residência próxima do Vigário, saía ao chouto das esfalfadas alimárias de ofício, na sua silenciosa viagem para a Transformação - romaria humilde para os Sete Palmos - um féretro de pobreza, sem círios e sem lágrimas, à hora exata do meio-dia, em que o rebadalante sábado de Aleluia anuncia por todos os sinos que mais uma vez a Humanidade celebra, em glória e ruído, a Ressurreição do Cristo, da sagrada carne que se não decompõe.

O Paiz, n. 3960, 10 mar. 1893, p. 1

 

PARA CANAÃ

E havia ali, vida vivida.

   DAMIÃO DE GÓES

 A Virgílio Várzea

1 A influência pacificadora daquela hora de ocaso, pondo, intensamente, na vidraçaria da cidade longe, a nota extibera e flamante de um vasto incêndio lento, o meu espírito sentiu, abruptamente,

como numa transfiguração de mágica, todo o sopro épico de alucinação e de gênio daquela grande tela, que me caía diariamente sob o olhar enervado, indiferentemente, como um quadro qualquer, encaixilhado em moldura alemã, para a decoração banal de um interior burguês.

2 E só naquela ocasião calma, depois de um repouso mental de um domingo à chácara, é que pude ver. que, como incendiado também pelo clarão rubro do entardecer, o velho quadro encerrava,

dentro dos seus côvados dourados de moldura, toda a agonia estertorante da alma artista de um Torturado.

3 Através da vidraça antiga, de quadrados coloridos, aquela luz diluente de céu fundido atirava para o quadro, numa técnica de palheta, um tom esverdinhado de lividez pressaga.

4 O "Povo de Israel", em hordas, que descia, como de rochedos remotos, para além da moldura, em busca da planície longa, esterilizada sob a canícula, tomava agora, energicamente, intempestivamente para mim, um destaque brusco de contornos e uma revelação quase vital de expressões fisionômicas, como na visualidade sugestiva de um cosmorama.

5 E o enorme rebanho humano, num mesmo arranque inindividual de locomoção inconsciente e coletiva - caminhar animal de bando que não espera os que ficam e os que caem - parecia agora,

sob a impressionalidade do momento, adquirir na tela o grande avanço triunfal da marcha que o artista lhe quisera caracterizar com todo o esforço alucinado da sua vasta agonia anônima.

6 Marcha triunfal da Família Humana, do Homem miguelan-gelano, de musculaturas bíblicas, animal doce e hercúleo, sonhador e forte, impulsionado pela sugestividade da Fé, para a conquista de uma terra mansa, de repouso e fartura, que lhe era apontada pelo gesto vidente do Profeta.

7 A planície longa, ondulante, dilatava-se. Planos se caracterizavam: cômoros longínquos abrigavam como leitos todos os extenuados.

8 Famélicos, roendo, num desânimo vazio de fraqueza, os últimos pedaços das raízes recordativas dos bosques úmidos e fartos. Mulheres que caíam reptilmente sobre a areia, na contorção dolorosa de uma maternidade desabrigada e difícil. Moribundos de olhar vítreo, num extinguir lento, esaibrando sobre a boca e sobre a face a última golfada de sangue e de baba. Epilepsias violentas, arroxeando fisionomias intumescidas e torcendo bocas espumejantes. Destroncamentos de membros infantis, coleantes sobre a areia cáustica, pegados a torsos embrionários e a crânios fetais imobilizados na derradeira contração de um choro.

9 E na púrpura diluída de auréola que um trecho da vidraça poeirava, consoladoramente, sobre um plano da tela, surgiam, como de um ninho, casais moços retardando-se num enlaçamento prenun cial, alongando para a frente os lábios numa contração oscular de beijo desejado.

10   E para além, para muito além, lá onde há necessidade de alguma coisa que intercepte o céu de roçar com a terra, eram as florestas de lanças primitivas, refulgindo, dentre a farrapada rubra das bandeiras da grande massa gloriosa e inimiga, de exércitos formidandos. Saliências cônicas de fortalezas sobre dorsos morosos de elefantes. Cavalgadas imprevistas sobre dromedários anfractuosos e pacíficos. Silhuetas de camelos, deixando, por sob o ventre, passar a vista, em busca de trechos intérminos de paisagem.

