Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Poesia lírica, de Emílio de Menezes


Obra de referência:

Obra Reunida, de Emílio de Menezes,

Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.

POESIA LÍRICA

 

ÍNDICE

TUAS TRANÇAS

CONSOLO

SÚPLICA

A UM RETRATO

ASPIRAÇÃO

O VIOLINO

A UM PESSIMISTA

DIFANEIDADES

LESMA

INSTANTE NEGRO

ELA

NATAL

AO TIRO RIO BRANCO

NO ÁLBUM DE CORDÉLIA MURAT

ESPUMAS

À EXCELSA SRA. GABY COELHO NETO

A JÚLIO FURTADO

TU QUE HOJE CAIS NO MISTERIOSO ABISMO

EM VIAGEM

VETUSTA CATEDRAL QUE, AO TEMPO, TE ESBORCINAS,

AO DOMINÓ VERMELHO

POR NÃO PODER DIZER-TE QUE TE QUERO

SONETO

TU, SÓ TU, PODES DAR NESTA MISÉRIA,

ROMPE MAIS CLARA QUE ATÉ ENTÃO, AURORA!

CARMEM

ÚLTIMOS VERSOS

 

TUAS TRANÇAS

À...

Tudo o que eu vejo, me rodeia e fala,

Desde o arrulo das pombinhas mansas

Até dos sinos o tanger monótono,

Venham falar-me de tuas longas tranças...

Ai quantas noites em que o luar flutua

E a brisa geme dos pinheirais nas franças...

Eu vou sozinho, soluçando a medo

Beijar a sombra de tuas negras tranças

Ai... a lembrança dessa noite infinda

Em que voavas na rapidez da valsa

Deixou minh'alma retalhada em dores

Presa nos elos que essa trança enlaça;

É que inda hoje eu conservo intactas

As doces frases do valsar em meio

É que inda agora julgo estar sentindo

Arfar teu seio em delirante anseio;

O doce hálito que exalavas rindo

As meigas falas... o teu sorrir de então

Ai... tudo... tudo para mim recorda

Louca esperança que alimentava em vão.

É que eu nutria essa esperança frívola,

Falsa quimera que se esvai e finda,

É que eu te adoro, te venero, santa

E curto em silêncio essa dor infinda

Por isso eu hei de como sempre amar-te

Preso nas chamas que do ar tu lanças

Dizer-te, sabes o que eu desejo, louco?

— Morrer envolto nas tuas negras tranças.

Dezenove de Dezembro, Curitiba, 28 mar. 1886. p.3.

 

CONSOLO

Tudo! ... tudo morreu, mas n'alma brota

Uma esperança ainda.

SÊNIO

A alma aberta. . . e chega-me a saudade

Do meu amor — coitado! — a enchê-la... a enchê-la...

Como me enchia o peito a felicidade

Dos bons sorrisos, dos carinhos dela.

E o martírio e a tristeza agora é tê-la

Ausente — ausente! ... e a cruel vontade

Que avulta e eu a tenho e é de vê-la,

Inda mais cresce aqui na soledade.

Mas nesta ausência em que — só de pensar —

Sinto que a vida vai-se me acabando,

Inda vem-me — feliz! — acalentar

As esperanças que ela dava quando,

— Cego de amor que a luz vai mendigando —

Ia pedir-lhe a esmola de um olhar.

CASTRO, 87

Dezenove de Dezembro, Curitiba, 1 jun. 1887, p. 3.

 

SÚPLICA

Deixa esses mortos graves,

Quero a luz desse olhar que me consola.

(L. CORREIA: "Canção" — Volatas)

Se o teu olhar me conta, magoado,

Quando a dor me tem feito dentro d'alma,

Inda que o lábio cale, descorado,

Este martírio que o teu riso acalma,

E se deste sofrer encontro a palma

No teu piedoso riso, imaculado,

Por que não volves à alegria, à calma?

Por que me deixas triste e amargurado?

Descerra o lábio! A dor, o esquecimento;

Lança-me o sol do teu sorriso, basta

Para aquecer-me a alma em desalento.

