Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Textos CríticosAltino Flores

A LITERATURA EM SANTA CATARINA

O momento literário - 1916

I

Os “velhos” e os “novos"

Há, na febre literária de que o corpo catarinense enfermou, bem tristes crises. O momento atual é mórbido. Parece ter soado a hora em que havemos de ajustar contas com os outros Estados da União, num balanço literário onde os valores avultam pasmosamente e do qual, bem ou mal, temos que sair sem tardança.

Os decanos das Letras entre nós nada produziram, bom ou mau, no ano que findou. O Sr. Horácio Nunes apenas fez umas crônicas teatrais meio tristes, meio chistosas, e quase sempre boas, para A Opinião, e não sei se a sua fertilidade de dramaturgo diminuiu de pujança. E não sei, simplesmente, por que o Sr. Horácio Nunes vive recolhidamente no meio dos seus livros, longe da mocidade, que o não procura pelo único motivo de suspeitar nele o representante de uma geração que passou, mas que continua a viver e a pensar como se pensava e vivia há quarenta anos.

Dessa geração é o Sr. Sérgio Nolasco, filho da filosofia do Balmes e da literatura do Emílio Castelar. Endeusam-no os seus equevos e A Opinião... mas os moços, isto é, os dias de agora sentem que ele está deslocado por uma concepção filosófica retrógrada, e que cada vez mais soçobra em mediocridade - respeitável pelas suas cãs.

O misoneísmo tem, infelizmente, desses frutos entre nós. Mas, apesar disso, o Sr. Sérgio Nolasco é, dos antigos, o que nos tem dado algumas coisas suas a ler.

Deu-nos os Prelúdios literários, A Influência da mulher na humana sociedade e Miscelânea literária. São uns opúsculos de impressão mais ou menos boa, porém frouxamente escritos, acoguiados de citações colhidas ora no Castelar e Balmes, ora no Balmes e Castelar. Às vezes também lá vem o César Cantu – mas tudo isso vazado num estilo descolorido, inarmônico, inusual, a que falta sangue e nervo.

Do delicado artista que é Araújo Figueredo nada temos - e que pena! - para louvar. O êmulo de Cruz e Sousa, poeta adormeceu serenamente sobre os loiros que lhe granjeara o Ascetério . Oxalá o inspirado vate catarinense acordasse de novo para a publicidade, nobilitando, com o seu estro, a sua terra e o seu tempo!

E, dos novos, que temos?

Antes de tudo: quais são os novos?

O Estado nomeou-os: Barreiros Filho, Haroldo Callado, João Crespo, Alberto Barbosa e Tolentino Júnior. Acrescentarei à lista Laércio Caldeira e Velho Costa.

Mas, numa dada época literária, que é ser novo?

É ter poucos anos? É ter ideias novas?

Nem uma coisa, nem outra.

Nenhum deles pretende campar de novo, porque isso, sobre ser embófia, é tolice. Uma geração, por mais numerosa e heterogênea que seja, está, por natureza, e, conseguintemente, por fatalidade, circunscrita nas circunstâncias do tempo e do próprio esforço.

Envelhecerá desde que suspenda o seu trabalho de criação artística e logo que comecem a dealbar-se-lhe os cabelos com o rolar dos anos. A perpétua juventude da inteligência é um fenômeno em que há muito de divino e de miraculoso. O espírito também tem o seu ocaso.

Logo – não há novos , não há nada. Há, simplesmente, uns moços que sentem na alma os frêmitos duma emoção artística superior e que procuram traduzi-la na plástica dos períodos esculturais e na harmonia embaladora das rimas.

Essa mocidade luta. Luta e há de vencer, pouco lhe importam os inócuos e impotentes arremessos dos zotes indígenas!

Essa mocidade não vai pedir aos vetustos representantes da literatura torva do passado - e que carunchosos são eles! - a bênção hierática, imprescindível, com que Castilho Antônio recebia os prosadores e poetas jovens, que estreavam nas Letras portuguesas.

Essa mocidade confia nas suas próprias energias, por isso estuda, batalha e há de vencer só de per si.

E não foi com algaradas estólidas que ela se jogou à peleja, não. Veio calma como os antigos lutadores dos estádios helênicos - embora despertando entre os que a contemplam os murmúrios surdos da inveja a que são foreiros os tunos passivos com ares de entendidos...

Circunvolvam os olhos os que me leem, e nunca me poderão arguir de nimiamente descosido no exame do atual momento literário.

O Dia, 03/02/1916.

II

Ao redor dos “novíssimos”

Um, que, como Araújo Figueredo, devia estar à frente do nosso movimento intelectual e no entanto se recusou a prestar o seu valiosíssimo apoio à vida artística de Santa Catarina — é Santos Lostada.

Erudito como é, muito teriam que aprender dele aqueles a quem a nossa imprensa levianamente cognominou de novos. Mas explica-se com facilidade o seu recuo.

Santos Lostada viveu numa época em que realmente havia literatura em nosso Estado.

Cruz e Sousa, Virgílio Várzea e muitos outros estavam então na brecha: o seu lutar era uma perene vitória. Santos Lostada entrou nessa luta, onde representou importante e indiscutível papel. Depois, Cruz e Sousa e Várzea foram-se para o Rio. O autor de O brigue flibusteiro teve nas rodas literárias cariocas, e depois no resto do País, a consagração a que fazia jus. Esqueceu-se dele a terra do seu nascimento, e ele paga-se nobremente, altivamente, desse injusto olvido - olvidando a seus conterrâneos e idealizando só à sua Ilha querida com as páginas mais vibrantes e emocionantes que ainda se escreveram no seu gênero. Quanto ao povo, literariamente falando: "é bom para se passar por longe e atirar-lhe pedras".

Cruz e Sousa morreu. E então? Foi preciso que um paranaense - Nestor Vítor — recolhesse e enfeixasse em volumes as páginas do desgraçado artista, para que as não levasse a fria e arrebatadora rajada do esquecimento...

Dir-se-ia que o catarinense detesta os que lhe educam o sentir e o pensar! E vem daí o desânimo, o desconsolo, cuja sombra magoada envolveu o coração desse que, há muito, num banco do Oliveira Belo, e depois duma palestra que sobremaneira nos ilustrou, me dizia amargamente:

— "Qual! O nosso Estado está morto para as Letras!..."

Entraram de cair as primeiras gotas dum aguaceiro: — o céu parecia chorar sobre a falência da nossa intelectualidade.

Ora, se a derrocada artística assume proporções tão de lastimar-se entre nós, com justiça procede Santos Lostada abstendo-se de tomar parte numa ou noutra manifestação literária, que esporadicamente sobrevém, em Florianópolis.

Ao contrário do que se esperava, numa época de renovado entusiasmo artístico para todo o País, Santa Catarina, depois do período cruz-e-sousista, ficou às moscas, sem literato que lhe erguesse a alma tanto quanto possível para, ao menos, equipará-la à do Paraná.

Lucas Boiteux cultiva uma ciência que quase ninguém preza, tamanha é a nossa ignorância. Mas o incansável mineiro da nossa História vai, confiante e seguro, revolvendo as frias camadas dos extintos evos, para nos pôr de diante os filões de ouro virgem — que são os atos nobilitantes dos nossos antepassados. Ouros hão de vir, que lhe estimarão, abençoando-o, aquele trabalho de devotada paciência e acrisolado amor pátrio.

Enquanto alguns espíritos, afeitos ao estudo, lhe rendem, sinceramente, as suas homenagens, a maioria do nosso povo se volta, despejadamente, para banda donde alguns tolinhos tartamudeiam as suas picuinhas literárias, espécie de teriaga em prosa e verso — que a gente se admira de não trazerem ao fim a respectiva dosagem: contra insônia — um período bestialógico e três quartetos de pé quebrado, de hora em hora, até vir o sono (o que quase sempre advém antes da segunda dose.)

E os representantes da reação contra a reação bem-fazente de Laércio Caldeira, Barreiros Filho, Haroldo Callado, Alberto Barbosa, João Crespo e Tolentino Júnior não são mais nem menos do que os célebres autores dos celebérrimos Contos Singelos , Prelúdios Vespertinos , Panfletos Comemorativos , etc. etc. etc.

São os... novíssimos...

Eles se contrapuseram por si mesmos aos meus amigos, com a gasometral empáfia dos nulos tornados sábios depois de terem lido o Casimiro de Abreu e quejandos líricos, cujo sentimento, de tão encantadoramente ingênuo e simples, os tentou um instante, arrastando-os dos solavancos do A B C, condimentados de palmatória, às luminosas culminâncias do Parnaso e às avenidas quietas e assombradas onde Platão dizia as maravilhas da sua filosofia.

Por quê?

Porque não faltou quem lhes gabasse as aptidões, nem quem lhes metesse não sei em que parte do corpo um canudo para lhes assoprar a vaidade — tal como se faz com as bolhas de sabão. Eles encheram, arredondaram, despegaram do canudo, libraram-se no ar... Não tarda, porém, que — pluft! — estalem sem deixar vestígio, muito embora os Magalhães d'aquém e d'além mar, de canudo em punho, bochechas entumecidas, procurem esbofadamente reenchê-los para os ver guindarem-se às alturas estelares.

Em primeiro lugar, falta-lhes o de que mais se questiona em Literatura: o conhecimento da língua em que se escreve; depois: sentimento artístico, emoção, alma afinal. Carecentes destes predicados imprescindíveis a todo aquele que se atira aos prélios da pena, os autorezinhos dos Contos ,dos Prelúdios , dos etc. só têm que ir abaixo, fragorosamente, chapando-se certos no ridículo. E "o ridículo", disse-o Teixeira de Vasconcelos, ao emitir sua opinião crítica acerca do Coração, cabeça e estômago, de C. Castelo Branco, "o ridículo é como o inferno. Quem lá caiu, ficou. Nulla est redemptio ".

O Dia, 10/02/1916 .

III

Longe de se socorrerem de armas leais para impugnarem aos novos, os novíssimos forgicaram, a princípio, os virotões rombudos d' A Urucubaia , d'A Folha Rózea e agora d' O Clamor do Povo.

A infamante arremetida, porém, fracassou tão reles, degradando ainda mais o perfil encarvoado do autorzinho dos Contos Singelos e lançando o pânico e o formiguejar da debandada nos mesmos arraiais donde viera. Vê-se com facilidade que espécie de gente é aquela: sem gramática, o que já é grande desgraça, falta-lhe também compostura.

Começaram de fazer sonetos onde fervilhavam os solecismos, as cacofonias, os arritmos, e vão agora — maravilhas da evolução darwinista! — raiando nas belezas dos ataques covardes, cujos respectivos autores, pela hombridade com que assumem a responsabilidade de seus atos, podem ser medidos pelo estalão moral do Dámaso Salcede, d'Os Maias . E desgraçadamente encontraram, em Florianópolis, um Palma Cavalão, com a sua Trombeta do Diabo...

Diante disso eu ponho-me, aterrorizado, a pensar como será capaz uma pessoa de se pôr detrás dum pseudônimo qualquer, com os bolsos cheios de calhaus, para apedrejar aos que têm a consciência limpa, como homens, e a pena impoluta, como artistas.

Se esses valdevinos da imprensa indígena procedem tão mal como escrevem, bem é que os críticos do nosso jornalismo lhes avaliem as produções augurando a cada um deles os pináculos da glória — quando, na melhor das hipóteses, o que eles necessitam é de boas e alentadas lições de A B C.

A necropsia dos novíssimos é empresa de fôlego, para a qual não me sobram, antes me faltam as precisas energias; não pelo difícil que ela encerra, mas pela abundância de ineditismos anatômicos, que nos depararia, ofertando-nos ânsias de rebentarmos de riso, ora aqui, ora ali, ora acolá.

Gosto de roborar os meus assertos com os condimentos da verdade estreme.

Um! Dois! E três!

O autor do Panfleto Comemorativo dá-nos, na primeira planta, um lance de seu prosar:

“Rompiam o silêncio daqueles horas tenebrosas, os primeiros alvores crástinos e como eles rompia o silêncio espiritual dos navegadores, vultos de terras desconhecidas que os envolviam na admiração, no entusiasmo, no pasmo e no próprio delírio. Se desvendavam os sonhos, se fortificava a alegria. Surgira um continente ignoto.”

É vistoso e largo o seu dizer, não acham? O moço fala do descobrimento da América: parece que está a relatar-nos o descobrimento da pólvora... Que elasticidade na colocação dos pronomes! Que portentosa propriedade na adjetivação! Que colorido! Que asneira!

Sursum corda . Cá temos outro. Não é limpa-chaminés, não, senhores. É o autor dos Contos Singelos, certamente o mais indubitável atestado de quanto pode o gênio inventivo da mocidade barriga-verde. Também lhe devemos o róseo folheto dizendo espantosas coisas da Questão de limites ,donde passo a extratar algumas linhas:

“ A minha opinião de simples artista, nada adiantará, mas, essa razão não obsta-me a manifestá-la.”

“ Um país, onde não há leis que o regimente, não pode existir Liberdade, Igualdade e Fraternidade.”

“Perante elas (as leis) todos são iguais, por conseguinte, se procurarmos desvalorizar o grande Tribunal do País, poderemos amanhã subjugados por uma injustiça, apelar para ele? Não. Nos faltará a coragem.”

“Desfar-se-á então esse ódio entre irmãos, e cada um, amigos, procurarão desenvolverem o seu Progresso”.

Aí estão as frases do novíssimo ipsis verbis, litteris et virgulis .Mas os seus capitosos Contos Singelos também nos dão:

“O mais velhinho os felicitou em nome dos irmãozinhos; a quem o pai cheio de comoção diante àquela prova de amizade dos filhinhos, distribui-lhes lindos brinquedos.

Não deveis chorar, meus filhos, porque este presente há de ser ainda muito útil para ti. Guardai no fundo da tua alma.

Guardou o presente na mala e não mais dele lembrou-se.

À beira de um valado onde tinham meigos e românticos lírios, também via-se uma velha roseira, onde ostentava-se linda e cubiçada rosa.

... e a rosa perdeu todo o colorido invejável, caiu no solo todas as suas pétalas...

Isso pouco importou-se, porque ela tinha o calor feliz da amizade do mancebo, mas, contudo, não sentia-se feliz.

Acordai filhinha, que o suor banha as tuas frontes.

As saudades daqueles tempos ainda perdura num canto do coração.

As águas impetuosas tudo levou na sua fúria...”

Repararam?

Eu não lhes dizia? Pois é esse ilustre desconhecedor do A B C, que redige jornalecos em Florianópolis, abrindo na opinião pública seteiras por onde visar à reputação dos que se chamam: João Crespo, Haroldo Callado, Barreiros Filho, Alberto Barbosa, Laércio Caldeira e Tolentino Júnior!.

Um verdadeiro dilúvio de asneiras em letra de forma. E, no entanto, é a mesma pena achamboada que vai prefaciar os Prelúdios Vespertinos ,doutro novíssimo, que preludia desta guisa num perfil:

Faces puras narizes bem talhadoCom de Flora gentil, no belo prado Dos lírios a sentir meigo perfume...Carmíneos lábios, belos perfumososComo dos pássaros meigos, donairosos Ao céu levando o meu terno queixume...

Até parece troça. Pois, não é. Isso foi escrito, foi impresso, foi lido, foi comentado, foi magnificado pela imprensa de Florianópolis (capital do Estado de Santa Catarina, Brasil, América do Sul), em pleno século XX!.

Flaubert! Mestre querido!

Quanta razão não tinhas quando exclamavas, no final duma carta a teu amigo Guy de Maupassant:

La terre a des limites, mais la bêtise humaine est infinie

O Dia, 17/02/1916

IV

Embora vos acusem, vos condenem,
vos prendam e vos enforquem,
publicai sempre os vossos pensamentos.
— P. L. Courier

Em 1914 o eminente pensador riograndense, Dr. Gama Rosa publicou a primeira série dos seus eruditos Comentários (Sociologia e Estética), aos quais a Imprensa carioca deu umas quantas coroas de loiro, vistosas e merecidas.

Se o volume não pudera entrar no seio da multidão, porque era um livro de ideias e a multidão em parte alguma ama as ideias, lograva, no entanto, cativar a atenção dos cérebros cultos, assim no Rio de Janeiro como em alguns rincões da província.

Realmente, a despeito de alguns escorregos de estilo e gramática, tais como o fastidioso e exaustivo estribilho dos advérbios em mente e as múltiplas crases descabidas, os Comentários merecem ser lidos e estudados.

A esse volume o encantador marinhista, que é Virgílio Várzea, discípulo do Dr. Gama Rosa, ajuntou dois prefácios - o que não é lá muito bonito, valha a verdade, pois o exímio prosador, se o quisesse, podia fundi-los num bloco único, muito embora estudasse duma só feita a silhueta psicológica e a biográfica do autor. Escusava de servir a mesma iguaria em dois pratos...

Foi no segundo desses prefácios que se me deparou uma passagem digna de menção, agora mais que nunca, visto estarmos a balancear a nossa vida literária. Relata-nos V. Várzea que data de 1883 a mais trabalhada e fecunda fase intelectual do autor da Sociologia e Estética, ao menos como "propagandista de ideais e doutrinas literárias e filosóficas modernas". Por esse tempo, Gama Rosa assumia a presidência da província de Santa Catarina e congregava aqui "refulgente plêiade de jovens e assinalados talentos", entre os quais se contavam o próprio Virgílio Várzea, Araújo Figueiredo, Santos Lostada, Horácio de Carvalho e outros, que o prefaciador dos Comentários ,muito para lamentar, olvida, deixando-nos indecisos ante as mais necessárias minudências, imprescindíveis à interpretação desse "movimento estético" que, aliás, ele chama de "intenso".