11  Vinda, como um prenúncio, da sua visita alada pela Natureza, uma borboleta negra, de asas satânicas, trazendo consigo a aproximação do crepúsculo, pousou sobre a vidraça, mandando para dentro a sua sombra de auguro, que se foi estender, mole e abanante, sobre a proeminência estática, imóvel, inexpressiva, de uma carcomida cabeça de Esfinge.

12  Quando eu, depois de uma espera supersticiosa, numa impaciência doída de emoção cortada, consegui atravessar o dorso metamorfósico e frágil daquele agouro alado, por um aguço de aço libertador, o Poente esbatia-se já numa difusão violácea de tons, num esmorecimento de luz, que foram amortecendo, num aplainar de massas e num amolecer de linhas, a energia vital, dantesca, apocalíptica do quadro.

13   E só, na ablução mental da Treva, invadido já pelo apaziguamento das coisas, senti também, como num desfalecimento, essa diluição das figuras e das impressões.

14   Os cômoros tomavam uma maciez de arminho. Os famélicos adquiriam uma compunção de jejuns voluntários. Os estertores de parto dignificavam-se, aureolavam-se. Sobre os moribundos descia uma pacificação de bençãos e de perdões. As epilepsias como que se abrandam numa crise mística de aspirações insatisfeitas, e os fetos mutilados apresentavam a lacerante piedade das imolações.

15   E só o enlaçamento prenuncia) e doce de corpos moços é que tomava, dentre a santificação do circundante, um aspecto de irreverência.

16   As farrapadas sangrentas do bandeiral de exércitos inimigos descoravam, embranqueciam-se numa paz de aliados que vinham para a hosana triunfal de um termo próximo de jornada.

17   Sobre o dorso dos elefantes, eram as provisões turibulares de Incenso e da Mirra, de fumos esterilizadores e pacíficos.

18   O mesmo intérmino alcance de paisagem, sob a silhueta esguia dos camelos...

*

19   E como, através as gradações da Luz, as violências da linha e as energias da Cor, se haviam abrandado, santificado no velho quadro genial, aquele povo, primitivo e rude, áspero e selvagem, veio, através do Tempo e através da História, a domar os instintos e a adoçar o caráter, até essa suprema cristalização da Bondade e da Doçura, a alma do Cristo - Remidor de corações.

Revista Ilustrada, Rio de Janeiro, 18(659):6, dez. 1893.

 

NO CORCOVADO

1 Há três ou quatro dias, - flanela branca, leve, cortada, polegada a polegada, por uma tenuíssima risca preta, caindo-me, ampla, sobre o corpo, num farto paletó a marítima e numas calças que ficavam vazias, mesmo comigo dentro: toda uma roupa dentro da qual eu me sentia nu, perefeitamente nu; vasto chapéu palha, maltrançado, peneirando-me na face todo este sol vibrante de dezembro, - lá fui eu, Corcovado acima, em busca de um dia não vulgar, de menos espírito e de mais horizontes.

Toda a área que vai deste recanto sombrio do Rio Comprido, onde moro, até o Cosme Velho, foi atravessada, solavanco por solavanco, pelo impulso improfícuo que duas beestas magras, de pêlo grisalho, davam à caleça dentro da qual eu curtia a minha ansiedade de chegar, de afastar-me, levando a sensação de quem foge.

2 Dentro do trem, morro acima, refestelado, apanhava em flagrante, no imprevisto de uma volta, ora o pedaço de mar azul e nítido, ao longe, sem fim, como se o firmamento se houvesse dobrado

ora um trecho vermelho dos telhados, cortado, de quando em quando, pela brusca elevação de uma torre ou de uma chaminé de fábrica.

Não raro, o olhar escorria, colina abaixo, entre bambuais quérulos e troncos adustos, até a brancura fúnebre de um cemitério, de onde voltava, margeando curvas de estrada, cheio do amarelo dos ipês, esbarrando, abruptamente, na dureza de um pedaço de montanha granítica, estéril e parda.

O verão cantava pela impertinência estrídula das cigarras.