A nuvem do pesar do rosto afasta:

— longe de nós a mágoa, o sofrimento;

Limpa-me o céu da tua fronte casta!

Gazeta Paranaense, Curitiba, 20 set. 1887, p. 2.

 

A UM RETRATO

Até vós! Até vós! Talismã sagrado

Daquele morto amor, daquele amor eterno,

Ides deixar-me só, e triste, e abandonado!

Ó meu fiel amigo, inseparável, terno!

Oh! meu leal companheiro, oh! testemunho amado

Deste sofrer sem termo, este martírio interno;

Até vós! até vós! a quem só hei confiado

Os meus dias de céu e os meus dias de inferno,

Ides abandonar-me, ides voltar contente,

Sujeitar-vos, feliz, ao doce julgo dela;

Mas quero que volteis tão límpido e nitente,

Que na morta expressão de vossa fronte bela

Não se note o vestígio, — esse vestígio ardente —

Das lágrimas de dor que derramei por ela!

Gazeta Paranaense, Curitiba, 23 set. 1887, p. 3.

 

ASPIRAÇÃO

De uma vida sem fé ao glacial inverno

Furtei-me sacudindo o gelo da descrença.

Aquece-me outra vez este calor interno,

Anima-me outra vez uma alegria intensa.

Sinto voltar-me a minha antiga crença,

Creio outra vez no céu e no descanso eterno,

Pois creio em teu olhar, e na ventura imensa

Que ele encerra, e me mostra apaixonado e terno.

E quando deste corpo a alma arrebatada

Seja, e procure, flor, essa região sagrada

Que aos bons é concedida, esplêndida, a irradiar,

Aos sons celestiais de apaixonado hino

Abra-se para ela, olímpico, divino,

O infinito céu do teu sereno olhar.

Gazeta Paranaense, Curitiba, 16 nov. 1887, p. 2.

 

O VIOLINO

São, às vezes, as surdinas

Dos peitos apaixonados

Aquelas notas divinas

Que ele desprende aos bocados...

Tem, ora os prantos magoados

Dessas crianças franzinas,

Ora os risos debochados

Das mulheres libertinas...

Quando o ouço vem-me à mente

Um prazer intermitente...

A harmonia, que desata,

Geme, chora... e de repente

Dá uma risada estridente

Nos "allegros" da Traviata.

 

A UM PESSIMISTA

Olhas o céu e o céu, todo em atra gangrena,

Se te mostra corroendo as rútilas esferas.

Baixas à terra o olhar e a terra, em outras eras,

Plena de gozo e amor, ora é de horrores plena.

Sangra a etérea região, sangra a região terrena

E o horizonte, que as une, inda mais dilacera-as.

E as próprias linhas — louco! em que a sânie verberas,

Podres vêm ao papel, podres brotam-te à pena.

Mas, se ao céu e se à terra, e se ao horizonte e ao verso,

Asco e náusea tressuando, a podridão atrelas

E nela vês tombar e fundir-se o universo,

Sobe do chão o olhar, baixa-o das nuvens belas

E volve-o dentro em ti, pois fora o tens imerso

Na própria irradiação das tuas próprias mazelas.

Diário do Comércio, Curitiba, nº 116, 23 mai. 1891, p. 1.

 

DIAFANEIDADES

Brumas, névoas, no espírito doentio

Passem-me, embora veladoramente,

Tu surgirás eterna flor do estio,

Radiante, rubra, tentadora, ardente.

Toldem-me a vista sóis, e fio a fio,

Trama ofuscante me perturbe a mente,

Eu te verei, eterna flor do frio,

Fria, polar, consoladora, albente.

Visão de fogo, aparição de gelo,

O mágico poder, estranho e raro,

Dás-me de tudo a ver, nítido e belo.

Pois tudo em ti, de amor abrigo e amparo,

Faz-se como este amor que tu'alma fê-lo

Diáfano, leve, transparente, claro.