Quando se lhe abria ansas de historiar a época de florescência do simbolismo cruz-e-sousista e do parnasianismo e decadismo de Araújo Figueiredo, quando podia fazer, tecendo-a com os mais exatos dados, a reconstituição evocadora daquele período, é aí que a pena do delicado marinhista silencia.

Alude, mui de raspão, à influência exercida por aquela plêiade sobre outros pontos do país, quando, sem deslustrar o indiscutível valor intelectual e artístico de Santos Lostada, Araújo e Horácio de Carvalho, verificamos terem só exercido influição nas letras pátrias o simbolismo de Cruz e Sousa e o marinhismo(não deveria chamar-se assim?) de V. Várzea, embora um e outro gênero fossem de pura importação, modificados mais ou menos pelas circunstâncias do meio e pela idiossincrasia de seus adaptadores. Ainda assim, é preciso convir, embora a contra gosto, críticos há que a estes dois não atribuem o merecimento a que fazem jus.

Cruz e Sousa, por exemplo, não é contemplado na História da Literatura Brasileira , compendiada pelos Srs. Sílvio Romero e João Ribeiro: quando o autor dos Broquéis, Faróis , dos Últimos Sonetos , do Missal e Evocações merece um lugar de destaque na galeria dos nossos escritores? Se a sua prosa chega por vezes a descambar nas redundâncias, incoerências, aliterações e psitacismos que o vulgo batizou de estilo bestialógico, alguns de seus sonetos podem ser considerados sem equivalentes nesse aluvião de rimas chamado poesia nacional.

Depois da morte do poeta negro, decaíram os créditos literários de Santa Catarina. Só de 1906 a 1907 se verificaram alguns sinais de reação, com o aparecimento do periódico O Livro, mais tarde transformado em revista, e que teve de sucumbir, como sucumbe sempre aqui tudo o que traz no seio a grandeza dum ideal nobilitante.

Razão, pois, não vejo para que Várzea atribua àquela "plêiade" um papel cuja representação lhe seria, se não de todo impossível, ao menos bastante dificultosa, porquanto nunca ninguém, nas Letras pátrias, tomou a sério o movimento intelectual de nosso Estado, visto que sempre estivemos afastados das principais correntes literárias que de longe em longe riscam a monotonia da Literatura brasileira. Donde me parece temerário o juízo do ilustre contista no tocante à influência dos nossos homens de Letras sobre os outros Estados da União.

Afirma Várzea que o grupo, sucedâneo de Cruz Sousa, Figueiredo, Lostada e H. Carvalho era ainda como que a prolongação do movimento iniciado aqui em 1883 pelo Dr.Gama Rosa, e se compunha de Diniz Júnior, Altino Caldeira, Alfredo Luz, Romeu Ulisséa, Renato Flores, José Collaço e Joaquim Gama d’Eça, "jovem acadêmico, em S. Paulo, parente de Eça de Queiroz e provido de talento adequado a manter, neste lado do Atlântico, histórico renome literário" (sic.)

Como Várzea está longe de sua terra!...Conhecem os senhores, por acaso, esse Renato Flores e Altino Caldeira?Nem eu! Quem é esse Joaquim Gama d’Eça, aparentado de Eça de Queiroz? Ao todo, três criaturas fantasmas num quadro histórico!

Realmente Diniz Júnior capitaneou um tentame de levantamento das letras em Santa Catarina, cerca de 1912-1913; e nessa cruzada — que de modo nenhum filiar-se pode à influência do Dr. Gama Rosa — tomaram parte Alfredo Luz, agora em caminho da Dinamarca, José Collaço, Romeu Ulisséa, Barreiros Filho, Othon d’Eça, Haroldo Callado, Laércio Caldeira, José d'Acâmpora e o autor destas linhas. Os seis últimos haviam ido buscar armas à redação do Argo(1911), publicação quinzenária de vida efêmera, mas em cujas páginas clarejava a ante-manhã dos nossos ideais...

Parecem já ao longe os nossos vinte anos!...

A ficção da influência do Dr. Gama Rosa não tem o menor vislumbre de realidade. V. Várzea claudica neste acerto.

Exceto dois ou três nomes (que todavia não roboram a afirmação do autor do George Marcial) dos que acima se mencionam, todos os restantes, cientificamente, vão beber suas lições em fontes originais, estremes, inconfundíveis, na filosofia, na crítica, na exegese, na história religiosa, com Darwin, Spencer, Haeckel, Büchner, Delage, Goldsmith, Nordau, Taine, Lacombe, Ricardou, Strauss, Renan, Binet-Sanglé, e, literariamente, com Flaubert, Zola, os dois Goncourt, Daudet, Maupassant, Anatole, Turgueniev, d'Annunzio, Eça de Queiroz e outros astros de grandeza prima. É por eles que quase todos os novos (prevalece o título!) se sentem influenciados, é com o auxílio deles que vão vencendo uma e uma as asperezas da vida,

"olhando as coisas do Universo

Com as lentes da Arte e os prismas da Poesia

Que no-lo mostram múltiplo e disperso...."

O Dia 02/03/1916

CONSIDERAÇÕES ATUAIS

Digno, certamente, de todos os aplausos é o estudo que até agora fez nesta folha, com brilhantes achegas, o nosso conterrâneo Laércio Caldeira, acerca do surgimento de nossa Pátria.

Animado de todos os seus fervorosos sentimentos cristãos, que, nestes duros tempos, possuem a gloriosa virtude de ser enraizados no mais fundo da sua sinceridade, analisou ele a fúnebre derrocada do caráter brasileiro, a qual mais e mais se acentuou depois do estabelecimento do regime republicano.

Desde 15 de novembro de 1889 andamos bracejando, alucinados, na vertigem dum sonho inexplicável, cujos redemoinhos nos cegaram, jogando-nos por uma rampa fatídica, por um declive que borca numa torva e infernal débâcle

O nosso povo - que mal sabia mesmo o que era o regime monárquico e contra o qual, se gemia, era porque ouvia algumas cabeças ardentes, incendiadas por ideias francesas, gritarem em meetings de propaganda, aqui, ali, acolá - viu-se republicano de uma hora para outra.

Como? Inútil perguntar, O brasiliense representou nessa troca de governo um tristíssimo papel, e, mesmo que ele sonhasse explicar o móvel de sua ação, não no faria, Atos há que são labéus indeléveis para quem os pratica. Se dói a lembrá-los, que não fará o confessá-los e explicá-los?

O povo é sempre a massa bruta, a lava, que escorre nos cataclismos históricos pelos flancos da sociedade, convelindo princípios estabelecidos, mas às cegas, em obediência a um pendor fatal.

Se lhe dissessem que, por tal ou tal meio, ainda que reprovável, ele conseguiria derrubar uma fórmula de governo e lograria, com a substituição desta por outra, a mais larga messe de felicidades imediatas, o povo se ergueria à uma, violento, tumultuoso, e saciaria o arrebatamento do seu sonho, sua rubra sugestão, com os mais formidolosos vulgarismos. A questão é que à frente dele brade uma voz de prestígio incontestável e que essa voz consiga empolgá-lo. Ensina-nos isto a psicofisiologia da multidão(1). Se a massa é capaz dessas violências, na verdade o é também de certos atos nobres, mas isto menos geralmente. Em seu seio as boas, as brilhantes, as louváveis qualidades particulares quase sempre se neutralizam, aniquilando-se; o que subsiste é o mal.

A verificação deste asserto se encontra em todos os períodos de desordem e de revolução ; é então que “o homem, que nasceu cruel, arregaça as mangas e faz-se fornecedor da guilhotina, tendo por imitadores aqueles que queriam um modelo, um ato de audácia de que se sentiam capazes de executar”(2).

O nosso povo, com a troca do regime governamental, não se abalou. Parecia-lhe natural essa mudança; por isso pouco se lhe deu que, certa manhã, o marechal Deodoro proclamasse levianamente a República com uma salva de vinte e um tiros... Ele ouvia dizer que certos pioneiros da Democracia andavam evangelizando seus ideais pelos longínquos rincões do país; que até já havia clubes com bandeiras republicanas, etc. etc. Mas, as palavras voam. Todavia a realidade o chamou a contas, apresentado-lhe o fato consumado; Deodoro proclamara a República, apoderando-se da presidência, que acabava de estatuir. Que fez o povo?

Foi ao Campo da Aclamação, olhou, viu as coisas como estavam, e foi para o trabalho. O povo é sempre para o trabalho que acaba indo.

Começava a época da passividade, dos tédios absorventes, dos descontentamentos surdos e ameaçadores. Por quê? Haviam-lhe prometido liberdade. Mas, não tinha ele já bastante nos tempos da Monarquia? Parece que sim, pois, apesar de lhe haverem prometido, ele sentia que, com a República, a não acrescentaram, nem sequer a explicaram para lhe antojarem a diferença entre a liberdade vazada na carta monárquica e a vertida na constituição republicana.

Em outros termos: nós não merecíamos a liberdade que gozávamos no tempo do Império, porque quase não na obtivemos com o suor do nosso rosto nem com o sangue das nossas veias; a que nos vinha pela afirmação do regime republicano estava longe de ser o fruto de uma luta heroica. Como, pois, reconhecer nessa liberdade um direito? Só se sabe avaliar com justeza o que se alcançou com dificuldade. “A liberdade moral, como a liberdade política, como tudo que tem algum valor no mundo, deve ser conquistada por uma grande luta incessantemente defendida. É a recompensa dos fortes, dos hábeis, dos perseverantes. Ninguém é livre se não merece ser livre”(3).

Assim, a liberdade de que a República era portadora, em nada diferia da outra. Ora, como poderia o povo ver na nova forma de governo uma garantia de direitos, se o mesmo governo, embevecido num narcisismo platônico e deliquescente, se deliciava em contemplar e estimar as suas próprias novidades, sem lhe dar uma razão dessa mudança nem — o que já bastava — uma explicação acerca do que é um governo democrático. Já houve quem afirmasse que a proclamação da República brasiliense não correspondia a nenhuma aspiração enraizada nas nossas camadas democráticas; sendo, pois, uma solução prematura para a crise anterrepublicana, outro nome não merece que o de indisciplina militar (4).

Um governo estabelecido desta maneira é um governo aéreo; e só logrará cimentar-se basilarmente na consciência popular, se der aos seus projetos e aos seus compromissos o mais cabal desempenho. Para isso é mister que à sua frente estejam homens de valor, cuja inquebrantável energia, cada vez mais fortificada por um férreo querer e por um nobre agir, se imponha com aquela convicção, que é o inconfundível característico dos grandes apóstolos da verdade, do direito e da justiça.

Infelizmente assim não tem sido nestes nossos 27 anos de República. A politicagem absorveu a política, instituindo o nepotismo e o favoritismo, alargando as ambições, cooperando para que o caráter brasiliense cada dia mais se deprima numa tibieza infamante. Teríamos disso a explicação clara, completa, insofismável, se aqui, na estreitura deste artigo, pudessem ser conglobadas e analisadas como devem ser as causas econômicas, políticas e psicológicas dessa dissolução. E que torvo painel não seria preciso esboçar, para que bem patentes se tornassem as desgraças, que já sobre nós se entreveem, pairando ameaçadoras!

Para ter mão da degradação total do país, surgiram aqui e ali vozes entusiastas, afervoradas, convictas como vozes de médicos.

“Os remédios brotam com uma fertilidade pasmosa, programas surgem, logram viver dias e... vão morrendo, desaparecendo; provocam reações instantâneas, debates passageiros, e tudo volta à paz, muito nossa, do indiferentismo”. (5)

O nosso conterrâneo Laércio Caldeira também tem o seu sistema, também quer, com um nobre e altivo entusiasmo, prestar seu talento e seu esforço à sanificação da Pátria, É baseada no Cristianismo e no Naturismo a sua solução; portanto, uma solução religiosa e higiênica (?). Ao mesmo tempo que visa ao soerguimento moral, cura também do físico.

Passamos, sem discutir, por cima do Naturismo. Por que não confessar que temos dele uma concepção parca? Apenas algumas informações respigadas aqui e ali, no discurso de leituras às vezes alheias ao assunto, eis o de que dispomos neste particular. Sabemos só que ele não é seita religiosa nem tem fronteiras de ação. Não tem foros de ciência nem mesmo fala com exemplos de laboratório, mas aplica-se na atualidade a derruir os desconsoladores monumentos da progressão do crime, erguendo outros de evidente progresso social. Problemas desta ordem inquietam seriamente os povos e preocupam os mais devotos amantes da verdade (6).

O Dia 09/05/1916

Quanto à parte cristã (7) de seu sistema, verificamos estar ela imbuída de um caráter inteiramente dogmático. As afirmações do distinto beletrista fundamentam-se numa espécie de presciência religiosa, que o induz a asseverar, d'avance , o pleno êxito do seu sistema. Não é de admirar. O cristão - quer seja católico-romano, quer cismático, quer protestante - é o homem que melhor pode e sabe crer na realidade do ideal.

Tempo é, porém, de expor o arcabouço da solução apresentada por Laércio Caldeira.

"Devemos começar", diz ele (8), "com um apelo aos moços para uma ressurreição moral". Mas, como? De que caráter revestiremos este apelo? Os moços, na verdade, "são capazes desses movimentos elevados, possuidores de energias viris"; mas, cumpre que se lhes indique uma norma de proceder, é mister que entre eles se solidifique o espírito gregário, tão em contradição com o seu solto e borbulhante entusiasmo juvenil. "Devemos", continua L. Caldeira, "devemos plantar entre eles a bandeira do verdadeiro civismo". Apesar de metafórico, isto já é mais preciso, já nos deixa divisar os contornos da ideia do ilustrado articulista. O "apelo" terá um caráter "cívico". Só? Seria insuficiente, ou não? Sim, seria. Além de cívico deverá ser religioso, terá a chancela da Cruz, embeberá as raízes do Cristianismo "expurgando dos elementos aparatosos do racionalismo moderno"(9). Para levar a cabo tal solução, a mocidade em que abraçar, compreender e amar, as obrigações que a Pátria lhe impuser; seguir-lhe-á passo a passo o progresso, tomando ativa parte nele; corresponderá às esperanças que ela nutre a seu respeito; defendê-la-á dos inimigos externos e, quem sabe lá, dos internos, derramando, em prol da grandeza e independência dela, a última gota de sangue. Essa maneira de compreender o civismo justificaria ao código cívico que se baseasse nestes seis princípios inconfundíveis:

  1. amarás a Pátria;
  2. quererás a Liberdade;
  3. respeitarás o Direito;
  4. venerarás a Justiça;
  5. honrarás tua Família;
  6. acatarás teu Patrício.

Impregnai, quanto podeis, de Cristianismo esses seis mandamentos, e tereis a mais nítida concepção do "sistema" de L. Caldeira (à parte o Naturismo, está claro, que não discutiremos). Isso não é fácil. No entanto, o distinto conterrâneo aconselhou que se fizesse mais: o povo que, como nós, sofresse da "doença romana", fosse buscar a saúde ao sermão da montanha e ao capítulo treze da Epístola de Paulo aos Romanos.

Ora, o sermão da montanha (10), todos os sabem, é a doce e cantante apologia dos pobres de espírito, dos que choram, dos afáveis, dos que têm fome e sede de justiça, dos misericordiosos, dos corações puros, dos pacíficos e dos que são perseguidos por amarem a justiça. Desses é o reino do céu, esses é que são os felizes entre os felizes. Os que ouviam tais coisas, num “apertado contato com a natureza, por aquelas noites passadas à luz das estrelas, debaixo de uma cúpula azul de profundeza infinita” (11) eram todos rudes pescadores e filhos de plebe descontente e que nem por sombra tinham recebido o mais mínimo bafejo da cultura helênica. Os seus corações, porém, suspensos dos lábios do Nazareno, alegravam-se com essa alegria sem mácula que é como um raio de luz dando almas de diamante às pérolas de orvalho.

A epístola de Paulo aos Romanos é, sem dúvida nenhuma, conforme o afirma Renan (12), a base da teologia cristã e aquela em que as ideias do Apóstolo são manifestadas com maior sequência.

Dessa epístola L. Caldeira houve por bem destacar, como sendo mais adequado, pelo seu vigor moral, à "salvação de nossa Pátria", o XIII capítulo. Por aquela época, parece, discípulos de Judas o Gaulonita e ebionistas se tinham internado no seio de diversas Igrejas, máxime na de Roma, pregando os primeiros a revolta contra a autoridade romana, e os outros opondo absolutamente o reino de Satã ao do Messias e identificando o mundo presente com o império do demônio (13). Ora, o supradito capítulo é uma resposta em regra, dada àqueles maus elementos, aquele "joio entre trigo". Paulo recomenda que cada um deve submeter-se e pagar impostos ao poder reinante, porque este, como toda autoridade, procede de Deus (14). Praticai o bem e dele obtereis elogios. Sede submissos, não como quem teme o castigo, mas como quem obedece ao verdadeiro dever ditado pela consciência. Não cometereis adultério, nem matareis, nem furtareis, nem dareis falso testemunho, nem cobiçareis; e, se algum outro mandamento há, nestas palavras se resume: Amareis o próximo como a vós mesmos. O cumprimento da lei é o amor.