Uma vez nas Paineiras, enquanto o gerente do hotel nos recusava um cômodo prometendo um almoço, uma nuvem parda, de passagem, flanando por cima de nós, despejou-nos, frio e cortante, um chuvisqueiro imprevisto, diante do espanto do meu chapéu de palha, maltrançada, que levara a pretensão de se impor ao sol, e da minha flanela branca, leve como a nudez.

Após o almoço, uma senhora pretensiosa e erudita, ao piano, impingiu-nos Chopin mal-interpretado, e Milanez tocado com sentimento. Eu tiritava dentro de minha flanela branca de verão.

O gerente falou de uma interrupção no Silvestre, mudança de alguma viga na ponte, por certo, pelo que ficamos ameaçados de permanecer ali - a família sem cômodos, e eu na encalistração do meu traje - até as seis da tarde, sob aquele chuvisco impertinente e frio.

Na sala de bilhar, um rapazito imberbe, de olheiras romântica. e voz cardíaca, vestido de pano azul e camisa de surah fraise. atada a cordões, dissertou sobre a dificuldade de certas bolas, exibindo-as Fez a do níquel, pondo-o em cima de uma das bolas, a esta dentre de um círculo de giz, como diâmetro de um crânio, para que eu ou outro qualquer circunstante, com uma tacada, fizesse com que outra bola, chocando-se contra aquela, atirasse o níquel fora de círculo.

Alguém, ao lado, deitou erudição em mecânica, falando sobre c movimento das bolas de bilhar.

Volta do meio-dia, entrou, molhado e ruivo, um sujeito com grandes braçadas de ervas de toda a espécie, que colocou sobre uma cadeira, e começou, sem rogos e sem perguntas, a falar, eruditamente, num português pretensioso, afrancesado na pronúncia, sobre a raridade de todos aqueles specimens, nos quais eu não via senão avencas e samambaias, fetos de todo o Brasil, folhas de japecanca e de taiuiá.

A uma pergunta minha, em segredo, o rapazito de olheiras românticas e camisa de surah respondeu, alto, apresentando-nos:

— O Sr. Júlio Brunel, muito entendido em coisas de plantas; - O Sr. fulano, homem de imprensa.

Agüentei-o por três horas.

Era brasileiro, filho de franceses; estudara em Berlim, e formarase em ciências naturais, conquistando menções honrosas como naturalista. De passeio no Corcovado, há dias, estudava ali, em toda a sua exuberância, a flora do Brasil, que de resto quase não conhecia, pois partira aos quinze anos para a Europa. - Lá vivera sempre entre brasileiros e franceses. Ouvira falar, em discursos de academias, de um músico brasileiro, o Dr. Tobias Barreto. - Acha que foi, por certo, um grande protetor da imigração alemã; - confirmei, por não saber ao certo o que ele foi.

Recomendei-lhe um "naturalista" brasileiro, o Dr. Sílvio Romero. - De quando em vez, tentava recomeçar, sôfrego, a sua preleção sobre a família das japecangas e dos fetos. - Falou-me das palmeiras, e, a propósito, fez anedota contando que o seu grande mestre e amigo Frederic Wolf, da escola de Berlim, viajando incógnito todo o Brasil, lhe narrara o seguinte; - Em Santa Catarina, passeando uma noite de grande luar pela praia, viu-se, inopinadamente, a dez passos de distância de um grande polvo preto, sobre a areia branca, movendo-se. Contemplou-o por muito tempo, estudando-o, até que, desviando o olhar, reconheceu não ser mais do que a móbil sombra de uma palmeira esguia, que sobre uma escarpa o ventro balouçava, solitária e triste.

Falou-se de imprensa e, a um rodeio de modéstia, o Sr. Brunel deixou entrever o desejo que tinha de que os jornais de sua pátria se ocupassem dele.

Prometi-lhe escrever um folhetim sobre aquele passeio, ao alto, no qual me referiria a ele, apresentando-o ao público.

Então foi que ele redobrou. Falou-me de todos os seus sucessos na Europa, na Alemanha erudita, e nas lisonjeiras apreciações que teve da imprensa de Berlim, sem que obtivesse sequer uma transcrição dos jornais de sua terra. Já se não queixa dos jornais daqui, da capital, porque enfim isto é sempre uma imprensa de maior vulto; mas que ao menos um jornalzinho da sua província lhe deveria ter feito alguma referência.