EMILIA DE MIRANDA NETO

Revista Ilustrada, Rio de Janeiro, 18(664):2, ago. 1893.

 

LESMA

Passas. Ouço o rugir do vento que te leva!

Quando, da Arte, me ajoelho, no místico delubro

Tu vens, lúdicro arfando, e ao espaço, a crocitar na treva.

E o impotente, o bêbado eu descubro.

Alimenta-te a inveja. O despeito te ceva.

O álcool atou-te a voz rouca e deu-te esse olhar rubro,

Que é o único clarão que do teu ser se eleva.

Mísero, a que do orgulho do régio manto encubro.

Anda! Beija-me nos pés, a clâmide inconsútil.

Eu piedoso Ca estendo ao desespero inerme!

Tu não és venenoso, o teu esforço é inútil!

O teu dente sutil não me passa a epiderme,

Oh! fonte do banal! oh! nascente do fútil!

Larva! tens o perdão! Tens a piedade, oh! verme!

Correio da Manhã, Rio de Janeiro, nº. 798, 18 ago. 1903. p.1

 

INSTANTE NEGRO

Anda, acima de nós, na abóbada infinita

Em sinistro remígio, algum sinistro corvo

Que grasna ao nosso mal e à nossa dor crocita

Pondo, entre nós e o sol o seu feral estorvo!

Anda, abaixo de nós, uma víbora aflita

Que assalta o nosso sangue e o suga sorvo a sorvo!

A terra é para nós uma furna maldita.

O céu é para nós um teto negro torvo!

Terra e céu, contra nós, se conspiraram ambos.

A vida é um volutabro, e o sofrer não se exprime

Com que andamos por ela esfalfados e bambos.

Nem mais ao próprio poeta há um amor que o reanime,

— Em vez dele hoje entoar, hinos e ditirambos,

Canta a glória suprema e a volúpia do Crime! ...

Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 12 jan. 1904, p. 1.

 

ELA

"Amar, amar, eternamente amar."

É bela e sedutora! Seus olhares

Muito meigos, serenos, — um portento,—

Representam-me fúlgidos altares,

Onde vou suavizar os meus pesares,

Na muda invocação do pensamento...

Seus lábios de carmim, sempre sorrindo,

E dos dentes mostrando a fina alvura,

Exornam mais e mais seu rosto lindo,

Esse rosto sem par, de encanto infindo,

O Sacrário sublime da ternura.

Seu corpo donairoso de princesa,

D'uma graça indizível modelado,

É a imagem perfeita da beleza,

Ante a qual, com respeito e singeleza,

Eu me curvo e confesso apaixonado...

S. S. Carlos

GASTON D'ARGY

O Malho, Rio de Janeiro, nº 274, 14 dez. 1907.

 

NATAL

Não há talvez no Calendário, um dia

Como este vinte e cinco de Dezembro,

Em que a própria velhice se avigora

Da lembrança à dulcíssima caudal!

Moço, nele, a esperança me fulgia,

Velho, nele, ainda exclamo: bem me lembro!

Sinto que vivo numa eterna aurora

Neste glorioso dia de Natal.

Passam-se as horas todas, dentro, apenas,

De um pequenino e colossal minuto,

De um minuto que encerra, hora por hora,

O Tempo imperecível e imortal.

Nem ouço a voz de minhas próprias penas

Só do supremo Bem os sons escuto!

— Vibra dentro em meu seio a eterna aurora

Na glória deste dia de Natal!

Os séculos são nada, ante este imenso

Porém diminutíssimo segundo,

De que eles brotarão, tempos em fora,

Como as caudais de escasso manancial!

De anelo e gozo, num fervor intenso

Em suavíssima luz meu ser inundo!

Canta dentro de mim da eterna aurora,

A glória imorredoura do Natal.

É que não tem o Calendário, um dia

Como este vinte e cinco de Dezembro

Em que a própria velhice se avigora,

Da saudade à dulcíssima caudal

Velho, nele, inda exclamo: ó se me lembro!

Mas de mim vai fugindo a eterna aurora,

Deste saudoso dia de Natal!...