Nada, na verdade, mais elevado do que essa doutrina de humildade, igualdade e fraternidade. O bem é a sua essência. Dar, porém, a esses preceitos um caráter divino e, além disso, ortodoxo, enfeitado de ritos e dogmas adequados às vicissitudes dum plano preconcebido, é burlar-lhes e adulterar-lhes a essência. Concordamos que a religião, como diz a origem da palavra (do latim religare, ligar, unir, estreitar) devia enlaçar, aproximar os homens num mesmo pensamento, numa só aspiração, que voasse para "o princípio superior das coisas", fazendo-lhes erguerem os corações para a Justiça e para o Bem. Assim o pensava o grande sábio Léon Denis, quando se expressava desta forma: “Há na alma um sentimento natural, que a arrasta para um ideal de perfeição, em que se identificam o Bem e a Justiça. Esse sentimento, o mais nobre que podemos experimentar, se fosse esclarecido pela ciência, fortificado pela razão, apoiado sobre a liberdade de consciência, viria a ser o móvel de grandes e generosas ações, mas, manchado, falseado, materializado, tornou-se muitas vezes, por intentos da teocracia, um instrumento de dominação egoísta. A religião é necessária e indestrutível porque se baseia na própria natureza do ser humano, cujas aspirações elevadas resume e exprime. É também a expressão das leis eternas, e, sob este ponto de vista, tende a confundir-se com a filosofia, fazendo esta passar do domínio da teoria para o da execução e tornando-a vivaz e ativa” (15).

O Dia 10/05/1916

O perfume desse sentimento irradiou nos versículos dos Vedas, dos quais Souryo Shiddanto, o astrónomo hindu cujas observações sobre a posição e percurso das estrelas remontam a 58.000 anos, fala com fervoroso respeito (16). Os grandes ascetas, que, à sombra dos cedros do Himalaia, se deliciavam no estudo da alma humana, gotejaram-no como um bálsamo santo no coração de Krishna. E este dizia: “Os males, com que afligimos o próximo, perseguem-nos assim como a sombra segue o corpo. - Se convives com os bons, teus exemplos serão inúteis; não receies habitar entre os maus para os reconduzir ao bem. - O homem virtuoso é semelhante a uma árvores gigantesca, cuja sombra benéfica dá frescura e vida às plantas que a cercam”. Que importa que nos insultem e apedrejem e matem? “O homem de bem deve cair aos golpes dos maus, como o sândalo, que, ao ser abatido, perfuma o machado que o feriu” (17).

Sobre as adulterações dessa possante teocracia, que foi o Bramanismo, ergueu-se o Budismo como o sol, que alegra uma paisagem triste. Tinha sido Buda filho de rei. As suas riquezas eram imensas. No entretanto, a sua alma estava contristada pelas misérias que perseguiam e atormentavam não só o seu país, como as demais regiões da terra. Então, tomado de uma estranguladora angústia, ele deixa a corte e todo o seu fausto, embrenha-se na solidão murmurejante da floresta, donde volta largos anos após, para espalhar a nova expressão de Lei, pregando: “Eu, Buda, (18) uno-me à dor de todos os meus irmãos, e entretanto sorrio e me sinto contente porque vejo que a liberdade existe. Sabei, oh! vós que sofreis; mostro-vos a verdade; tudo o que somos é resultante do que temos pensado. Tudo é fundado sobre os nossos pensamentos. Se as palavras e ações de um homem obedecem a um pensamento puro, a liberdade o acompanha como a sombra, O ódio jamais foi apaziguado pelo ódio, pois não é vencido senão pelo amor. Assim como a chuva passa através de uma casa mal coberta, assim a paixão atravessa o espírito pouco refletido. Pela reflexão, moderação e domínio de si próprio, o homem transforma-se numa rocha, que nenhuma tempestade pode abalar. O homem colhe aquilo que semeou.”

Quase todas as doutrinas legadas pelos grandes espíritos, quase todas as religiões ensinam-nos a fazer o bem, com a mira em uma recompensa futura. “Eis aí”, exclama um autor, “eis aí um móvel egoísta e mercenário, que se não encontra no Budismo”, no qual só se ensina, como diz Léon de Rosny (19), que “é necessário praticar o bem, porque o bem é o fim supremo da natureza”. Mas, comenta o mesmo autor, “essa lei calma e pura, porque nada traz em seu apoio, ficou ininteligível para a maioria dos homens, visto lhes revoltar os apetites e não prometer a espécie de salário que querem ganhar”.

Da mesma forma Platão encarnava toda a sua filosofia neste grande princípio: “todas as coisas existem e têm por objetivo o bem, e o bem é a causa de toda a beleza” (20).

Na Grécia, porém, já Zenão, com o estoicismo, implantava uma doutrina também suave e profunda. De origem fenícia, o grande filósofo, que, por assim dizer, pode ser apontado como o fundador das ciências morais da Hélade gloriosa, assimilara todo o gênio grego pela sua longa estadia na Ática. Suas teorias passaram, depois de largo tempo haverem aproquelado a alma humana em todos os revezes, fortificando-a com uma consolação mais doce que o mel do Himeto. A força da sua doutrina consistia em afazer os homens ao rato da virtude, essa

...terra ignota de Ofir, Para cuja conquista há muito... Cismando, na incerteza ainda de partir.

Pode-se dizer que são afins as teorias de Zenão e Aristóteles, quando as vemos pregar que, educando as potências do nosso espírito, descobriremos a fonte da perfeição, donde deriva, estreme e cristalina, a linfa do Bem. Se conhecerdes o Bem, sereis propensos a segui-lo; o Mal é a resultante da imperfeição do nosso conhecimento. Verdade é que a natureza pôs na nossa alma, como numa jaula, todas as paixões ululantes, ferozes; mas é dever nosso viver livres, inteligentes, para galhardamente dominá-las. Para o estóico o prazer e a dor são nada. A morte é, talvez, um benefício. “Assim como uma torrente conserva sempre a mesma forma e aspecto, posto que suas águas se renovam sem cessar, da mesma sorte a natureza é um rio que flui sempre. O universo, considerado no seu conjunto, é invariável; mas eternos são só o espaço, os átomos e a força. As formas da natureza são essencialmente transitórias e passageiras”(22). Que nos baste o estudo dos fenômenos, uma vez que vedado nos é ir ao fundo das causas, cuja verdade parece inatingível. Ainda que tocássemos essa verdade, seria tudo? Não. Faltava-nos a prova da certeza."Que nos resta pois? A ciência, tal como nos é dado alcançá-la pelo estudo, a virtude, a amizade, o amor da verdade e da boa fé, a aceitação resignada das condições da nossa existência e uma vida conforme aos princípios da razão" (23).

Que nos ensinava Krishna? Que fito tinham as palavras de Buda? A que alvo miravam as teorias morais de Zenão, Sócrates e Platão? O Bem. Não estabeleciam distinção entre estes ou aqueles seres. Amai e sede bons — eis a súmula moral das doutrinas de todos aqueles grandes espíritos. Isto não se discute. O terreno estava surribado, amanhado para receber a semente do Cristianismo. Ela caiu nesse humo fertilizado pelo trabalho de muitos séculos de doutrinas e filosofias sãs, germinou, cresceu, desatou a galharia verdejante, floresceu, frutificou - deu sombra e frescura em redor.

O Dia 15/05/1916

Não se pense que estamos a forcejar por fazer entrar no Cristianismo, diretamente, a influência filosófica do Brahmanismo, do Budismo, ou do estoicismo.

A História aí estaria para o impedir. Entre países separados por barreiras etnológicas e preconceitos políticos, sobreposse divergentes, dificilmente efetuar-se-á a transmigração imediata daquilo que fez do Cristianismo o mais vigoroso impulso para o aperfeiçoamento da humanidade, isto é, o amor à justiça, a compaixão pelos pobres e desgraçados, o emprego de todos os sentimentos bons na realização do Reino de Deus na terra.

Mas o que se não pode negar é que a doutrina do Nazareno aperfeiçoou o sonho de bondade e de amor, que palpitava no imo de todas as teorias filosóficas, que a procederam. O brilho dessas teorias pairava, esparso, no ambiente da antiguidade, dando fugitivas claridades a várias regiões da terra. Jesus, por uma intuição maravilhosa, à força de leituras empolgantes do Velho Testamento, soube reunir essas claridades, chamá-las a um foco, fortalecê-las, dar-lhes, afinal, por via dessa unificação,uma originalidade estupenda. No fundo do seu coração a bondade jazia como uma pérola recatada. E só quando ele a fez reluzir ao sol da popularidade, foi que se viu quanto pode o amor, quando dirigido ao alvo como aquele a que Jesus o encaminhou, numa época como aquela, de pressão e de esbulho por parte de Roma conquistadora.

Jesus não encarava a sua missão pelo prisma que talvez se pudesse chamar um autodogmatismo: nada de dogmático transparecia na suavidade da sua doutrina, tanto que sempre lhe passou despercebida a veleidade de transportar è escritura os seus discursos, as suas parábolas, enfim, o seu ensino. Inútil lhe era saber se seus discípulos acreditavam nisto ou naquilo; a questão única era - que todos o amassem como ele amava a todos.

Por isso não vacilamos em abraçar a convicção de que foi o amor, na mais humana acepção da palavra, que até os nossos dias trouxe o Cristianismo. Os milagres de Jesus, que a História não toma em linha de conta, são para nós o fruto místico da época; eles assumem, a nosso ver, a feição duma vistosa moldura em que a fraqueza humana quis enquadrar o maravilhoso fenômeno da revolução social gerada humildemente num recanto da Galileia até então ignorado(24), e que veio, por fim, a encher o mundo. Podem constituir a beleza exterior da grande doutrina, quando esta passou a ser iscada dos males do século; mas, só por si, seriam impotentes para assegurar a vitória definitiva do manso dizer do Nazareno, viso como as palavras dele não procuravam maravilhar o auditório, que, feito de gente simples, só suspirava por consolação e lenitivo e amor, numa época agitada, quando a pátria gemia, esmagada pela dominação estrangeira.

Se o milagre, conforme o entenderam Strauss na sua Dogmática (I, § 17, 224 e seg.), Zeller na sua Escola Histórica de Turing e Sybel em A Crítica Histórica dos Milagres, é um fato cuja explicação não pode de nenhum modo ser feita pelo concurso das causas finitas, está, portanto, relegado do terrenos empírico, histórico e moral, para as zonas obscuras da teologia. A História de forma alguma admite um princípio que lhe venha destruir a conexão dos fatos, sobretudo se esse princípio tem suas raízes no sobrenatural. Ora, o milagre sobrenaturaliza a Cristo, desfigura-lhe o perfil histórico; por conseguinte, enguanto os Evangelhos se empenham, com todo o seu poder dogmático, em nos antojarem Jesus milagroso, só fazem com que a História repila esse caráter que querem dar, e que não serve, ao fundador da mais humana das filosofias.

Um Jesus humano deve, por força, ser despido das névoas sobrenaturais em que o envolvem a tradição, dia a dia adulterada pelas necessidades históricas a cuja pressão a cristandade, por vezes inúmeras, teve de submeter humildemente a cerviz.

O Dia, 17/05/1916

Ora, sabendo-se ser Laércio Caldeira um convicto calvinista, não se concebe que ele compreenda e ensine o Cristianismo sem ser de acordo com o seu credo. São de louvar essas convicções, e nem de raspão sequer nos passaria pela mente o prurido de vir cachinar delas pela imprensa; agora menos do que nunca, visto tratar-se de um amigo.

Dissemos ser meio religiosa a sua teoria, apresentada como ponto de partida para a renovação do caráter brasiliense. Ele mesmo no-lo confessa, quando escreve que a solução, vazada na sua brilhante série de artigos, é a solução do "Cristo Crucificado, Morto e Ressuscitado" (25). Convém atentar nas maiúsculas e sobretudo no último qualificativo, que por nossa conta grifamos, a fim de lhe evidenciar a importância. E essa solução — diz ele ainda (26)— esse sistema "não é novo, nem criado pelas condições mesológicas, étnicas ou políticas. NÃO É UMA OBRA TRABALHADA PELOS HOMENS".

Por quem será então?

Pelo Cristo Ressuscitado, isto é, pelo Cristo divinizado, pelo Cristo dogmático.

É um fruto do sobrenatural.

Estamos de perfeitíssimo acordo com Laércio Caldeira quando ele nos entremostra o Cristianismo como uma religião vista através da moral, isto é, como um robustíssimo agregado de preceitos nobilitantes, cujo poderá mais fundo do que nenhum outro calou na consciência universal. Divorciam-se, porém, as nossas ideias, quando ele quer envolver a moral do Nazareno com as roupagens do dogma e a faz descer do céu por milagre, quando, enfim, a diviniza,obrigando-a a não reconhecer outras regras senão as da suposta vontade de Deus(27).

"Essa doutrina" - di-lo Herbert Spencer (28) - "nasceu entre os selvagens, que não tinham outro freio além do temor dos seus semelhantes, senão o do espírito dos antepassados, e para quem a ideia do dever moral, distinto da ideia de prudência social, nasce desse temor. Aqui a doutrina moral e a doutrina religiosa são idênticas. Os símbolos religiosos, ortodoxos ou não, todos exprimem a crença de que o bem e o mal são exclusivamente determinados pela vontade de Deus. Esta suposição tácita passou dos sistemas de teologia aos sistemas de moral; ou antes, pode-se dizer que os sistemas morais, que no começo da sua evolução se distinguiam pouquíssimo dos sistemas teológicos, que os acompanhavam, participaram dessa suposição. Vê-se isso nas obras dos estoicos como nas de certos moralistas cristãos. Entre as obras recentes posso citar os Ensaios sobre os princípios da Moral, por Jonathan Dymond, um quaker, que fez da autoridade divina o único fundamento do dever, e da sua vontade revelada a única regra suprema do bem e do mal. Não é só por autores pertencentes a uma seita relativamente tão pouco filosófica que esta crença é exposta, é-o também, com algumas variantes, por autores pertencentes a seitas diferentíssimas. Afirmam eles, com efeito, que se não se crê em Deus, não há guia moral: ora isto não vem a dizer senão que as verdades morais não têm outra origem senão a vontade de Deus, que, se se não considera como revelada em livros sagrados, é revelada pela consciência. Esta doutrina não resiste a exame. Realmente, se, como se afirma, não há outro fundamento de distinção entre o bem e o mal senão a vontade de Deus, revelada ou intuitivamente conhecida, os atos que se consideram como mal não poderiam ser julgados como tais se não conhecêssemos essa vontaáe divina de que se fala. Mas, se os homens não soubessem que tais aos são maus como contrários à vontade de Deus, não se tornariam culpados cometendo-os; se não tivessem outro meio de os reconhecer, poderiam então cometê-los indiferentemente como atos que hoje julgamos virtuosos. Os resultados práticos seriam os mesmos. Sob o ponto das questões temporais, não haveria entre essas duas espécies de atos nenhuma diferença: porque, dizer que na vida se corre o risco de causar desgraças continuando a praticar os atos chamados maus e cessando de praticar aqueles que se chamam virtuosos, o esmo é dizer que esses atos produzem por si próprios consequências nefastas ou úteis: isto é, reconhece-se uma outra origem das regras morais que a vontade divina revelada ou suposta, e admite-se que elas podem ser estabelecidas por uma indução fundada na observação das consequências dos atos".

Parece-nos que a nenhuma outra conclusão se poderia chegar.

Concedamos mesmo que o Cristianismo seja uma religião. Mas devemos concordar com o fato de o transformarem numa religião cheia de preceitos, atochada de ritos, transbordante de dogmas? Não, porque este nunca foi o desejo de seu fundador. Já por diversas vezes dissemos ser a essência do Cristianismo o amor, donde derivou, para os quatro cantos da terra, a perfeita compreensão da fraternidade. Foram os séculos, com o seu perpétuo dobar, que adulteraram a ideia de Jesus, adulteraram até a sua própria personalidade dele. De homem que era, fizeram-no Deus, afirmaram que ele, mais arde, havia de vir para julgar os vivos e os mortos, rodearam-no de milagres, colocaram-no, por esse modo, no centro de uma Igreja que monopolizou a infalibilidade.

A Igreja é uma instituição; a Religião é um sentimento. Laércio Caldeira, dizendo que o Cristianismo não é uma obra humana, diviniza Jesus. Um Jesus divino nada tem com os descalabros das nações, nem com as crises financeiras, nem com as mudanças de governos... O que ele quer é que não deixem de adorar, de erguerem templos em honra sua, e que todos se desprendam dos interesses terrenos para só aspirarem à mansão celeste.

Olhemos, porém, Jesus através do prisma humano. Como nos aparece ele? Como a mais robusta encarnação dos altos sentimentos humanos; é o moralista sincero e ativo, que soube não só pregar o bem, mas praticá-lo com uma certeza admirável. O seu exemplo foi o que acompanhou pari-passu a sua doutrina.

Marco Aurélio deixou-nos uma filosofia suavíssima, porém sobremaneira intelectual; as suas páginas concretizam o Bem de um modo lógico demais; seu filho foi uma criatura "execrável"; o desabamento do mundo continuou depois dele, Jesus, porém, que nada deixou escrito, renovou, com só o seu exemplo, a alma da Humanidade. Por quê? Porque soube reunir discípulos em cujo seio espalhou a fecunda semente da sua bondade espontânea, e conseguiu, desse modo, fazer-se lembrar da geração em geração.

