Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Símbolos, de Emílio de Menezes


Obra de referência:
Obra Reunida, de Emílio de Menezes,
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.

SÍMBOLOS

A Artur Bomilcar

 

Índice

Os três olhares de Maria

I/ A anunciação

II/ A paixão

III/ A ascensão

Noite de insônia

Supremo apelo

Única

No álbum da Rainha D. Amélia

Vinte anos depois...

O poeta Deus

Jeová e Jesus

Bendito cativeiro

Contraste

Águia e Verme

 

OS TRÊS OLHARES DE MARIA

 

I / A Anunciação

Entre gente modesta, a existência prosaica,

Longe do grande luxo e vivendo distante

Do fausto babilônio e da pompa caldaica,

Sem nada a lhe turvar o angélico semblante;

Diz uma tradição de santa lenda arcaica

 — Cuja veracidade a Escritura garante —

Floresce a melhor flor da família judaica

Como um lótus ideal de aroma penetrante.

Vive calma e feliz. Todo o seu bem resume

Em ter, pelo seu Deus e seu supremo guia,

Tudo o que a dor lhe acalme e os sonhos lhe perfume.

"Mãe do Senhor serás" — o arcanjo lhe anuncia

E Ela acende no olhar do espanto o estranho lume!

 — Era o primeiro olhar dos olhos de Maria!... —

 

II / A Paixão

Messias anunciado e do Céu predileto!

Tu que és Filho de Deus e Rei do mundo todo.

Filho da minha crença e meu primeiro afeto,

Sofres dos maus, assim, o repelente apodo?

Tens o Teu coração de bondade repleto

De perdões e de fé, de audácias e denodo;

E eu vejo assim na terra, o Teu divino aspecto

Maculado de sangue e coberto de lodo!...

Será possível, Deus! Pai da suprema graça!

Que assim deixes passar pela dura agonia

Porque Meu Filho, o Teu, por entre os homens passa!?...

E nisto, a Virgem-Mãe, cujo olhar irradia,

Tem nos olhos a dor e a dúvida a traspassa!...

 — Era o segundo olhar dos olhos de Maria!... —

 

III / A Ascensão

Sinto-te, enfim, Senhor! Sei quem és Tu, meu Filho

Que de Teu Pai trouxeste aos algozes da terra,

O roteiro que mostra o verdadeiro trilho

Que vai de bosque em bosque e vai de serra em serra.

Agora sinto, enfim, que todo o estranho brilho

Que nos meus olhos vês e nos Teus olhos erra,

No humano coração não encontra empecilho,

Todo o rancor acalma e acalma toda a guerra!

É assim que a Virgem-Mãe, entre preces, murmura

Vendo, entre nuvens de ouro e rara pedraria

A ascensão de Jesus para a infinita altura!...

Que era o filho de Deus, tudo lhe ali dizia...

E em seus olhos brilhava a suprema ventura!...

 — Era o terceiro olhar dos olhos de Maria!...

 

NOITE DE INSÔNIA

Este leito que é o meu, que é o teu, que é o nosso leito,

Onde este grande amor floriu, sincero e justo,

E unimos, ambos nós, o peito contra o peito,

Ambos cheios de anelo e ambos cheios de susto;

Este leito que aí está revolto assim, desfeito,

Onde humilde beijei teus pés, as mãos, o busto,

Na ausência do teu corpo a que ele estava afeito,

Mudou-se, para mim, num leito de Procusto!...

Louco e só! Desvairado! — A noite vai sem termo

E, estendendo, lá fora, as sombras augurais,

Envolve a Natureza e penetra o meu ermo.

E mal julgas talvez, quando, acaso, te vais,

Quanto me punge e corta o coração enfermo,

Este horrível temor de que não voltes mais!...

 

SUPREMO APELO

Por que causas, de ti, foge a antiga ventura

E toda, em ti, se embebe a alma, em fel e vinagre?

Certo, uma grande dor te fere e te tortura!

 — Mas tão grande, que a grande alma assim te conflagre?

Tanto Sol! Tanta Luz! E esta treva perdura!

 — De um espírito mau, diabólico milagre —

Mas olha! Volta à Luz! Volta ao Sol que fulgura

Nos Poemas que te eu dê, no Amor que te eu consagre!

Vem beber no meu verso a fortaleza e a vida!...

Vê tu quanto poder num hemistíquio impera,

E o vigor que há na rima — arma nunca excedida!...

Vem, que ao fim da jornada, a glória nos espera!

Vamos! — a galopar, — em fora! a toda a brida,

Na esplanada genial do sonho e da quimera!

 

ÚNICA

Fruto efêmero e hostil de um efêmero gozo,

Esta vida que arrasto, efêmera e improfícua,

Sinto-a embalde, e, debalde, entre pasmado e ansioso,

Sondo-a, palpo-a, examino-a, estudo-a, verifico-a.

E tudo quanto empreende o espírito curioso,

E tudo quanto apreende a análise perspícua,

É o falso, é o vão, é o nulo, é o mau, é o pernicioso,

Por menos que a razão seja perversa ou iníqua.

Logo, por que pensar? Logo, por que no Sonho

Não havemos deixar correr a vida fátua,

Obrigando o Destino a ser calmo e risonho?

Por que só não amar: É culpa? Eis-me: resgato-a

Agora que a teus pés todo o meu ser deponho,

Como um vil pedestal à tua excelsa estátua!...

 

NO ÁLBUM DA RAINHA D. AMÉLIA

Favor nenhum Vos fez em dar um Reino a sina,

Pois que bastava em Vós, haver a essência humana

Tomado qual tomou, da graça feminina,

A forma modelar que à própria Arte se irmana.