GASTON D'ARGY

Fon-Fon, Rio de Janeiro, 3(32), 23 dez. 1909.

 

AO TIRO RIO BRANCO

1910

"Ide, galharda flor da Paz armada em Guerra!

Ide, gloriosa flor das gloriosas legiões,

Que a mocidade em si, neste momento encerra,

Como encerra o alto céu áureas constelações.

Que desde a orla marinha às quebradas da Serra,

Que dos Campos Gerais às fecundas Missões,

Que onde comece e finde a vossa amada terra,

Vibre o entusiasmo, a encher os vossos corações!

Da mais ampla campina à mais densa floresta,

A natureza ali, toda rebrilhará

Ao fulgor imortal que o vosso brilho empresta.

Ide, que já pressinto, ide que escuto já

O vosso berço entoar, nos mesmos sons de festa,

Num hino a Rio Branco, um hino ao Paraná!"

1891-1915

NO ÁLBUM DE CORDÉLIA MURAT

Aqui não quero ver-te a formosura

Na glória da mulher bela e perfeita.

Ao ler-te o nome, a mim se me afigura

A Cordélia de todos nós eleita.

A Cordélia que a cada travessura,

De menina risonha e satisfeita,

Dava o clarão de um sol a uma alma escura,

Dava a amplidão de um céu a uma alma estreita.

Crescente. És mulher forte e bonita

E o sangue adulto que hoje te avigora,

Mal recorda a Cordélia pequenita.

Eu, porém, só te vejo como outrora.

É que a velhice a recordar me incita:

Sou tarde. És meio-dia. Eu lembro a aurora...

O Pirralho, São Paulo, (173):7, 6 fev. 1915.

 

ESPUMAS

(Lendo Amadeu Amaral)

Na aparente quietude ou plácido remanso

E ao suavíssimo olor com que os versos perfumas,

Se lanço alegre o olhar, se úmidos olhos lanço,

Vejo que a luz do sol não n'a encobrem as brumas.

Abaixo, assim, do leve e ondulado balanço

Da superfície espúmea, eu sinto, umas por umas,

As grandes emoções de oceanos sem descanso,

Estuando ocultamente à alvura das espumas.

Mas nem sempre a avistar tênue espiral de fumo

Se prevê que à floresta, ao requeimar das franças,

Mortos, só restarão os troncos nus a prumo.

Não, que é chama fecunda essa a que te abalanças!

Do que foste, és, serás, o teu livro é o resumo:

Nobres recordações, certezas, esperanças.

O Pirralho, São Paulo, 7(242), ago. 1917.

"Entretanto, é intuitiva a impropriedade da escolha do uniforme da Cruz Vermelha para festejos carnavalescos. Esse uniforme foi sempre e é, com especialidade neste momento, uma cousa sacratíssima. Ele simboliza a abnegação de milhares de senhoras nestes dias de amargura".

(Da seção "Salpicos", de Emílio de Menezes, na Gazeta de Notícias)

 

À excelsa Sra. Gaby Coelho Neto

Senhora! Aos vossos pés aqui se ajoelha

Não do humorismo a brincalhona musa,

Mas uma alma que à vossa alma se cruza

Ante a bondade ideal que em vós se espelha.

A Santa Instituição dai a centelha

Da vossa caridade ampla e profusa.

Não podeis insistir nessa recusa

De dar o vosso esforço à Cruz Vermelha.

As que, ingênuas, profanam em folia

O símbolo sagrado, eu as contemplo,

Como cegos a quem falece um guia.

Vinde senhora a dar o grande exemplo

De vosso amor, blindado de energia;

Vinde e Correi as más irmãs do templo!

 

A JÚLIO FURTADO

Enquanto a idade fria e indiferente,

Os teus cabelos, pérfida, descora,

O teu trabalho e o teu esforço ingente

Cercam-te a fronte de perpétua aurora.

É que teu viver religiosamente

Nas oficinas em que se elabora

A grande força rejuvenescente

Da natureza, no esplendor de Flora!