"Eu não sei" - exclama Strauss (29), "se se concede mais honra ao Cristianismo prestando-lhe a origem mais sobrenatural, do que procurando mostrar, com a história na mão, que ele foi a quintessência e como o fruto amadurecido da mais nobre seiva, que tenha circulado até então em todos os ramos da grande família humana. Basta dizer que, se quisermos compreender o seu nascimento, nos não devemos ater ao estudo do judaísmo. Ele rebentou no solo do judaísmo, mas depois de esse solo ter sido impregnado e saturado de elementos estrangeiros. Jamais, não tenhamos receio de o dizer, jamais o Cristianismo teria passado do Oriente para o Ocidente, para se tornar e ficar senão por excelência a religião do Ocidente, se este não tivesse presidido ao seu nascimento tanto como o Oriente, e o espírito grego-romano tanto como o espírito judaico. Para gerar um produto como o Cristianismo, preciso foi que o judaísmo fosse primeiro pulverização no terrível almofariz da História, que o povo israelita andasse disperso aos quatro ventos por exílios reiterados, e assim recebesse, por sucessivos canais, elementos de cultura estrangeira. Foi necessário, sobretudo, que os esponsais do Oriente com o Ocidente, obra do herói macedônio, tivessem sião consumados na Alexandria. Sem Alexandre, Cristo é impossível: proposição blasfema para ouvidos teológicos, mas que não há de escandalizar os que sabem que todos os heróis têm uma missão divina".

O Dia, 20/05/1916

Vide Scipio Sighele: A Multidão Criminosa.

Lavergne: Les forçats considerés sou le rapport physiologique, moral et intellectuel. p, 206.

Júlio Payot: A Educação da Vontade, livro I, cap. III, § II, p. 44

Vide o folheto: O papel político do exército, de S.Miranda (1901)

Laércio Caldeira: A Solução Cristã-Naturista (I, O sistema "Bilac").

Laércio Caldeira: Série citada (VIII, o Naturismo).

O distinto aventador da solução cristã-naturisa é protestante (calvinista). Isto basta para que se lhe relevem os arroubos evangélicos de que esta saturada a luminosa série de artigos, cuja publicação ele fez pelo O Dia, a respeito da dita solução. Pela mesma razão não devemos estranhar que ele de longe em longe nos antoje assertos como este: que o naturismo "veio do passado remotíssimo - Adão praticou-o"...

Série citada (I, o sistema "Bilac").

Parece-nos que o Racionalismo nenhum elemento aparatoso ajuntou ao Cristianismo. Quase que o seu único objetivo foi afastar-se de toda e qualquer autoridade, quer no terreno religioso quer no moral, quando se lhe deparava a necessidade de discutir uma causa, um efeito, um fenômeno, etc. Sempre que ele se voltou para o Cristianismo foi para analisá-lo ou combatê-lo à luz da razão, livre do apoio ou das peias de toda autoridade. É, por assim dizer, a fonte recôndita do livre-pensamento.

Mateus,cap. V, vers. 3 e seguintes.

Renan: Vida de Jesus , cap. X, p. 136.

S.Paulo, cap. XVII, p. 346.

Vide Renan: S.Paulo, cap. XVII, p. 355

O eruditíssimo historiador das Origens do Cristianismo chama-nos a atenção para o fato de Paulo, nesta epístola, dar como de origem divina a autoridade (potestade) temporal. Ora, a sua epístola era escrita no 4º ano do governo de Nero, isto é, do governo que até então fora o melhor depois da morte de Augusto. "Mas", exclama Renan, "veja-se a que se expõem as teorias absolutas! O funcionário de Deus, cuja aprovação devem procurar todos os homens honestos, cuja espada não se volta senão conta os maus, será em alguns anos a Besta do Apocalipse, o Anti-Cristo, o perseguidor dos Santos. (S.Paulo, cap. XVII, p. 357).

Depois da morte, parte I, cap. I, pgs. 1 7-18.

Dr.Paul Gibier: O Fakirismo ocidental,p. 86.

Baghavadgita(apud Léon Denis, op. cit., pgs. 27-28).

Dhammapada(apud Léon Denis, op. cit., p. 33).

La morale du Boudhisme.

ApudEmerson: Os Super-homens (Platão, p. 57).

José Oiticica: Sonetos (A Virtude)

Apud J.W.Dr.apper: Conflitos da Religião com a Ciência, cap.l, pgs. 25- 26.

idem,ibid.p. 27.

É crença geral, como sempre foi, que Jesus nasceu em Belém. Entretanto, a História demonstra-nos ser infundada essa crença, e que Jesus nasceu em Nazaré, cidadezinha tão desconhecida que não é citada nem no Antigo Testamento, nem no Talmud. Também Josefo não a cita, Renan Observa: "O recenseamento efetuado por Quirino, do qual se faz depender a jornada a Belém, é posterior pelo menos dez anos, ao ano em que, segundo Lucas e Mateus, nascera Jesus. Com efeito, os dois Evangelhos põem o nascimento de Jesus no reinado de Herodes (Mateus, II, 1, 19, 22; Lucas, I, 5). Ora, o recenseamento de Quirino foi feito só depois da deposição de Arehelan, isto é, dez anos depois da morte de Herodes, no ano 37 da era de Accio".

L. Caldeira: Série citada (V, Cristo como solução).

Idem, ibid.

Porque está claro: divinizar Jesus, equivado a fundar uma Igreja, e isto não é senão estabelecer entre os homens e o céu um veículo de permutações de pensamentos e ordens. A Igreja faz-se porta-voz de Deus.

Que é a moral? Cap. IV § 18, pgs. 77-79.

Nova Vida de Jesus. Vol. I, Livro 1, cap. XXVII, p. 250.

A LITERATURA COMO EXPRESSÃO DO REAL

A Henrique Brüggemann

I

Durante a agitada época (1) em que fui alvo dos mais violentos ataques e, ao mesmo tempo, das mais desvanecedoras defesas, facultada me foi, pelos estudos a que tive de cingir-me no desejo de varrer plenamente a minha testada, a oportunidade de corrigir muitas das ideias tanto tempo acariciadas pelo meu espírito insatisfeito.

Desci com Max Müller à história das religiões e com Grasserie à sua psicologia delas, procurei achar-lhes a filosofia através da célebre obra de Höffdding, estudei os críticos do Cristianismo, desde o ríspido Strauss ao suave e meigo Renan, percorri a lírica sanidade d'O Ensino de Jesus de Tolstói, e cheguei, enfim, ao espiritualismo científico de Léon Denis e Delanne, depois de passar ainda por outros autores somenos.

Ao fim dessa exaustiva caminhada, a conclusão achada foi: que, em todos os tempos, desde que o homem afirmou o seu pensamento na criação da linguagem, entrando assim na História, ele sempre sentiu, no fundo do seu ser, o pressentimento da divindade, ao qual se viu jungido como pela força de um instinto.

Doloroso foi para mim ver tombar, um a um, os marcos que assinalavam o avanço do meu espírito em busca da verdade. Olhei derredor, e, quando nada mais achei, nem ao menos as pegadas do meu antigo trilho, um grande desconsolo me empolgou. Passageira, porém, foi a nuvem que obscureceu os meus horizontes. Um novo sol se ergueu, mais brilhante e mais sol do que o antigo: à sua claridade novamente corri os olhos em redor e vi que era mister deixar o descampado onde me achava e cuja maninhez tão grande se me deparava que nele nem cardos abrolhavam, nem sarçais. Era o deserto do positivismo materialista.

Não foi só por uma necessidade puramente filosófica que me senti forçado a abandonar as fileiras dos que a Carlos Vogt, Ernesto Haeckel, Büchner, Comte, Taine, e tantos outros, queimavam incenso e hinos entoavam; era também por uma necessidade de Arte.

Tanto que, hoje, não mais reconheço de todo em todo infalível o caráter dogmático, por assim dizer, da presumida ciência de Zola em Le Roman Expérimental, malgrado as obras primas que o realismo e o naturalismo nos deixaram.

Falar do realismo e do naturalismo é falar de Balzac, de Flaubert, dos Goncourt, de Zola, etc. Mas as suas obras? Haverá nelas a afirmação daquilo que faz do homem o ser superior, livre pela força do espírito e nobre pelo vigor da razão, isto é, a afirmação da alta consciência humana? Longe disso.

Escreveu Carlos Vogt que "as leis da natureza são inflexíveis, não conhecem moral nem benevolência". Pois a teoria artístico-científica da escola realista e, sobretudo, da naturalista, pode ser representada resumidamente pela frase do célebre materialista Vogt.

O homem, portanto, fica à mercê da inflexível natureza. Ela fará do desgraçado um joguete da sua amoralidade - e é por isso que temos as belezas da Besta Humana!.

Não. A Arte Literária não deverá ser só e sempre a pintura formidavelmente crua das misérias da nossa humanidade. As realidades não são apenas as baixezas do instinto tresloucado, arremetendo com os impulsos maus do nosso egoísmo e da nossa sexualidade. Há muita coisa bela dentro do belo da Existência. Por que começar pelo esquecimento dos sentimentos bons e terminar pelo abastardamento da vontade?

Desejável seria, pois, que, cada qual que maneja a pena na fatura das obras de Arte, buscasse atingir a maior soma de beleza através da maior soma de moralidade. Tornar-se-ia melhor o homem e mais suave a vida, creio-o.

(l) Aludo à saraivada de apodos com que me mimosearam os anônimos da nossa imprensa, quando da publicação das minhas "Considerações atuais".

O Dia 04/07/1916

ARTES E LETRAS

“Que pensent-ils faire dans ce sepulcre?”
— Taine

Há cerca de dez anos, quando no Ginásio iniciamos o estudo da Literatura, Othon D’Eça teve a ideia excelsa e luminosa de fundar aqui uma "Academia de Letras", que, fatalmente, à imitação da Academia Brasileira, por sua vez imitada da "Academia Francesa", devia contar quarenta membros.

Quarenta! Onde buscá-los? Acharíamos em Florianópolis quarenta literatos de dezessete anos, como nós? Começamos a contar: Eu, tu, ele, aquele, aquel'outro, fulano, beltrano, sicrano... E então? Não chegava a quinze o total dos imortais. Uma Academia de quinze membros era uma miséria, uma vergonha, um opróbrio para a "terra de Cruz e Sousa, Luiz Delfino e tantos outros" - como reza o discurso bairrista.

Alguém lembrou que podíamos trazer para o nosso meio alguns dos "velhos". Citaram-se nomes, que foram repelidos. Não! Que eles não sabiam nada do que se passava no terreno da Arte Nova, fugiam à palingenesia intelectual, estavam encoscorados crassas crostas de caruncho, tresandando a BALMES e a Soares de Passos, a Bernardo Guimarães e a Montopin... E nós éramos os revolucionários da hora solene, os reformadores da Arte na Ilha dos Patos, aqueles que, das colunas da gazetas, semeávamos pelo quadrante do espírito as ideias fortes e fecundas, donde haveria de brotar a grande seara da Beleza intangível! A pátria olhava para nós, sentada à mesa do "Café Comercial", confiando no alarido trovejante com que nos abeirávamos das questões mais sutis. Uma rapaziada que berrava assim não podia deixar de ter talento!

Mas, eis senão quando a ideia do meu amigo Othon entrou a ser chasqueada pelas colunas daquele pasquim de cortante título e encardida memória - a Tesoura - com um furor de zulo. As chufas, ervadas de infâmia, multiplicavam-se. Então saí a campo, decidido a espinafrar o traste que ousava, de tal guisa, poluir a majestosa "Academia Catarinense de Letras", Rabisquei pelo Argo não sei quantos artigos furiosos, deram-me pelos narizes não sei com quantos desaforos de arreciro, e quase entrei em conflito com Laércio Caldeira, o qual, diante da proposta que fiz do nome de Barreiros Filhos para presidente da projetada Academia, por ser(dizia eu) "um impecável purista", escreveu longa antipologia do purismo, que, felizmente, não foi publicada... Era esse o nosso feitio!

Mas, como diz a cançoneta ou coisa que o valha:

Tout passe, tout lasse, tout casse...

Não tardou muito e a ideia de Othon D’Eça morria como um foguete que, depois de ter subido, estoirado e derramado no ar um chuvisco de ouro, tombava num quintal escuso...

* * * *

Volvida uma década, a Semana relembrou a necessidade da fundação duma "Academia Catarinense de Letras" em Florianópolis, citando logo os nomes dos que a poderiam compor. Por desgraça, apesar de na lista figurarem pessoas que, com boa lógica, não podiam fazer parte dela por não serem catarinenses, ainda assim não se atingia o número consagrado de quarenta...

Creio, porém, que a dificuldade não está na quantidade de sócios, mas sim na qualidade. Porque uma Academia deste gênero, fugindo aos moldes adotados, pode muito bem ser constituída de cem, oitenta, trinta ou dez membros. Da qualidade deles, repito, é que se questiona.

A meu ver, seria contrassenso fundar uma Academia com literatos que não escreveram ainda nenhuma obra e outros que já escreveram abundantes, mas péssimas. Não aponto nenhum dos últimos para não incorrer o vitupério dos cegos adoradores de bezerros-de-ouro...

Pois, senhores, este é que é o ponto.

Há aqui oito ou dez legítimos homens-de-letras, não por terem lançado ao público alguns volumes de prosa ou verso, mas legítimos pelo carinho com que tratam a língua vernácula, o amor com que cultivam a Arte e o tato com que versam as Ciências. Para eles, a publicação dum livro é coisa séria, seríssima; e, compreendendo escrupulosamente a responsabilidade da empresa, não ousam aventurar-se aos acasos da crítica. Verdade, o renome do "escritor primoroso" não é lá coisa que custe muito a obter, visto como os críticos do Pindorama não têm fibra nem medula, e de pronto abaixam a férula justiceira para contar a mediocridade dos autores, uma vez que estes lhes ofertem as obras com grisalhantes adjetivos de rasteira adulação. Mas, o futuro para o qual os paparretas da Literatura têm o decoco de apelar quando se veem atacados pelos que lhes descobriram o saber pernicioso — o futuro há de reduzi-los a uma justa proporção...

Salvante essa dezena de verdadeiros espíritos cultos, o resto é uma ciganaria literária de quinta classe, composta de fabricantes de maciças brochuras ou linfáticos folhetins vis, onde os pronomes andam como gatos em saco e os conceitos lembram monólogos de idiotas em corredores de manicômios.

Já a Semana deve ter compreendido que, com a fusão dessas duas classes, não se pode fazer sequer uma sociedade literária, quanto mais uma austera e grave Academia. Dum lado, gente que sabe escrever, mas receia fazê-lo; doutro, sujeitos que não sabem escrever e, contudo, escrevem... Haverá caso mais curioso?...

Uma "Academia de Letras" em Florianópolis é ideia que não vem à cabeça quando temos dezessete anos e, às vezes, ocorre aos que prolongam a leviandade desses dezessete anos pela vida adiante.

E a mais ninguém.

(in Terra n. 17, 24 de Outubro de 1920, p, 4-5)

O REGIONALISMO EM SANTA CATARINA

O que caracteriza a fase atual das provincianas letras catarinenses é a estagnação. Não se produz. Os nomes em evidência estão entorpecidos, hibernando em preguiçosa e prolongada vadiagem.

Todavia, a minha geração estreou cheia de esperanças e, mesmo, fazendo esplendorosas promessas dalgumas das quais fui o confiante heraldo.

Naquela época estávamos saturados das maiores e mais influentes literaturas estrangeiras. Com raras exceções, os autores nacionais conhecíamo-los nós apenas a retalho, pela Seleta em prosa e verso, pela Antologia nacional e pelos Autores contemporâneos Ao contrário, o que havia de Shakespeare, Walter Scott, Dickens, de Goethe, Freytag, de Tolstoi, Dostoievski, Turgueniev, Gorki, de Fogazzaro, D'Annunzio, de Galdós, Blasco Ibañez, de Maeterlinck, de Hugo, Balzac, Flaubert, Zola, Daudet, Maupassant, Edmond e Jules de Goncourt, Bourget, Hervieu, Barrès, posto em vernáculo, tudo isso passara sob nossos olhos ávidos. E graças ao francês ginasial, íamos entrando em relações com autores estrangeiros vertidos para essa língua: Ibsen, Nietzsche, Gogol...

Quando Diniz Júnior - já lá vão lustros - nos apresentou, com uma cara ilustre e desvanecedora e bondosa a João do Rio, não nos declarou patrioticamente emparedados nos livros de Bernardo Guimarães, nem de Alencar, nem de Távora (o Franklin, não o Juarez...), nem Gonçalves Dias, nem ouros que tais cá de casa; mas, ao contrário, filiou nossa cultura artística, sobretudo, em autores os mais preclaros do estrangeiro.

O primeiro sentimento literário nos jovens rarissimamente é nacionalista. A mocidade é vaidosa e curiosa; talvez mais curiosa que vaidosa. Seu voo às letras de além-fronteiras não pode ser acoimado de impatriótico. Explica-se pelo gosto de brilhar originalmente e, ainda mais, pelo desejo de conhecer algo nuevo. Quando um moço escritor se reduz ao ar confinado das letras de sua província, é porque essa província dispõe de inestancável e rutilante tradição literária e ele possui o alento de Roumanille ou o gênio de Mistral - capazes de renovar incessantemente os tesouros daquela tradição, através de lendas e poemas imortais; ou, então, é porque ignora que não basta redigir com solecismos vulgares e transitórios regionalismos algumas fantasias mais ou menos dramáticas ou humorísticas para nos dar a paisagem da província que habita, e cuja fisionomia moral ainda mais difícil lhe será revelar, ou seja porque ela não possui tal fisionomia, ou seja porque essa revelação não pode ser feita senão por uma língua rica, afinada e dútil, e nunca por um linguajar relativamente restrito e destrambelhado.