A uma intermitência da chuva, fomos, ao longo do enorme aqueduto, estrada afora, ver as árvores perladas, as nascentes claras, da direita, e os precipícios da esquerda.

Caminho feito, recomeçou ele no seu desafogo, diante do espanto das dezoito senhoras que nos acompanhavam - entre as quais, a que vibrara, terna, as polcas do Sr. Milanez - espanto por terem as plantas que a gente pisa, tantos nomes arrevesados, de pronúncia difícil; quase impossível.

Mostrei-lhe, ao longe, um pinheiro do Brasil, que casualmente se encontra em frente ao hotel:

— Oh! araucaria brasiliana segundo Lineu. Belo na sua erecção perpétua! É a conífera mais gigantesca que existe. Vira, na exposição de Berlim, um bonito toro de pinho do Paraná, ao lado do mate - Ilex paraguayensis.

Adiante, na continuação do seu entusiasmo, em frente a uma romeira:

— Olhem, punica granatum, a esplêndida mirtácea, vulgarmente rubra. - E diante de um "cipó de carijó", que aquelas; pobres senhoras estavam habituadas a empregar, nas suas varizes, o entusiasmo do Sr. Brunel deu uma nota escandalosa.

— Oh! Davilla brasiliana. - Oh! aprenez madame, oh! que cheiro agradável! quelle couleur! - EM qu'il y a des beaux arbres au Brésil! Ma patrie! Davilla brasiliana!

É nesta mistura de latim e francês recortando o português duro e anguloso do Sr. Brunel, lá fomos nós, caminho em fora, até a primeira nascente.

Em frente a ela, estacionamos, as senhoras pasmas da erudição do Sr. Brunel e do seu sacrifício pela ciência, pois viera todo o caminho, a descer barrocas, a subir árvores, arrancando parasitas, quebrando galhos.

A um chamado do nosso naturalista, nos abeiramos todos da escarpa que fica à esquerda, olhando, lá embaixo, entre tojos e amoras silvestres, a uns trinta metros de profundidade, uma bola vermelha que ele nos apontava com insistência.

— É uma coloquintida gigante, Cucumis colocynthis, curcubitá cea, dizia ele; conquanto o seja do Oriente, Frederic Wolf garan tiu-me tê-1a encontrado uma só vez no Brasil, e de uma espécie desconhecida. A do Oriente é amarelada e do tamanho da laranja porém esta espécie raríssima que Wolf descobriu, é perfeitamente rubra, e chega ao tamanho de um crânio. Quero possuí-Ia. VV. EEx consintam que eu tire o meu paletó...

As senhoras protestaram. - É uma loucura!...

— O senhor fere-se todo.

— É capaz de morrer, rolando por aí abaixo.

Nada o demoveu. Em dois segundos sacou fora o paletó e o colete exibindo as duas grandes manchas amareladas da camisa, sob a, axilas, e o suspensório com mais de ano de uso.

Só a muita insistência consentiu que se pedisse uma corda nc hotel, para garanti-lo de qualquer eventualidade.

Chegada que foi a corda, uma extremidade amarrada ao marcc quilométrico do aqueduto, e outra passada em volta, à cintura, lá se foi o Sr. Brunel, escarpa abaixo, rolando, ferindo-se nas amora. bravias, o rosto em sangue, diante dos gritinhos das senhoras e das exclamações admirativas do rapazito de voz cardíaca, que sabe dos efeitos difíceis de todas as bolas.

E foi glorioso, mártir da ciência e escravo dela, que o Sr. Brune[ chegou ao ponto onde estava a coloquintida gigante, de espécie raríssima.

Aí chegando, não foi sem o esforço de uma gargalhada contida por todos nós, que o distinto naturalista levantou, bestificado, diante de nossos olhos fitos, côncava e rubra, vazia e leve, uma desfias capas de queijos do reino, parte opulenta do lixo do hotel.

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E eis aí o folhetim que eu tive a imprudência. de prometer. -ao Sr. Julio Brunel, distinto naturalista brasileiro.

Cidade do Rio, Rio de Janeiro, s.d.

 
 


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