Flora te é grata, Flora te reanima,

E te confere a eterna mocidade,

Porque, em seu culto, ergueste uma obra-prima.

Teu nome jeito não conhece idade:

É imorredouro para a nossa estima

E para a gratidão desta Cidade!

Homenagem do "Centro dos Veleiros"

 

Tu que hoje cais no misterioso abismo,

Depois de incerta e tropeçante viagem,

Por teu amargo e mórbido humorismo,

Eras do nosso meio a própria imagem.

Não te valendo o musical lirismo,

Não te valendo o apuro da linguagem,

Foste arrastado pelo pessimismo,

Que ataca os que perderam a coragem.

No entanto, o verso teu era um escudo

De ouro polido e de cristal perfeito,

Que ora chamava ao sonho, ora ao estudo.

Tu, que vítima foste deste estreito

E torpe meio, que avassala tudo,

Descansa em paz no derradeiro leito.

 

EM VIAGEM

Ao fulgor sideral desta noite radiosa,

Foi que te vi partir, indiferente e fria.

Como que entre nós dois, em turbilhão, raivosa,

A avalancha do Polo um mar de gelo abria.

E eras tu! Eras tu! pois, no meu peito, ansiosa,

Um maelstrom de amor minh'alma percorria;

E tudo em mim vibrava essa canção saudosa

De tristeza e de fel que o meu lábio exprimia.

Mas, que importa a glacial, a rude despedida,

Se dentro d'alma, alegre, o teu perfil risonho

Levava o resplendor que me aureoleia a vida?

Que importa eu seja, agora, o espectro tristonho

De uma antiga paixão imensa e indefinida,

Se ainda tu és a luz do meu único sonho?

 

Vetusta catedral que, ao tempo, te esborcinas,

Choras a torre audaz que, aos céus erguendo a agulha,

Os mistérios e os bens, de que a Igreja se orgulha,

Do alto mostrava aos fiéis, nas sonoras matinas.

Já, de ti, longe vão as práticas divinas

Com que davas ao incréu a sagrada fagulha

E ainda julgas ouvi-la, em fragorosa bulha,

A oscilar no teu flanco e a desfazer-se em ruínas.

Abateste, eu me lembro, à tarde, de repente,

Dourando, no clarão de um último arrebol,

O pó que te envolveu sutil e refulgente!

Torre morta! Afinal, do orgulho, no crisol,

Tombaste amortalhada, ampla e gloriosamente,

No purpúreo esplendor da agonia do sol!

 

AO DOMINÓ VERMELHO

— "Maldito seja todo o anonimato!

Seja maldita a máscara que encobre

O rosto que de uma alma é o fiel retrato!

Que a maldição suprema se descobre

Por essa festa em que a paixão mundana

Afasta todo o sentimento nobre!

Maldito todo aquele que se irmana

Aos que se entregam pela fantasia

A essa apoteose da loucura humana!"

Assim fala no meio da alegria

Que a alma nos enche neste ardor da festa,

Do seu refúgio, a voz da hipocrisia!

Essa voz que' os ouvidos nos molesta

Felizmente a consciência não invade

Dos que ao prazer se atiram com alma honesta,

Esses sabem que a tua caridade,

Por anônima ser, é mais sincera,

O fanal da viuvez e da orfandade!

E no antro escuro em que o sofrer te espera

O teu braço que anima e que consola

Vai abrir um clarão de primavera!

Sim; porque nessa anônima sacola

Que a tua mão anônima apresenta

Não faltará quem deposite a esmola!

Esta grande certeza nos alenta:

De muita dor o teu esforço nobre

Há de acalmar a trágica tormenta!...

Bendito seja pois o anonimato

Da máscara que assim teu rosto encobre

No sagrado pudor e no recato

Com quem trabalhas pelo amor do pobre.

 

Por não poder dizer-te que te quero

Nem ao mundo mostrar que te desejo,

Da fera dor o sofrimento fero

Recalco se te vejo ou te não vejo.