Eu não sou infenso ao Regionalismo. Nunca subscrevi nada que encerrasse absoluto repúãio à legítima literatura realista. Também não me podem ser lançadas em rosto palavras minhas, leviana ou tendenciosamente interpretadas. Compreenão e justifico, p. ex., o regionalismo de um Calendau ou de um Stromtid; mas encontro a maior dificuldade em compreender, p. ex., o regionalismo de meu preclaro amigo Tito Carvalho. Certamente, seu afã de nobilitar o Estado natal, atribuindo-lhe uma capacidade literária autêntica e inconfundível, é digno dos mais calorosos gabos. É, em verdade, prodigiosa a soma de paciência por ele empregada na fatura de seus contos serranos.

Há, em suas páginas, uma alta e absorvente preocupação artística, talvez baldada. Para quem escreve Tito Carvalho? Para nós, citadinos? Mas se não entendemos os termos locais de que recheia sua prosa!... Para os caboclos de serra–acima? Mas se os caboclos – nove em dez – são analfabetos!... Ademais, o linguajar serrano não é sequer um dialeto estabilizado, definido, com fronteiras bem marcadas; é, sim, um vocabulário incerto e sujeito a todas as vicissitudes inerentes à evolução humana – intelectual, social e moral – da região. Quando se desanalfabetizar aquela população, galvanizando-a à corrente incessante e esclarecedora do periodismo, quando se lhe derem ótimas rodovias e ferrovias prestantes que a ponham em contato pronto e contínuo com os centros irradiantes da cultura pátria, veremos seu pseudo dialeto ir sendo quintado pela língua polida do país, laço poderoso da nacionalidade e que, portanto, precisa ser cada vez mais equilibrado e depurado por todos quantos manejam a pena.

O que ressalta, nas produções de Tito Carvalho, já o disse acima, é o esforço do lavor artístico. Seria interessante ler-se a um caboclo são joaquinense ou lageano, p. ex., a Bulha d'Arroio, para saber se apreende a lógica e a verossimilhança da ficção... Tomai, porém, essa ou outra página sua e substituí-lhe os termos e os torneios ditos regionais por vocábulos e expressões genuinamente vernáculas, literárias, e vereis quanto se aproxima da maneira atormentada e violenta de Fialho d'Almeida. Quer dizer: a elaboração artística do escritor catarinense não é uma função que se caracterize pela espontaneidade, e pela sinceridade, como parece-me, se deve exigir na literatura regionalista. Como estamos longe do humilde poeta Alphonse Tavan, "filho da gleba, curvado para ela", "o único que foi verdadeiramente povo" e a quem Mistral bucolicamente comparou ao cantar do grilo escondido em sua moita, pelas noites de verão!... Aqui, ao contrário, há um artista refinado, culto, buscando atentamente efeitos, aplicando o raciocínio a seu método, ajustando, pesando, cambiando frases, sem conseguir disfarçar os vestígios de tão enérgico esforço.

Não ponho, nestas observações, o mais leve resquício de censura. E, ainda que o pusesse, não o faria por maledicência nem por animo bellandi.Tito Carvalho reconhece que nossa mocidade já passou e é tempo de mostrarmos ter adquirido o critério e a tolerância necessários para agirmos como homens de educação perante qualquer divergência de ideias ou de sentimentos. Certamente, ainda haverá por aí, dentre os da minha geração, quem se arrepie e abespinhe com a mais leve crítica. Mas nós justamente deveremos demonstrar com a nossa atitude o contraste de sua verde e cômica inexperiência...

Dizer, pois, que qualquer dos contos regionais de Tito Carvalho é o produto de uma vontade que busca ser original a todo transe aparentando uma simplicidade que está longe de possuir, não é decretar-lhes a nulidade; é, antes, indiretamente, reconhecer que estamos diante de um temperamento dotado de uma viva percepção da beleza, a quem repugnam as formas frívolas dos escrevinhadores incultos, lamechas e triviais.

Em vão Tito Carvalho se esforçará por me fazer crer que sua estada em São Joaquim o tenha identificado estreitamente com a livre e rude vida serrana, a ponto de não mais pensar nem sentir, artisticamente, senão nos moldes e, que sentiria e pensaria um caboclo doado de um temperamento estético igual ao seu. Filho da cidade – cidade pequena, sim, mas, enfim, com um nível social incomparavelmente superior ao das fazendas do planalto, – não poderia aclimar-se, do ponto de vista psicológico, ao ambiente serrano. Isso exigiria dele uma espécie de regressão ou diminuição mental, somente possível a um espírito vulgar.

Amando apaixonadamente a arte, cultivando, com pudor, a leitura dos velhos clássicos da língua, sobretudo Vieira, buscando as boas rodas de palestra onde o comentário aos fatos, às coisas, aos homens e às ideias só se faz com a melhor ironia, deveria terse sentido como que expatriado entre aquela gente, naturalmente simples, chã e, por isso mesmo, incapaz de satisfazer as altas aspirações de sua inteligência.

Conta-se que quando foi ao Egito, a fim de ver a terra que deveria servir de palco às cenas de um livro seu, Flaubert ficou ao chocado pelos aspectos chatos e monótonos dos costumes da região, que se meteu na cabinedo vaporzito do Nilo, sem ver mais nada... Da mesma forma, Eça de Queiroz atravessou a Terra Santa, com uma pressa arrepiada diante da "secura, sordidez, soledade e entulho" que por toda parte se lhe deparava... Todavia, sabemos as pinceladas certas, nítidas, vigorosas, sugestivas, com que um nos revelou a vasta melancolia do deserto e o outro as paisagens evocativas do Evangelho. É que as faculdades artísticas são tanto mais impressionáveis quanto mais requintadas. Faço justiça a Tito Carvalho afirmando-o senhor daquelas faculdades. Porém, no seu caso, como nos daqueles dois mestres, trata-se apenas de objetivação. O que os impressiona são os aspectos exteriores, os contornos das coisas, é a paisagem, em suma, em sua complexidade objetiva. E chego, assim, a esta conclusão irrecusável: o regionalismo de Tito Carvalho é destituído de psicologia, nada subjetivo e, portanto, convencional.

Certo, o que predomina nos contos do prosador catarinense não é a feição descritiva, porquanto o que ele busca é dar-nos os traços íntimos, essenciais, espirituais – digamos assim – da vida serrana. Entretanto, em vários lances tem-nos proporcionado a visão de algumas paisagens e a enfocação de algumas figuras fortemente desenhadas. Mas isso é muito pouco para se chamar regionalismo. Ainda que entrem aí vocábulos regionalistas, mesmo que aqueles tipos se apresentem em patoisant nos diálogos, percebe-se sem dificuldade o artificialismo dessa literatura, por onde não circula a seiva profunda, espontânea e comunicativa da sinceridade.

Se Reuter e Mistral dispunham de línguas perfeitamente definidas em sua sintaxe e em seu vocabulário, se as regiões em que ambos, respectivamente, foram nados e criados possuíam tradições históricas ou literárias a que poderiam filiar-se as suas atividades artísticas sem aberrar do entendimento dos leitores, devemos reconhecer que faziam o legítimo regionalismo. E ainda compreendo o sertanismo, direi, mesmo, o regionalismo de Afonso Arinos, pois que, como observou Tristão de Ataíde, não retrilhava o "pitoresco" – naturalmente por o sentir indefinido, precário e móbil – e não continha "simples perfume local, mero interesse de paisagem ou pitoresco de costumes", mas, pelo contrário, "real valor de sinceridade, de humanidade, de comoção e de beleza".

Acho, porém, que Tito Carvalho não pôde praticar o verdadeiro regionalismo em que até há pouco dissipou notável soma de talento. Além de ele não ser um produto legítimo da região gue elegeu para moldura de seus contos, não possui essa região as tradições a que acima aludi, sendo de somenos valor os aspectos paisagísticos e costumários gue porventura pretendesse inculcar como grandemente representativos.

Outro terreno, menos estreito, quiçá mais fértil, está a desafiar a refinada estesia de Tido Carvalho.

E termino com Tristão de Ataíde, um dos mais atilados críticos da hora atual:"... Se o sertanismo" [leiamos: regionalismo] "nos tem dado algumas obras que hão de ficar em nossa literatura, é apenas por conterem estas uma expressão natural e vigorosa da alma de seus autores... “Devemos deixá-lo exclusivamente aos filhos do Sertão”.

O grifo é seu. E é frisante.

Florianópolis, 12-9-1931 Altino Flores Renovação n° 1, Setembro de 1931

ESBOÇO DA EVOLUÇÃO DAS LETRAS EM SANTA CATARINA

Discurso pronunciado pelo Acadêmico ALTINO CORSINO DA SILVA FLORES, por ocasião do IX Congresso Brasileiro de Geografia, realizado em Florianópolis, SC, em 11 de setembro de 1940, em nome da ACADEMIA CATARINENSE DE LETRAS.

Exmo. Sr. Interventor Federal; exmo. Sr. Presidente do IX Congresso Brasileiro de Geografia; exmas. senhoras e senhorinhas; meus senhores.

A Academia Catarinense de Letras incumbiu-me de desdobrar aos olhos das ilustres personalidades que nos honram com a sua estada entre nós o painel da nossa evolução literária.

Não quis, porém, o obscuro orador empunhar o pincel e a palheta, porque se sentiu incapaz de encher, com brilho, uma tela vasta e harmoniosa. Tomou, simplesmente, da pena e delineou este esboço.

* * *

O catarinense procede, provavelmente, da sub-raça dos carijós, produto do conúbio dos náufragos de João Dias de Sólis com as índias que, pelas cercanias da ilha de Santa Catarina, demoraram, e foi-se cruzando com os raros portugueses que, daí por diante, começaram a aportar a essas plagas. É a maneira mais simples de explicar as origens do povo catarinense. Porque, afinal, em história, tudo tem de ter um ponto de referência...

Não é, porém, tão fácil apontar o nosso primeiro produto literário. O drama bárbaro da expedição de Pedro Ortiz de Zárate, que aproara à ilha para se abastecer de víveres, e onde, por ter provocado a hostilidade dos carijós, se viu privado de auxílio e teria abandonado se o chefe não estivesse feito erguer uma forca para castigar os desertores, foi cantado em verso – péssimo verso, aliás, pelo arcediago Centenera. Mas é cantar espanhol.

Assim, pode-se dizer que atravessamos alguns séculos antes que alguém, entre nós, reduzisse à escrita suas fantasias ou seus sentimentos, mesmo em forma embrionária.

Aliás, tão escassa foi sempre a população mais ou menos civilizada, que, em 1646, no seu Papel Forte, o padre Antônio Vieira apenas dava dez ou doze moradores portugueses à ilha de Santa Catarina. Sessenta e cinco anos mais tarde, o sargento-mor da praça de Santos, Manoel Gonçalves de Aguiar, em diligência até Laguna, encontrou na ilha vinte moradores,"pouco mais ou menos", embora achasse nela as melhores terras de toda a "América do Brasil".

Não quer dizer que essa pouca e pobre gente não tivesse suas crenças, suas superstições e também suas cantigas populares

como todos os povos sempre possuíram – e as quais se desfizeram da correnteza da tradição irrecuperável, o germe da poesia, embora com diferente qualidade ou intensidade, habita o coração de todas as raças.

Não devemos supor que essas populações, vi vendo em sítios agrestes, possivelmente assaltadas das endemias tropicais, levasse a vida a cantar. A rudeza da existência, num meio duro, enquadrado na exuberância gloriosa da paisagem, que era quase um símbolo irônico em face daquelas mesmas condições vitais, tinha, todavia, a suavizá-la a bondade da raça e a graça da religião.

A população que avultou e dominou descendia dos colonos vindos da Madeira e dos Açores. Era gente que das ilhas chegara quando a miséria de lá a escorraçou. Através da largueza incerta do mar, buscara nesta banda a paz e a fartura. Foi esse, talvez, o engodo com que lhe acenaram. Vinham cheios os barcos; tão cheios, que até o Governador da ilha de Santa Catarina, Manuel Escudeiro Ferreira de Souza, escrevia, em 19 de fevereiro de 1750, ao Rei: que só dos colonos vindos na terceira leva, do contrato de Francisco de Souza Fagundes, faleceram em viagem 19 pessoas adultas e 16 crianças, desembarcando aqui os outros quase todos enfermos, "de malignas e corruções escorbúticas", tendo sido "sacramentados por viático, em um só dia, mais de 100 que se achavam deplorados", dos quais morreram vários deles, "por cujos motivos ficarão muitos órfãos de pai e mãe, e não poucas viúvas sumamente desamparadas".No seu impressionante relato, acrescenta o governador que “a infecção e mortandade que houve neste navio procedeu do excessivo número de gente, qual foi o de 686 pessoas que se lhe embarcaram, além de 50 homens da sua tripulação: não sendo possível que um navio acharruado de popa fechada tenha capacidade para acomodar o tal número, nem ainda uma terça parte menos ”.

Carecentes de meios, os colonos, embora se contassem entre eles "muitas famílias nobres", não tinham com que comprar escravos ou trabalhadores que os ajudassem a romper as terras,“pelo que (eis mais um traço doloroso!) todos os da referida natureza se consideram perdidos neste país; que presentemente só é útil para os que se criaram com foice e machado nas mãos". Não tem vindo mais armas para os casais e ordenanças fora das 116 que trouxeram os primeiros transportes no ano de 48, estando todos os mais sem elas, expostos à fereza e crueldade dos tigres e onças que lhes acometem os ranchos, valendo-se do trabalho do dia, não podem descansar de noite com o temor dos perigos em que vivem com suas amedrontadas famílias...”

Dentre essa gente alguns nobres vieram. Citemos, por exemplo, Henrigue César Berenguer e Bettencourt, natural do Funchal, casado "com obrigação de mulher e sete filhos, entre machos e fêmeas". Era filho segundo de "uma das casas das principais famílias"da ilha da Madeira. Por se achar "com poucos cabedais para poder conservar-se em estado condizente à sua pessoa, nem como poder acomodar seus filhos, resolve a passar para o Estado do Brasil". Nobre, "na sua varonia se conservou sempre o foro de fidalgo tê seu terceiro avô". Ao pedir ao Rei passagem para si e aos seus, ao todo 15 pessoas, disse gue exercia então o posto de "capitão da sala do General do ilha da Madeira", e orgulhosamente declarava que "não saíra das ilhas outro que o excedesse em nobreza".

A obscura tragédia dessa emigração ilhoa, gue o saibamos, ainda não foi estudada. A gente que aqui aportou, nessas condições, não vinha nem a sua fé, velha de séculos, nem a sua poesia do povo português.

Através das mais dolorosas surpresas deparadas pela terra formosa e bárbara, de certo não deixou de cantar. O ritmo dolente desse costume ficou até hoje na boca das lavadeiras do sítio e ressoa na garganta dos ilhéus, quando não estão na roça ou vão à pesca da tainha. O viandante solitário que, à noite, pela estrada enluarada, vence léguas a pé, para se encantar a si mesmo, ergue e improvisa redondilhas em que diz as suas mágoas e as suas lânguidas saudades.

O verso não ficou apenas como expressão emotiva entre a gente da ilha. Virou instrumento de crítica e desforço, fazendo- se pasquim. O pasquim (já agora em pura decadência) foi o ferro em brasa que cauterizou feridas e, mais que muitas vezes, marcou de maneira ultrajante a pessoa visada pelo autor anônimo. Era a serpe que picava, emboscada na macega ou, mais que isso, a bofetada ultrajante contra a qual não havia revide possível. Doutras feitas, porém, era a vingança alegre, de alguém que se desforçava satiricamente contra o seu meio ou o seu inimigo, encadeando rimas chocalhantes, como guizos de um carnaval tanto mais grotesco quanto mais inesperado.

Sem forma escandida, desvairada nos seus conceitos, elementar na tabulação, como todos os primitivismos da incultura, essa poesia vale como expressão natural do sentimento popular. Não é hoje tão comum como outrora. A facilidade de comunicação entre o interior e os meios populares apagou, em certo grau, a espontaneidade lírica do ilhéu que se tornou, ao mesmo tempo, tímido e alerta, não entrando em contato com o citadino, sem ver nele alguém mais sabido que o quer enganar – e paga-lhe na mesma moeda.

Todavia, no dia em que se procurar estudar a cantiga do ilhéu e do praieiro catarinense, acertadamente dirá quem o fizer, comparando-a com os cantos do arquipélago dos Açores.

Até nas cerimônias fúnebres entravam, às vezes, o verso e a música. Os funerais das crianças, no primeiro quartel do último século, tinham harmonias e cores festivas. Di-lo Dupetit-Thouars, que por aqui passou em 1825:

“Arrastado pela curiosidade, (...) cheguei a uma pequena cabana que me haviam indicado: a frente da casa tinha sido preparada para numerosa recepção e estava enfeitada de folhagens, misturadas com flores. À minha chegada já havia grande concorrência de habitantes: entretanto, vi, ao fundo da sala, um estrado, sobre o qual havia disposto um altar, e sobre o altar uma criancinha, cercada de círios e vasos com flores; tinha o rosto descoberto e estava ricamente vestida, tendo à cabeça uma coroa de sempre-vivas e um ramo na mão; todo o chão da sala era forrado de esteiras. Grande número de mulheres, em trajes de festa, estavam sentadas ou de joelhos nessas esteiras, dispostas em uma ou duas filas em roda do quarto; os homens conservavam-se ao lado de fora, à falta de lugar no interior. Reunida toda a sociedade, começaram a cantar; as vozes eram acompanhadas por guitarras, um violino e uma espécie de tambor ou tantã. Terminada a tal cerimônia, não foi sem grande surpresa que vi toda a sociedade começar a cantar, rir e beber. Soube, então, que, segundo as crenças e usanças estabelecidas, tendo a morte da criança ocorrido antes da razão, era esta olhada como anjo, e que era costume festejar esse acontecimento por festanças, para as quais eram convidados toda a família e amigos".”