Quem liga à Formosura, a Bondade divina

No eflúvio angelical que só de Vós promana,

Não precisa reinar porque as Almas domina;

 — Senhora ou não de um trono, é sempre a Soberana!

Carinhosa Verdade aqui não nos é estranha,

Qual que, em Vós, a Mulher da Santa se avizinha,

Tal em tudo fulgura a auréola que A acompanha!

Vinde, Senhora! E aqui, na livre pátria minha,

De homens livres vereis, com que glória tamanha,

Todos o orgulho têm de Vos sentir Rainha!

 

VINTE ANOS DEPOIS...

"Feia — tu me disseste — o teu amor de outrora,

 — Resíduo de mulher, arcabouço de um sonho,

Escrava de um burguês presumido e enfadonho,

Feia e velha mal vive a morrer de hora em hora!"

E tu, poeta querido, a cuja alma sonora,

Sempre, em meu culto de arte, as estrofes deponho,

Mergulhaste ao falar-me este meu ser tristonho,

Numa recordação que me embevece agora!

Vejo-lhe a alma infantil de há vinte anos!

Revejo Tudo que houve entre nós nessa manhã de Maio

Que só fez perpetuar o insaciado desejo!

Toda a vida a passar mais rápida que o raio,

Ao néctar virginal do seu primeiro beijo,

Na volúpia imortal do primeiro desmaio!...

 

O POETA DEUS

Quando a terra volver, de novo, ao caos que a espera,

A imensa escuridão da treva indefinida;

Quando tudo que é som, que é luz, que é primavera,

Mundo e negro fizer a eterna despedida;

Quando não mais houver, no espaço, uma só esfera,

Nem, na amplidão vazia, uma só luz perdida;

Quando, sem água o mar, sem calor a cratera,

Em nada mais houver um vestígio de vida;

Hás de ver ao compor as estrofes de um hino,

A Vida ressurgir ao sopro do teu Verso,

Ao fecundo clangor do teu Alexandrino!...

Pois tens, Poeta Supremo! em tua essência imerso,

Dos Deuses, Deus também, todo o poder divino,

De fazer reviver, no Nada, outro Universo!

 

JEOVÁ E JESUS

Jeová que, terra ou céu, todo o universo tinha

E lhe indicava o rumo e lhe traçava o norte,

Era, segundo a crença, uma força daninha

Que espalhava o Castigo, a Fome, a Peste, a Morte.

A humana geração, estúpida e mesquinha,

Quem quer que hoje a contemple, em místico transporte

Ante o Deus do Pedrão que na alma se lhe aninha,

Sente quanto Jesus a fez mais nobre e forte.

Foi preciso que, humilde, Ele andasse na terra

 — Ele que era do céu, Senhor e Majestade, —

Dizendo quanto amor o Amor de Deus encerra!

Nasceu aqui, qual nasce a vil humanidade,

E o que por nós sofreu ainda hoje nos aterra.

Porém do Deus Terror fez ele o Deus Piedade!...

 

BENDITO CATIVEIRO

Eis-me quase senhor do meu próprio indivíduo.

Eis-me quase senhor de mim mesmo, entretanto,

Eu que, outrora, da Musa, era o operário assíduo,

Sinto que o Estro me foge aos estos deste Canto.

Embalde aqui o desbasto! Esculturo-o, lapido-o,

E áspero e bronco ai fica inerte a esforço tanto!

É que dentro em meu seio ainda existe o resíduo

De recalcada angustia e mal contido pranto.

Livre e senhor de mim, — tropeço ante a Cadência.

A Rima, a haste do Verso, a custo se equilibra,

E eis-me infecundo e vil na minha independência!

É que a Lira, liberta, estala, fibra a fibra,

Pois essa liberdade é feita da tua ausência,

E é só presa de ti que esta minha alma vibra!

 

CONTRASTE

Alvorece-me o dia em seus cabelos de ouro

Apesar do negror dos seus olhos de noite.

Noite negra a manchar um dia claro e louro

 — Mistério que a escrutar nem alma há que se afoite. —

Dos astros, no cabelo, o opulento tesouro

 — Tudo que em mais fulgor nosso espírito acoite, —

E da treva, no olhar, todo o sinistro agouro,

 — Tudo que a um infeliz a alma entristeça e acoite. —

Nela, entanto, não sei o que mais me quebranta:

 — Se a auroral cabeleira, a emoldurar-lhe a face

Da áurea circunflexão de um resplendor de santa

Ou se, porque, quem quer, que por seus olhos passe,

Nunca mais do terror da morte se levanta

Qual se neles Satã seu domínio traçasse!...

 

ÁGUIA E VERME

Morre, porque assim o exige a minha vaidade

 — RENÊ SECUN — BRAMANTE E MIGUEL ÂNGELO

“Águia! o teu voo abate! Águia! cessa o remígio!

Já que te não é dado a rija envergadura

Das asas distender ao supremo fastígio,

Tomba e roja, e te estorce à saudade da altura!

Gênio, escalaste o espaço. E do eterno vestígio

Da viagem que fizeste à célica planura,

Eu me não apercebo, e em dúvida e litígio,

Ponho o teu nome e a tua invejada figura!...

Porque eu, vaidade sou. É meu hóspede a inveja,

E à morte condenei tudo que à glória minha

No mundo se antepõe, quer mesmo que honra seja.”

É assim que fala o verme à águia que se avizinha

E protetoramente as asas espaneja

Sobre a maldade humana estúpida e mesquinha!...