Entre nós, o dever ríspido e austero

Fez com que, de te ver, fuja ao ensejo.

Se é pejo ou se é temor, não exagero:

Nem tão grande é o temor, nem tanto é o pejo.

Sinto-me até muito mais nobre e forte.

Não me envergonha, nem me inspira medo,

O amor oculto que me coube em sorte.

Levo, ao ver-te, entretanto, ao lábio o dedo

E, mudo, enfim, me entregarei à morte,

Envenenado pelo meu segredo.

 

SONETO

(Carta íntima)

Que este soneto, assim, feito ao correr da pena

Possa, filha, dizer-te o que a voz te não diz,

Porque este afeto excede a linguagem terrena,

E não tenho expressões se te vejo infeliz.

Se a vida te não corre, acaso, alegre e amena,

Ouve, em vez da minha, as mil vozes hostis

Em que buscam, os teus, nos infligir a pena

De curvarmos a alguém, humildes, a cerviz,

Tu, que foste, que ainda és e que serás, por certo,

Aquela que, jamais, do interesse ouve a voz

Mais longe estás de mim quando de ti estou perto!

Deves, porém, saber que, quando fico a sós,

A própria multidão, para mim, é um deserto,

Porque o mundo não és, nem eu sou: somos nós!

A Ilustração Brasileira, Rio de Janeiro (2):22, 15 jun. 1909.

 

Tu, só tu, podes dar nesta miséria,

Neste declive das paixões humanas,

Ao amor a pureza ideal, aérea,

Na pomba com que os versos engalanas.

Ele te foge aos estos da matéria

E, da arte, ao esplendor de que te ufanas,

Ascende, e corta a vastidão etérea

Da rima sobre as asas soberanas.

Tu, só tu, vencerás porque derivas

Do árduo labor, triste e enfadonho,

A melhor sobra de energias vivas

Para o castro remanso o olhar risonho

Onde não chegam doestos e invectivas

Onde tudo está dentro do teu sonho.

 

A essa, imponderável Beleza, inexcedível de Bondade e altíssima de Espírito, — dona de uns grandes olhos indefiníveis, que me trazem subjugados, arrastando pela Vida misérrima os destroços do meu orgulho, — ofereço estes quatorze versos, feitos para molestar aqueles que à nossa Felicidade se têm querido opor.

Rompe mais clara que até então, Aurora!

Vai cobrir-te de galas, Natureza!

Céu! da ampla face a límpida turquesa

Mostra, coberta de esplendor, agora!

Toda de festas, sejas, Terra, presa!

Astros! Brilhai-me, pelo céu em fora!

E tu minh'Alma, onde o prazer não mora,

Canta o hino da graça e da beleza!

Tudo que eleva, tudo que arrebata,

Deve vibrar numa explosão divina,

Por noites de ouro em bergantins de prata!...

Alma de artista! tudo aqui te ensina,

Que esta é a suprema, esta é a gloriosa data,

Em que faz anos a Rafaelina.

 

CARMEM

Para a tua Primeira Comunhão

O que hoje fazes, doce criatura,

Tomando, com teu lábio imaculado

A hóstia que suaviza a alma divina e pura

Remindo-a do crime e do pecado

Não simboliza apenas ternura

Lida no livro em que hajas estudado;

Carmem! o que aprendeste ria escritura,

já tinhas de tua mãe rio colo amado.

Quando ela o sangue em leite transformava

O próprio sangue com que te nutria

E em que toda a sua alma derramava

A alma do Cristo sobre ti descia

Era a hóstia fluída que te alimentava

Feita do leito e o sangue de Maria.

(Feito em cinco minutos)

 

ÚLTIMOS VERSOS

A arte, amigo, em noss'alma só se interna

Por caminho em que o uso é um empecilho,

É a dor, a eterna dor, a estrada eterna

Que eu, entre versos, pés sangrando, trilho,

Quantas vezes o atro fundo da cisterna

A água que dela sai mostra no brilho

É o fulgor de uma lágrima paterna

A refletir a imagem de um mau filho.