Não sabemos aonde ir buscar as raízes desse costume, e hoje inteiramente extinto. Seria influência africana ? Indígena ? Quem sabe!

Entre os romanos, "assim como se coroavam os deuses, assim se coroavam os mortos e se poisavam coroas nas cabeças destes, ou junto dos cadáveres“. Todavia, para os hebreus,"durante o tempo em que o corpo estava dentro de casa, era proibido comer, beber ou pôr filactérios. O alimento era preparado e, sendo possível, também tonado fora de casa". Em qualquer dessas hipóteses, não achamos amparo que farte.

Explica-se, porém, como o citado fato, guanto o verso andava aliado à existência do povo! Daí não há estranhar que entre as classes mais polidas, vivendo na cidade, surgisse o culto da poesia escrita, e os pobres jornais da Província fossem vinculando as rimas de um ou outro autor, desejoso das auras populares.

Quando o primeiro jornal da Ilha apareceu, isto é, no ano seguinte em que correu na América o primeiro trem de ferro, a França estava lendo ou preparava-se para ler Le Rouge et le Noir, de Stendhal, Eugénie Grandet, de Balzac, e Notre Dame de Paris, as Feuillles d'Automne, de Victor Hugo. Num só ano, Victor Hugo publicava Notre Dame de Paris, Marion Delorme e Feuilles d'Automne, três obras das quais uma só bastaria para lhe ilustrar o nome. Byron é morto. Walter Scott, moribundo. Goethe apenas tem alguns meses de vida. Chateaubriand, no prefácio dos Études Historiques, diz adeus aos leitores. Lamartine vem de publicar uma brochura política e já está com o pé no primeiro degrau da tribuna. Victor Hugo, ainda ontem criança, recolhe a herança desses grandes poetas: é ele agora o primeiro não só em França, mas na Europa.

Teriam os catarinenses, então, notícias desses fatos? É impossível verificá-lo; mas é crível que não. Lavravam aqui as mais duras pugnas políticas. O Desterro, após a abdicação de D. Pedro I, fora teatro da "abrilada", que chegara a exaltar as próprias mulheres, as quais, por patriotismo um tanto botânico, adornavam o peito e as tranças com folhas de cafeeiro. Movimento foi esse desusado e estranho entre os catarinenses, que nunca tiveram vocação perfeita para revolucionários na expressão truculenta da palavra. E fácil imaginar que a sedição militar de 22 de abril de 1831, acompanhada de distúrbios e quebramento de vidraças das casas de certos políticos, ficasse sendo tema de conversas e discussões bastantes para captar a atenção do povo, em geral, durante largo tempo. Fora disso, nada mais existiria, O resto do mundo morria silencioso para além do círculo abrangido pelo estridor dessa intriga doméstica.

Em semelhante atmosfera, de certo as musas não encontrariam elementos de vida; pelo menos as inspirações puras e doces, que são os da verdadeira poesia. Bem provável é que o pasquim candente e anônimo aí viçasse como labareda em palheiro. E até 1850, isto é, por cerca de 20 anos, abre-se um hiato na evolução da nossa crônica literária e artística. Dessas duas décadas não temos – que o saibamos – nenhuma produção literária em volume. Ademais, os periódicos que aqui surgiram, então, não deixaram vestígios. Em nossa Biblioteca Pública, o mais antigo que se encontra é o Novo Íris, cujas páginas pouca literatura nos deparam.

Assim, através dos jornais, mais do que de volumes bem pensados e escritos - que não foram muitos nestes noventa anos até hoje bem es dos(sic) - é que se pode pesquisar a evolução do nosso gosto literário e, assim mesmo, com as naturais falhas das coleções incompletas das gazetas.

Essas velhas gazetas, porém, estão cheias de fatos que bem delineiam a fisionomia da vida provinciana. Não havia censura de espécie alguma. Por isso mesmo, ninguém estava a coberto de ser desmascarado às direitas ou injuriado escandalosamente. Alusões assustadoras eram feitas até ao sexo frágil. O Correio Catharinense de 28 de junho de 1854, por exemplo, trazia isto: "O alheio a seu dono. – Uma moça que mora na freguesia do Rio Vermelho queira restituir o anel que levou contra a vontade de seu dono, se não quer que seu nome apareça nas folhas públicas".

É de supor que a donzela do Rio Vermelho não esperou que as "folhas públicas" lhe desvendassem o nome...

O clero era rudemente tratado. Até os sacerdotes, entre si, trocavam duros qualificativos, mesmo em tempos não muito recuados.

O choque dessas pequenas paixões indica, sem dúvida, o aparecimento de personalidades de influência sobre a mediocridade geral. Um moralista dos nossos tempos já disse, com certo ar paradoxal, que "só há personalismo onde há personalidades marcantes". Na verdade, onde a mediana se basta a si mesma, os impulsos dos caracteres nunca se impõem, Desse clero, tudo se poderia esperar. O padre Joaquim Gomes de Oliveira e Paiva, por exemplo, em meados do século XIX, lia o petulante Rousseau, do qual possuía as obras completas, em 25 volumes. Que leriam os outros colegas seus, menos ilustrados e mais apegados às mesquinharias da vida?

O padre Paiva era o nosso mais aplaudido orador sacro. Várias paróquias o disputavam, para sermonar numa ou noutra festa solene. Ele fazia-se pagar bem, até que se descobriu que, de longe em longe, costumava repetir sermões feitos noutros lugares, como se fossem trabalhos originais, o que lhe acarretou envinagradas críticas. Poetou, conforme a batina lhe permitia, isto é, rimando coisas sacras, e politicou ferozmente, como qualquer político sem batina, não fugindo, sequer, à polêmica pela imprensa.

Ele e o "Poeta do Brejo" – Marcelino Antonio Dutra – nunca se puderam tragar. Reciprocaram-se os mais ferinos doestros, quer em prosa, quer em verso. O padre Paiva, redator do Novo Íris, ao ouvir falar na candidatura de Marcelino Dutra para deputado, escreveu impiedosamente que ele não tinha "mérito", que não possuía "carta de formatura"; que tinha talento, mas "o talento, única e simplesmente considerado, não é bastante"; que não tinha "probidade", porque se se penetrasse "o limiar da habitação deste, não seria difícil deparar com alguma desorganização de harmonia doméstica"; que Marcelino falava em público, era verdade, mas "não devia ter-se em conta de orador". E sarcasticamente acrescentava: "Muitos bons discursos faria ele na câmara quadrienal, e seria belo de ver-se se em sua discussão de finanças regulasse seus cálculos pela aritmética do José Marreco!..."

Marcelino Dutra também não lhe perdoava essas assarcadilhas. Quatorze anos mais tarde, para mexer com o arcipreste Paiva, escrevia pelo Despertador que,"entre as despesas extraordinárias que há de infalivelmente pesar sobre as escassas rendas da Província, por motivo da prorrogação dos trabalhos legislativos", certamente constaria "a de três ou quatro dúzias de garrafas de limonada gasosa", bebida habitual do I secretário da Assembleia Provincial. O secretário da Assembleia, que não era outro senão o arcipreste Paiva, mandou dizer ao jornal, pelo porteiro da Casa, que essa bebida "corria por sua conta, e não sai dos dinheiros do expediente". E o jornal, a glosar no número seguinte: "Agradecemos a declaração e a transmitimos aos nossos leitores desta folha, para que fiquem certos de que S. Revma. bebe gasosas por sua conta e risco"...

Também em verso os dois se insultaram com ganas. O padre Paiva escreveu contra o "Poeta do Brejo" este soneto tremebundo:

Não conheces pedante mestre-escola.Insolente, perverso, relaxado.Sem brio, e desprezo em tal estado.Que a cara já forrada tem de sola ?...Que em vez de andar de quatro e preso à argola. Ou pescando em ceroula, ou trás do gado, Poeta improvisou-se, e tão danado.Quando a sórdida língua desenrola?Que lá no Ribeirão gulosa abelha Da taberna dos copinhos namorava.Puxando mandrião da sota a orelha?Não conheces ? Pois é de casta brava!Filho do BICHO, genro do SAVELHA!Que de tal pai tal filho se esperava!....

Poucos mais de sete anos passados, Marcelino Dutra, que tivera todas as suas fraquezas vituperadas neste cáustico soneto, pagou-se na mesma moeda contra o seu abatinado rival, dizendo:

Que fraco, no saber, forte na intriga,Vulcão de asneiras, peçonhenta lava Vomita, impuro, o asno de uma figa!Não adivinhas? — É de raça brava,É o Cantiguinhas, filho do Cantigas,Que de tal pai tal filho se esperava.

Todavia, esses dois homens, que a paixão política para sempre separou, foram as mais curiosas figuras literárias daquele tempo. O arcipreste Paiva, cavaleiro das imperiais ordens de Cristo e da Rosa, deixando dois volumes de Ensaios Oratórios, além de diversas memórias de caráter histórico e os manuscritos de um Dicionário Topográfico, Histórico, etc., de Santa Catarina, hoje totalmente perdidos, faleceu à meia noite de 29 de janeiro de 1869, vitimado por "paralisia e infiltração serosa".

Seis meses e meio após, chegava a vez de Marcelino Antonio Dutra, então professor público jubilado, de primeiras letras, que falecia no Ribeirão, atormentado por um câncer no estômago. Não deixou nenhum livro impresso. Os jornais registraram, porém, diversas poesias suas e muitos artigos de crítica social e política, sob seu próprio nome, ou pseudônimo. José Arthur Boiteux reeditou-Ihe a Assembléia das Aves,poemeto alegórico-satírico, à clef , e cuja transposição figurativa nos dá o ambiente político da época.

Deputado à Assembleia Provincial, nunca deixou de vir em canoa do Ribeirão à cidade; e, antes de ir para a sessão, vendia as suas abóboras e melancias na praia do Mercado. Seus adversários jamais lhe deram tréguas. Esse homem devia ter real merecimento, pois, doutra forma, não se explica a massa enorme de ataques que contra ele a imprensa do tempo veiculou. A uma árvore estéril ninguém atira pedras. Fritz Müller, o sábio, foi várias vezes ao Ribeirão visitá-lo.

Seu filho, Ovídio Antonio Dutra, que chegou a Oficial Maior da Secretaria do Governo da Província, e foi também deputado provincial, poetou discretamente, e, às vezes, com facilidade, através das gazetas da época.

Deve-se registrar o fato comum a todos os centros onde o gosto das letras se vai acentuando: a fundação de agremiações literárias. Também na antiga Desterro se verificou isto. As discórdias e rivalidades quase sempre acompanham tais iniciativas. Foi o que se deu ontem, se dá hoje, e amanhã ainãa se dará.

A Sociedade Amor às Letras, por volta de 1870, congregou alguns dos moços que literateavam na ilha. Manuel Bernardino Augusto Varela, num soneto habilidosamente talhado por figurino arcádio, reuniu os nomes de alguns deles:

Ilustrado, simpático Paulino,Carmona, lá dos lusos ornamento,Machado, bom no brio e no talento,Entusiaste Leite - a vós meu hino.Brasilisso [sic], infantil d'Euterpe dinoBm (sic) Watson, às letras dando aumento, Paulicéia, qu'entre Sábios tens assento.Ativo Salomé, Costa benino.Estimável Fagundes, bem Cardoso,Oh ! plêiade de jovens amadoresQu'uas letras cultuais de nosso honroso,Permiti vos dirija meus louvores:Eu vos saúdo, ó grupo esperançoso Pois sois das pátrias letras os cultores!

Devia ter muitos inimigos a Sociedade Amor às Letras, que reunia esse "grupo esperançoso", pois contra eles, iradamente, compôs este soneto Francisco Paulino da Costa e Albuquerque, alferes de cavalaria da Guarda Nacional:

Raça canina que virtude enjeira,Zoilos ignóbeis, avernais censores.Espúria geração de detratores,A mentira, a calúnia só afeta;Asseclas de retrógrada e vil seita,A vós, num brado só, vi ladradores,Que ao Sol do meio-dia, aos meus ardores, Chamais verdade o que nem foi suspeita;A vós, num brado só; — Filhos do Averno,Avante! Avante! Nessa estrada inglória De vícios perenais, de crime eterno!Pressurosos correi atrás da glória,Que os vossos nomes no trevoso InfernoNos fastos gravará d'alta memória I...

Os versos que ali ficam denunciam a altura a que tinham atingido as letras na Província, a qual, segundo dados oficiais, contava então 154.000 habitantes.

Constituía sempre um acontecimento literário a chegada, cada ano, do Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro. Era anunciado pela imprensa em letras gordas: "Chegaram os Almanaques de Lembranças Luso-Brasileiro para 1874 - à loja do Constantino Ferraz". (Constantino Ferraz Pinto de Sá tinha loja de ferragens à rua do Príncipe, nº 30. Às vezes comprava escravos enviará Corte).

Essa geração já ia dando lugar à seguinte, em que se distinguiram João da Cruz e Sousa e Virgílio Várzea, e de que faziam ou viriam a fazer parte Manuel dos Santos Lostada, Horácio de Carvalho, Oscar Rosas, Araújo Figueiredo e outros. Todos eles eram apreciadores da literatura realista e grandes admiradores do teatro.

Aliás, o gosto do teatro foi sempre evidente em Santa Catarina. Em 1880, declarava o Jornal do Commercio do Desterro: "O nosso público está tão habituado ao teatro que não pode passar sem uma companhia dramática em seu seio". Parece que o drama era até mais apreciado que a poesia. Um anúncio daquele ano rezava no mesmo jornal: "LIVROS - Nesta tipografia se dirá quem tem para vender 43 romances, 10 dramas e 6 volumes de versos de bons autores. Preço módico. Os volumes estão em bom estado".

Dois grandes artistas, entusiasmados com a simpatia dos catarinenses pelo teatro, não se dedignaram a representar, no palco de Desterro, com os amadores locais. Referimo-nos a João Caetano e Furtado Coelho.

O primeiro deles passou pela capital catarinense há 86 anos, em 8 de setembro àe 1854. Descendo à terra, às 2 horas da tarde, foi recebido por uma banda de música e jantou no Hotel do Vapor, regressando para bordo mais tarde, entre aclamações. De volta do Rio Grande, chegou ele novamente, às 11 horas da manhã de 5 de novembro do mesmo ano, tendo sido cumprimentado pela diretoria da Sociedade Dramática Catharinense. Pouco depois seguiu para o "Teatrinho" de São Pedro de Alcântara, onde fez o ensaio geral do Drama A Gargalhada, que Jacques Arago escrevera para Frederico Lemaître encarnar no papel de André. As "partes" tinham sido distribuídas dois meses antes a diversos amadores desterrenses. Ao terminar o ensaio, ainda com o sol fora, logo o teatrinho se encheu de espectadores, ansiosos por assistir à representação. João Caetano, que tinha ido jantar ao hotel, retornou ao teatro, ao som da banda da Sociedade Philarmonica, entre vivas e ao estrugir de rojões. Foi brilhante o espetáculo, que terminou às 11 horas, havendo sido recitadas pelos respectivos autores três sonetos em louvor do artista, que no dia seguinte continuava a viagem para o norte, a bordo do vapor "Imperador".

Decorridos sete anos, o mesmo vapor trouxe da Corte, em viagem para o Rio Grande, os artistas lusitanos Luiz Cândido Furtado Coelho e Dna Eugênia Infante da Câmara com uma filha menor. Admiradores do ator, pediram-lhe que se detivesse no Desterro, ensaiando com alguns jovens da capital os dramas Dalila e Gaiato de Lisboa. Furtado e Eugenia aquiesceram, e as peças foram com êxito representadas nas noites de 23 e 24 de novembro de 1861. Da plateia recitaram-se várias poesias laudatórias, de que foram autores Antonio Luiz do Livramento, Manuel José de Oliveira e Marciano F. de Souza.

Por volta de 1883, os camarotes do Teatro de Santa Isabel, hoje Álvaro de Carvalho, tinham cinco cadeiras cada uma, mas era facultado às famílias que carregavam as cadeiras para o teatro, e as reconduziam para casa ao terminar o espetáculo.

Nessa época, chega ao Desterro a Companhia Moreira de Vasconcelos. Cruz e Sousa, que tinha então 21 anos, e Virgílio Várzea, seu companheiro de boemia artística, entusiasmaram-se com os espetáculos. Horácio Nunes escreve especialmente o drama O Anjo do Lar, em dois atos, pouco depois representado na capital em benefício da atrizinha, que desempenhou o papel de Júlia.

Moreira de Vasconcelos, cercado de gentilezas, escreve no álbum de Dna. Aurélia Várzea a poesia "Reconhecimento". Ao seguir para o sul, quis Cruz e Sousa acompanhá-lo como ponto- secretário. O ator levou-o consigo até o Rio Grande e, depois, para o norte, até o Amazonas.

A chegada, em maio de 83, da Companhia de Joaquim Augusto, move o estro de Virgílio Várzea e Santos Lostada, tocados pelo drama Deus e a Natureza.

Mas o nosso sentimento não era apenas admirativo. Era também criador e construtivo. Álvaro Augusto de Carvalho fazia representar, em 22 de julho de 1853, o seu drama Pedro Martelli ou o Conde de Castelmar, em um prólogo e quatro atos, no "Teatrinho Particular de São Pedro de Alcântara". Ensaiou ele, para o mesmo teatro, o drama D. Cesar de Bazan. Outro drama original seu, Uma moça de Juízo, em três atos, foi encenado nesta capital, em 6 de fevereiro de 1864, pela Companhia Ana Maria Chaves. Em julho de 1868, começou a impressão do seu extenso drama Raimundo, que saiu do prelo em setembro, tendo subido à cena em 23 de dezembro daquele ano. Os atos correram bem — diz um Jornal da época — terminando o espetáculo às 5 horas da manhã do dia seguinte. A concorrência foi extraordinária. Oralmente, veio até nós a notícia de que os espectadores, ao acabar a representação, foram primeiro ao Mercado fazer suas compras e só depois é que se recolheram às suas casas...

José da Silva Ramos escreveu a comédia O Pio do Mocho, e Lacerda Coutinho, Quem desdenha quer Comprar. Pedro de Freitas Cardoso fez representar os papéis femininos. Tornaram-se extintos nisso José Cândido Capela e o alferes Secundino Felafiano de Melo e Silva, a quem D. Pedro II concedera, em novembro de 1856, licença para substituir o apelido "Silva" por "Tamborim", que pertencia à sua família paterna.

Isso não os vexava. Tudo faziam aquelas criaturas pela arte. Da mesma sorte o sábio Tomaz Inghirami, a quem Erasmo cognominara de "Cícero do nosso século", e o imperador Maximiliano concedera o título de conde palatino e a coroa de poeta laureado, fizera às vezes de Fedra na tragédia Hipólito, de Sêneca; e Jodelle Seigneur du Lymodin, interpretara o papel de Cleópatra,na sua própria tragédia, e tão bem, que os amigos, cheios de admiração, em Areueil, lhe entornaram ardente paen, ao mesmo tempo que, simbolicamente, lhe ofereciam um bode coroado de rosas...

Coisa que nem todos sabem é que também no Desterro se compôs uma ópera, O Ermitão de Muquém,com letra de Cândido Melquíades de Sousa e música de José Brasilício de Sousa. Nunca foi representada, e acha-se hoje perdida. A pequena Companhia Lírica do tenor Scano (soprano Carlini) cantou nessa capital o "Gran Duo" da ópera em 18 de março de 1883, entre ruidosos aplausos.

A predileção pelo teatro revela bem as nossas origens. "Assistir a representações de comédias constitui predileto divertimento dos povos dos Açores...", diz Leite de Vasconcelos. Até em São José havia a Sociedade União Teatral, que naquela então vila lançara pedra fundamental do seu teatrinho em 17 de setembro de 1854.

Já vimos que o "grupo" de Cruz e Sousa tinha invadido os arraiais literários. O presidente Dr. Francisco Luiz da Gama Rosa, que por cerca de 13 meses governou a Província, a partir de agosto de 1883, rodeou-se desses rapazes inteligentes e começou a recomendar-lhes leituras de maior substância, num pouco do evolucionismo inglês, e outro tanto do monismo alemão. Exaltaram- se os cérebros moços. Gama Rosa deliciou-se com a facilidade do entusiasmo da "ideia nova". Assim se batizava o grupo. O presidente tratou de aproveitar a inteligência de alguns deles. Várzea foi nomeado oficial de gabinete da presidência provincial a 17 de dezembro de 83; quatro dias depois, Santos Lostada, de simples caixeiro de venda, ia para o cargo de contador e partidor do Juízo Municipal e de Órfãos da Capital. Alguém, alegrado pelo fato, dirige-lhe, pela Regeneração,de 23 este triolé:

Os meus parabéns, poeta.Pela nova posição.A tua musa dileta Os meus parabéns, poeta.Deixaste a estreita saleta Cercada por um balcão Os meus parabéns, poeta.Pela nova posição.

Quanto a Cruz e Sousa, foi mais tarde nomeado promotor público de Laguna; porém julgou-se moralmente impossibilitado de assumir o cargo diante da resistência dos corrilhos políticos daquela comarca, que alegavam não tolerar em semelhante posto um "filho de escravo". Era a maneira mais branda de chamá-lo “negro".

Continuavam, porém os "novos" a batalhar, assaltando as trincheiras dos "velhos". Estes encontram seu paladino em Eduardo Nunes Pires, figura realmente respeitável que, em 1862, guando aluno do Liceu, obtinha aprovações com louvores nos exames anuais, principalmente de latim. A mocidade embirrava com sua citações ciceronianas e, sobretudo com seus sonetos na língua do Lácio. Os "discípulos incorruptíveis" da escola naturalista, "educados suficientemente, rijamente, nas proféticas teorias de Darwin, Herbert Spencer, Hartmann, Haecker e outros", como dizia Horácio de Carvalho, não suportavam o râncido desse classicismo retardatário.

Várzea, mais arrojado, no dia 3 de janeiro de 84, escreve contra ele, pela Regeneração, quatro palavras (triolés), simplesmente assinaladas por "X". Eduardo Pires queimou-se. Durante todo o dia, procurou a Virgílio, para tirar um desforço pessoal. Finalmente, às 5 horas da tarde, no antigo ai do Mato Grosso, onde hoje está a praça Getúlio Vargas, encontrou-o. Num repelão, cresceu para ele e, sacando do bolso o jornal dos "triolés" mordentes, tentou socá-lo, como bucha, pela goela do juvenil seguaz da "ideia nova".

Foi esse o desfecho da rude troca de picuinhas entre os "velhos" e os "novos". Os jornais continuaram, por dias, a discutir o caso. Pela Regeneração, vimos a saber que Virgílio tinha, então, 19 anos e era "franzino", ao passo que Eduardo Pires tinha 40 "ou mais" e era tipo vigoroso. A notícia do atrito foi dada, assim, por aguela folha:

“AGRESSÃO — Comunica-nos: Ontem, às 5 horas da tarde, o nosso distinto amigo Virgílio Várzea, oficial de gabinete da presidência, foi agredido em Mato-Grosso por um indivíduo que, atribuindo a autoria de uns versos ao mesmo Sr. Virgílio, procurou desacatá-lo no que foi repelido com energia pelo talentoso moço. A agressão não podia ser mais digna de reprovação. Quando se trata de luta intelectual, o apelo animal à força física, o que, aliás, não é permitido entre as pessoas decentes, constitui uma desgraçada confissão de incapacidade".”

Depois, a correnteza do tempo levou os derradeiros ecos do conflito. Eduardo Nunes Pires, que era 1º escriturário da 3ª sessão do Tesouro Provincial, só de longe em longe aparecia nas colunas da imprensa. As letras da Ilha, com suas perfidiazinhas e rivalidades bobas, enfadaram-no. Morreu em 20 de outubro de 1902, como inspetor aposentado da Fazenda Estadual.

Santos Lostada, Horácio de Carvalho, Virgílio Várzea e Araújo Figueiredo ficaram na Província. Cruz foi ao Rio. Ali se lhes desdobraram as qualidades artísticas. Voltou ao Desterro em 85 e publicou nesta capital, em colaboração com Várzea, o opúsculo Tropos e Fantasias. Nova viagem à capital do país e novo retorno à terra natal. Finalmente, o Rio o prende para sempre, em 1890. Ali publicou, em 1893, o Missal. Era uma prosa colorida e musical, cheia de impressões da natureza provinciana, com sensíveis tons naturalistas. A crítica recebeu a obra com hostilidade. Era absolutamente uma novidade, trabalhada com paixão mística e, ao mesmo tempo, panteísta. Quem o compreenderia, se não os seus amigos?

Os versos dos Broquéis, quase publicados ao mesmo tempo que o Missal, manifestam uma aguda transcendentalidade de impressões. Empolga pela sugestão. É o marco inicial do simbolismo no Brasil. Daí, a grande importância histórica deste livro, cujas páginas ficarão resistindo ao tempo, na si beleza particular. Tendo casado com uma mulher de sua raça, de nome Gavita, que se criara e educara em casa do Dr.. Monteiro de Azevedo, no Rio, "logo viram vindo os filhos, que chegaram a ser quatro, contando- se um filho póstumo".

Três anos após, enlouquece-lhe a esposa. Em dezembro de 97, a tuberculose o ataca e, a 16 de março do ano seguinte, o arrebata na estação do Sítio, onde tinha ido por suspiradas melhoras. Ceifados pelo mesmo mal a esposa e os filhos, um a um foram todos levados para a cova.

Postumamente, apareceram as Evocações, em prosa dolorida, sombria e rebelde, e os versos dos Faróis, traspassados de melancólico lirismo impressionista, e Últimos Sonetos, de um espiritualismo quintessenciado e indulgente.

Na opinião de João Pinto da Silva, "em toda a literatura Portuguesa, da Europa e da América, não há notícia de organização comparável" à de Cruz e Sousa,"duma tão grande impressionabilidade, e dominada, assim, por tão grande culto de arte".

"Cruz e Sousa é um dos maiores poetas do nosso tempo e, certamente, o maior da sua raça, da qual foi uma como sombra prodigiosa, resumi nos seus livros, por um milagre da arte, o total de todos os peque nos valores que ela, em centenas de anos, vagarosamente acumulara”.

Virgílio Várzea continuou, piedosamente, a venerar a memória do amigo morto. Mas cultivou outros canteiros da Arte, de todo diferentes. Fez-se contista e novelista. Nascido numa terra que o mar harmonioso angasta, sob uma luz de incomparável doçura, amou a natureza e soube compreendê-la. Algumas das suas páginas são aquarelas deliciosas dos nossos sítios e das nossas praias. Aí estão, nesse feitio, os seus livros: Rose-Castle, Contos de Amor, Mares e Campos, e Histórias Rústicas.

A propósito de George Marcial, opinou José Veríssimo: "Escritor de consciência e trabalho, o Sr. Virgílio Várzea toma verdadeiramente pé na nossa literatura e, com um digno lugar, com este romance, até agora a obra mais considerável e estimável dele.

Com relação ao Brigue Flibusteiro, disse:

“O Sr. Virgílio Várzea, fluminense de Santa Catarina, mantém, com bizarria, neste seu novo livro ... os seus créditos devidos a um esforço honesto e um trabalho sincero de um dos nossos estimáveis autores de ficção. Se ele fosse pintor, sê-lo-ia de marinhas. Saio a sua especialidade a vida marítima, os quadros navais e tudo o que com esses aspectos se relacione. E nesse gênero, se não painéis de grande dimensões e perfeita fatura, possue ele já quadrinhos, manchas, aquarelas, esboços bons e bem acabados. E todos impregnados de doce lirismo que há na sua inspiração, e que os faz viver mais do que seria de esperar de tais quadros, ainda animados da inspiração que os com que foram pintadas".”

Fraca é a sua nova novela mitológica Os Argonautas, que dedicou a Luiz Delfino; porém cheio de informações curiosas, apresenta-se-nos o volume sobre A Ilha (de Santa Catarina), já raro e, a certos respeitos, com inegável valor histórico, O último volume publicado por Várzea foi Nas Ondas, rapidamente esgotado. Dorme hoje o autor sobre os louros colhidos.

Luiz Delfino dos Santos, a quem Várzea, na dedicatória de Os Argonautas, qualificara de "o maior individualidade literária que tem produzido a minha terra natal, o estado de Santa Catarina", nunca publicou um volume enquanto viveu. Mas poetou abundantemente. Tornou-se lendária a sua fecundidade. Nascido no Desterro, em 25 de agosto de 1834, faleceu no Rio, onde já havia longos anos que vivia, em 30 de janeiro de 1910. Sílvio Romero, que rudemente o deprimiu, voltou mais tarde a emendar a mão, refundindo seus juízos e, embora mantivesse restrições, contudo confessou que "o poeta possui vigor de imaginação, facilidade, abundância, elevação de tom, brilho de tintas". Luiz Murat admirava-o, e Coelho Neto, arrebatado, sagrou-o o maior poeta lírico do Brasil.

* * *

O dealbar deste século encontra o nosso Estado na indecisão que prepara o advento de uma mais larga compreensão literária.

Já não seriam possíveis aqui nem as exaltações místicas do simbolismo cruz-e-sousista ou os voos meio líricos, meio parnasianos, de Luiz Delfino, nem ainda menos a poesia sentimental e merencória de Carlos de Faria, de Alfredo da Costa e Albuquerque, Juvêncio Martins da Costa e Francisco Castorino de Faria, poesia que se aguarentou por sobrecarregar-se de abusivo gosto arcádio, em Franc da Pauliceia, Marques de Carvalho e Venceslau Bueno de Gouveia, ambos estes filhos de São Paulo.

Não falamos em Horácio Nunes Pires porque, apesar de se conservar romântico, buscou adaptar-se, por mais de uma feição, às exigências do tempo. Não era catarinense; mas, tendo vindo para Santa Catarina em tenra idade, aqui foi que se formou o seu espírito, gozando de grande prestígio nos meios intelectuais, embora vivesse arredio de todo buliço social, no derradeiro quartel da existência, Além dos Bastidores, em que reuniu alguns qramas e comédias, traduziu diversos romances e peças teatrais francesas, desparzindo através da nossa imprensa dezenas de poemas e composições humorísticas, reveladoras de sua surpreendente facilidade de composição. Há dele, segundo se diz, muita produção inédita.

A geração a gue pertencemos foi, como as antecessoras, rebelde e infensa aos ídolos locais. A mocidade supõe sempre que a originalidade é propriedade sua e esquece que nada há de novo debaixo do sol.

Definir as figuras dessa geração, avaliando-lhes o mérito, não é coisa fácil. A história, para ser feita com relativa exatidão, necessita de gue o tempo deposite os resíduos que ficaram da elaboração dos fatos. É um quadro cuja perspectiva só se revela quanao olhado à distância.

Seja lá como for, é lícito aventurar uma apreciação de corrida.

Amamos a Araújo Figueiredo, por exemplo, porque ele conseguiu harmonizar a delicadeza do seu espírito com a graça simples e cativante de sua inspiração. Ninguém cantou, como ele, a limpidez de nossas paisagens praianas, nem como ele sentiu o coração tão perto de nossa gente. Foi essa a transformação final de sua poesia, que a princípio se revestia de doloridos tons pessimistas, embora mais filosoficamente, como lá se acha nas páginas do Ascetério. Por desgraça, seus últimos versos não ficaram em volume e, prometidos um dia à publicidade, não sabemos hoje aonde a sorte os levou, Esse poeta, que foi um homem amado dos pobres, pelo bem que lhes fez, transfigura-se hoje, saudosa mente, em nossa memória — e tão cedo não morrerá nela.

José Boiteux, que o saibamos, nunca poetou. Mas, pela maneira como quis a sua terra, foi seu maior poeta. Foi o lírico de nossa história regional. Todo o nosso passado, via-o ele com o mais carinhoso olhar. Tudo lhe era motivo de enaltecer os fastos catarinenses. Se os deuses lhe houvessem dado faculdades poéticas, teria escrito a epopeia do nosso passado em rimas vibrantes, como clarinadas da glória. A falta deste tom, sentiu, porém, emotivamente, o que a crônica do berço natal tinha de mais admirável. Não nos deixou estrofes épicas, mas soube comunicar-nos a simpatia — que nele ia ao mais alto grau — pelas coisas e homens de Santa Catarina. Irradiando entusiasmo, fez erguerem-se em nossas praças vários monumentos, que perpetuam vultos dignos da nossa veneração pelo que fizeram na arte, nas letras, na imprensa e nos campos de batalha. Para melhor viver com as figuras mortas, separou-lhes almas fantasistas e introduziu- as nas páginas de Águas Passadas e do Arcaz de um Barriga Verde. Foi exato ao historiar a faina dos Partidos Políticos de Santa Catarina. Seu Dicionário Geográfico de Santa Catarina é uma tentativa respeitável, cujo merecimento não pode ser inteiramente negado. Larga seria a resenha dos seus folhetos sobre inúmeros aspectos na vida catarinense.

Henrique Boiteux é outro paladino da nossa história e de quanto se relacione com a nossa terra. Coberto de cãs, não cessa de trabalhar, pesauisando o passado, para nos revelar os merecimentos imortais de nossos maiores. Seus estudos sobre os catarinenses na marinha são completos. Vários ensaios biográficos, gue até agora escreveu, em opúsculos e pelas gazetas volantes, dizem do critério com que investiga e registra.

Lucas Boiteux é o nosso verdadeiro historia dor, isto é, aquele, que mais altamente possui o espírito de síntese. É a sua qualidade magistral. Suas Notas para a História Catarinense ainda são um abundante celeiro de dados cronológicos a que, tal vez, só não perdoaremos a digressão haeckeliana do capítulo III da 1ª parte. O caráter didático da Pequena História de Santa Catarina absolutamente lhe não amesquinha o merecimento de obra meticulosa, clara e expressiva. Valiosíssimos os seus estudos sobre a história da Marinha nacional, contêm subsídios até agora desconhecidos. Outra faceta do seu espírito culto e curioso mostra-nos ele com a originalíssima contribuição à Poranduba Catarinense, de que já em revista nos deu alguns capítulos, senão de desejar que complete e publique todo o magnífico trabalho.

Também cumpre incluir, entre nossos historiadores, a Henrique Fontes, inteligência vasta e esclarecida, culto como os que mais o sejam em nossa terra, com uma grande aptidão analítica, sabendo onde deve cavar para achar o filão da verdadeira cultura, e apresentando-se à nossa estima como legítimo humanista e a maior autoridade em assunto de linguagem entre nós. A sua esplêndida monografia sobre o Conselheiro Mascarenhas,obra prima de método e pesquisa, encerra pormenores preciosos e únicos acerca daquela vítima do implacável Marquês de Pombal.

Já Oswaldo Cabral é, igualmente, um nome consagrado. Seus dois volumes Santa Catarina e Laguna e Outros Ensaios já não devem faltar nas estantes que se prezam. Amando os velhos documentos que nos arquivos se amontoam sob a poeira dos anos mortos, dentre eles há ressuscitado figuras esquecidas e eventos imemorados, emprestando-lhes novas luzes e imprimindo-lhes novas interpretações, de acordo com o seu temperamento cálido e entusiasta.

O Dr. Blumenau e o sábio professor Fritz Müller encontram em Ferreira da Silva um biógrafo inteligente e hábil.

Carlos da Costa Pereira é desses estudiosos que surpreendem pela beneditina dedicação com que se entrega às investigações mais árduas. Sua modéstia está ouro-e-fio com o seu peregrino talento. Poucos conhecerão, como ele, tão a fundo, a história barriga-verde. Sua análise é segura, e de tão alto quilate sua crítica. Duas de suas monografias - "Um Capítulo da Expansão Bandeirante" e "Dom Fernando Trejo y Sanabria" - recomendam- se como modelos no gênero. É, também, um dos nossos mais corretos escritores.

Neste particular, porém, ninguém supera a Barreiros Filho. Mestre do idioma, não mumificou a ideia nos subterrâneos da gramática. Não tem um livro; apenas alguns panfletos polêmicos. Mas o que até agora entregou aos azares da imprensa volante revela o mais perfeito trabalho de estilo. Dominando um vocabulário rico, harmonioso e colorido, consegue os mais variados e maravilhosos efeitos. Não sem trabalho, é verdade, porque, em suma, sofre da "tortura da forma". Dele se poderia dizer o que se disse de Flaubert; "E um gigante que derruba uma floresta, para construir uma caixinha". Seus sonetos, cinzelados nos moldes parnasianos, tem acabamento de jóias.

Ivo de Aquino, igualmente grande conhece dor da língua, frequentou o jornalismo, brilhou e brilha na tribuna, talhando conceitos numa forma clara e lapidar. Acaba de tirar do prelo a sucinta e esplêndida "tese" sobre a conceituação histórica e jurídico-constitucional de O Município que, a par de pontos de vista originais, compendia o que as maiores autoridades opinaram sobre o assunto.

Não é justo esqueçamos a Nereu Ramos, jornalista dos mais distintos, culto e proficientíssimo causídico, para quem a ciência do direito não tem segredos e que, a essas altas qualidades, ajunta refinado gosto literário; aos irmãos Konder — Marcos, Adolpho e Victor — que, em vários setores, pela pena ou pela palavra, têm posto seus rútilos talentos a serviço das mais belas aspirações de nossa terra; a Tito Carvalho, o nosso regionalista mais acreditado, que, com a Bulha de Arroio, reafirmou seus dotes de colorista poderoso, vagamente lembrando a maneira de Fialho e Aquilino Ribeiro; a Gustavo Neves, jornalista lúcido, com agudo senso de objetividade e que nunca desonrou a profissão; a Diniz Júnior, jornalista na mais alta acepção do termo, esteta rusquiniano, que, sem se desenraizar do bom solo pátrio, deu a muitos homens de letras conterrâneas o exemplo de quanto vale o gosto das letras estrangeiras; ao cônego Manfredo Leite, altíssima figura da tribuna sacra, cujo verbo colorido e sonoro arrebata e convence; a Maura de Senna Pereira, sensibilidade tropical, de tão magnética simpatia e que fez de seu pequeno Cântaro de Ternura uma fonte de perenal emoção; a José de Diniz, cronista do mundanismo e que tão bem compreende a alma feminina; a Antonieta de Barros, cujos Farrapos de Ideiasdenunciaram uma alma recatada e meditativa; a Lourival Câmara, jornalista de largos e brilhantíssimos recursos; a Ildefonso Juvenal, autor dos Contos de Natal; a Artur Galetti, que, tentado a filosofia, publicou a Seara do Pensamento, desigualmente julgada pela crítica; a Edmundo da Luz Pinto, orador famoso e conhecedor profundo da política internacional; a Arnaldo Santiago, que também nobilita a imprensa e já nos deu os versos dos Prelúdios e escreveu vários ensaios regionais de real merecimento; a Osvaldo Melo, outro jornalista alerta e laborioso que, filiado à doutrina kardecista, produziu, por ela inspirado, a novela Tesouro da Humanidade; a Othon D’Eça, temperamento complexo, que escreveu Cinza e Bruma em prosa, como um simbolista e ... Aos Espanhóis Confinantes, como um ironista que viaja e se deleita na contemplação das paisagens e dos homens, havendo-nos também brindado com as mais emocionantes estrofes da moderna poesia catarinense; a Carlos Corrêa, cujos sonetos possuem tão nobre inspiração; a Laércio Caldeira, atualmente em Niterói e que, tendo começado nas letras com a feição de cronista há[bil] e vibrátil, enveredou para os estudos bíblicos e morais, perdeu um tanto a primitiva estese e, parece, cultiva hoje a História, de que há muito tempo nos deu algo sobre o comércio catarinense; fazendo jus, todavia, a estima das inteligências bem formadas; a Antonio Mâncio da Costa, cultura sólida, poeta em cujos versos só brios o sentimento procura casar-se à ideia, e que há tempo trabalha num estudo de fôlego sobre A Química dos Lusíadas; a Renato Barbosa, espírito vivaz e inquieto, possuindo, em alto grau, a faculdade de ver os homens e as coisas com os seus pequeninos defeitos e falhas naturais, o que lhe permitiu, em Geração Abolicionista, daguerreotipar a sociedade catarinense de então, como devia ter sido, sem procurar magnificá-la, pois correria o risco de fazer estalar a moldura acanhada do meio; a Santos Saraiva, que nos deu uma vivida biografia do seu pai, em O Sábio das Picadas; a Heitor Blum, que também historiou A Campanha Abolicionista na Antiga Desterro; a Lupércio Costa, que estudou com autoridade os limites intermunicipais de Palhoça e São José; a Álvaro Tolentino, a maior autoridade na história deste último município.

Outros nomes deixam de ser mencionados, o que não quer dizer que tal silêncio denuncie mal querença ou desdém.

Viu-se, pouco atrás, quão pronunciado é (ou era ?) o gosto do povo barriga-verde pelos espetáculos teatrais. Retracemos, em breves linhas, a revivescência desse gosto há poucos anos observada. Não foi teatro do mais alto o que então se fez. Foi mais uma tumultuária febre de revistas de caráter quase sempre local, onde a fantasia despretensiosa se casava à crítica discreta ou ao simples registro dos fatos da terra, tudo embalado ao ritmo de músicas originais ou apressadas adaptações. De qualquer forma, era a manifestação das velhas predileções do povo, trabalhada pelos caprichos da época.

Dario Gouveia compôs Florianópolis Nu e Cria, a que José Colaço e Ulisses Costa replicaram com Pistoleirópolis. A seguir, Clementino de Brito tentou a cena infantil com a Casa de Brinquedos e Jardim Maravilhoso, a que logo ajuntou as burletas Nha Chica e Não se Mecha! e, a seguir, com Dante Natividade, escreve Florianópolis em Revista. Mâncio da Costa, selecionando os melhores elementos, obtém grande êxito com Seu Zéca Qué Casá e Flor da Roça. Cadê o Bastião, que Haroldo Callado escreveu de parceria com um amigo, foi a peça que maior número de representações obteve em Santa Catarina. Henrique Boiteux Sobrinho encenou Seu Ventura Chegou e Jazz-Band. João Crespo deu-nos o Zé Catarina; Odilon Fernandes, Ouro sobre Azul e Ré...vista; e Nagib Nicolau Nahas, a Ilha dos Casos Raros.

Depois o silêncio...

Existem, hoje, em Florianópolis, duas ou três sociedades dramáticas; porém obras teatrais propriamente catarinenses e de real mérito estão por aparecer.

* * *

E assim chegamos ao fim desta excursão através da cultura literária catarinense.

Embora tivéssemos querido pôr ordem na tarefa, acreditamos humildemente que ela não deu a visão de conjunto que seria de esperar. Mas aí fica a tentativa. Que outros a retomem com maior engenho e a realizem como merece. Como belamente disse Taine, “ le plus vif plaisir d'un esprit qui travaille consiste dans la pensée du travail que les autres feront plus tard”.

Fique-nos o consolo de haver buscado relevar que, dentro da modéstia do nosso meio e conforme as naturais contingências históricas, sempre tivemos certa atividade literária, a qual, se se não traduz frequentemente em livros, vive e viça ao menos nas colunas dos jornais e das revistas, e é motivo de justificado prazer para aqueles que, à sombra de sua biblioteca particular, saboreando o jogo das ideias, vão, aos poucos, refinando o próprio espírito e contribuindo com o seu coeficiente pessoal para a amável cultura das emoções estéticas.

A variedade que em nossas produções se estadeia quanto à espécie e valor intrínseco dos gêneros e dos temas, lembra o facies geográfico em que laboramos. Não se vá julgar desejemos condicionar a vida intelectual aos fenômenos geofísicos, quando a teoria de Buckle, envelhecida, não encontrou vantagens de rejuvenescimento no prestígio científico de Ratzel. A natureza age sobre o homem, mas o homem reage contra a natureza. A civilização é resultante desta reação.

Deixamos de lado a discussão da tese para encontrar uma relação secundária, mas própria, entre a paisagem e o sentimento de nossos artistas. A obra desses é cheia de altos e baixos, de uma grande riqueza de tons. Mesmo as deficiências que, do ponto de vista da unidade e correção, se lhes notam, estão de acordo com as feições gerais do meio. No planalto, ondulam os campos onde a boiada põe manchas movediças e através dos quais, em curvas de laços boleados, os rios languidamente fluem. Além, a massa negrejante dos pinheiros faz uma muralha de bronze contra o horizonte, e toda se sonoriza dos gritos dos papagaios ariscos. Pelo costão da serra, outros rios, torcidos e quebrados em corredeiras espumosas, buscam as várzeas litorâneas, onde às vezes profundamente se ensacam, sem ânimo de romper o tapume de areias que o vento à sua foz acumula. O litoral, recortado pela servilha das pontas e enseadas, banha-se num mar tão azul quanto o céu, e que tece e desfila em torno das ilhas quietas a renda irreal das espumas. Se o verão da costa tem toda as rudezas tropicais, o inverno serrano europeiza a paisagem com a estranha, fina, imaculada poesia da neve. O terreno desafia o engenho do homem, e este aceita o desafio da terra, riscando quase à régua retas quilométricas de estradas na planície e galgando os montes em curvas que lembram a ascensão da escala musical.

Essa paisagem multifária se espelha em nossa alma e torna-se compreensiva e terna. Que tal é a alma catarinense.

PARA A HISTÓRIA LITERÁRIA CATARINENSE

Cremos ser impossível assinalar os primeiros frutos da literatura catarinense, — se assim é lícito denominarmos o conjunto das manifestações literárias em nossa terra. A obra de Manuel Joaquim d’Almeida Coelho, Memória histórica da Província de Sta. Catarina, pelo seu indiscutível valor, constitui, por assim dizer, o marco inicial da nossa evolução literária propriamente histórica. É certo que a imprensa periódica, desde a sua instituição em terras catarinenses, por Jerônimo Coelho, favoreceu, de certo modo, essa evolução. Mas nós nos referimos à literatura em livros, e nesse sentido é que gabamos os méritos da Memória Histórica. Colocamo-la, até, acima da Memória Histórica do Regimento de Linha de Santa Catarina, do mesmo autor, aparecida em novembro de 1853, e acima, talvez, da biografia do Irmão Joaquim, que não sabemos quando foi publicada, mas, certamente, já estava impressa em 1854. Ninguém, de boa fé, acreditará seja uma obra rigorosamente científica. A "Advertência" do autor honestamente confessa que ele nada mais fez que "copiar o que outros escreveram". Mas, no fundo, encerra um filão de muitos fatos exatos, a que todos os historiógrafos catarinenses têm recorrido com grande confiança e pouca cerimônia...

Entre os homens de letras, que, aqui, agitaram o ambiente com as suas produções, vários deles não foram Catarinenses natos, como:

O autor da Tupaneida, por exemplo; José Elisiário da Silva Quintanilha, que publicou um livro de versos Lírios e Rosas; e Horácio Nunes Pires, que poetou com facilidade e deixou nos Bastidores vários dramas e comédias.

O Poeta do Brejo (Marcelino Antônio Dutra), como os seus inimigos o cognominavam, é figura bastante original.

Outro poeta distintíssimo, pela vida proba e notável cultura, foi o Dr. José Cândido de Lacerda Coutinho. Seu filho publicou-lhe, postumamente, as Ovidianas (1910), as Páginas solas (1913) e as Lendas escandinavas (1917). O assunto deste último volume há muito que desafiava a curiosidade e a paciência do erudito que era Lacerda Coutinho, e foi isso que o levou a elaborá-lo, formando-o de episódios compilados e traduzidos, com mais ou menos liberdade, da Gesta Donorum,de Saco Gramático. As Ovidianas, pelo seu sabor jocossério e burlesco, não têm rivais na literatura portuguesa. Nas Páginas soltas há sonetos de grande observação e sugestiva simplicidade, como, por exemplo, "Noite chuvosa", "Saudade do mar", "A botica", "O terreiro", "As preguiçosas", etc. São deliciosos os seus epigramas.

Não esqueceremos, todavia, Juvêncio Martins da Costa, temperamento sensível e delicado, imbuído do ingênuo lirismo casimiriano, sob cujos moldes escreveu muitos versos das suas Flores sem perfume.

João da Cruz e Sousa é, de certo, a mais original das individualidades literárias de Santa Catarina. Filho de escravos, africanos puros, nasceu em casa do então coronel Guilherme Xavier de Sousa, no Desterro (na propriedade conhecida por "Chácara de Espanha"). Hoje, uma placa de mármore assinala a casa onde nasceu. Araújo Figueredo, Virgílio Várzea, Horácio de Carvalho, Carlos de Farias e outros foram seus companheiros de boemia literária. Com eles funda o periódico de nome Colombo, que publicou o seu primeiro número a 7 de maio e o último a 24 de setembro de 1881. Ainda nesse ano, segue com a Companhia dramática de Moreira de Vasconcelos até o Rio Grande, voltando de lá para, com a mesma Companhia, na qualidade de "ponto", percorrer o litoral brasileiro, até Manaus, donde regressou em 1883. De colaboração com Virgílio Várzea, publica em 1885 o opúsculo Tropos e Fantasias, e promove a impressão o jornal O Moleque, ilustrado litograficamente, e que teve curta duração. No ano seguinte, toma ao Rio Grande do Sul, onde, forçado pelas conjunturas, teve de trabalhar como tipógrafo em uma casa editora; e em 1888 vai ao Rio de Janeiro, donde volta no ano seguinte ao Desterro. O Rio atraiu-o e prendeu-o, definitivamente, em 1890. Lá, sucessivamente, publicou o Missal e Broquéis (1893); Evocações e Faróis vieram depois. Cruz e Sousa não é tão insincero como o quis mostrar certa crítica. Como poeta e como prosador, é, sobretudo, a resultante do entrechoque e reação das suas origens étnicas, da sua cultura superficial e dispersiva, do seu orgulho tímido e dos preconceitos ambientes.

Poeta não menos complexo, porém, de feitio inteiramente diverso, foi o Dr. Luiz Delfino dos Santos, que nasceu no Desterro a 25-8-1834 e faleceu no Rio de Janeiro a 30-1 -1910. Na casa que lhe foi berço, à rua João Pinto n. 23 (antiga rua Augusta), há hoje uma lápide comemorativa. O poeta refere-se ao local do seu nascimento e a seu pai, no soneto "Ubi natus sum". Coelho Neto considerava-o o maior lírico do Brasil, e, quiçá, da América.

Araújo Figueredo pendeu um pouco para simbolismo, outro tanto para o decadismo e soube fazer sonetos repassados de comunicativa ternura, em que cantou a alma saudosa e boa dos nossos praianos, Até hoje não se tiveram notícias dos livros Novenos de Maio e Praias, que dizem ter deixado inéditos e que alguns admiradores um dia falaram em publicar,

A terra catarinense encontrou amoráveis estudiosos nos irmãos Boiteux — Henrique, Lucas e José, este último já falecido e que deixou pela imprensa inumeráveis artigos, principalmente históricos; e, em volumes ou folhetos, um Dicionário Geográfico de Santa Catarina e valiosas informações sobre os nossos Partidos Políticos.

Henrique Boiteux, pela mesma trilha, tem-nos mostrado o papel dos catarinenses na marinha nacional. Lucas deu-nos uma preciosa História de Santa Catarina, depois das suas Notas ainda hoje valiosíssimas; e foi, cremos, o primeiro a realizar ensaios sobre o nosso folclore, de que também nos deixou páginas interessantes o jornalista Crispim Mira, no volume Terra Catarinense, aliás, um tanto dispersivo, mas, ainda assim, estimável.

Henrique da Silva Fontes é uma inteligência privilegiada, de larga cultura, sobretudo em matéria de linguagem e história. A sua monografia sobre o Conselheiro Mascarenhas é modelo de crítica e análise meticulosas.

Laércio Caldeira, que era uma sensibilidade de artista, em contato com a vida desgastou-se. A sua Introdução à História Do Comércio catarinense ficou aquém da medida do seu talento. Outros assuntos históricos, dizem, hão-no tentado; acreditamos que, ventilando-os, volte a brilhar a inteligência vibrátil e gloriosa que tão distintamente serviu e dignificou as nossas letras regionais, nelas deixando inapagáveis traços.

Como escritor regionalista, avulta Tito Carvalho, que há pouco deu a lume a coleção de contos Bulha d'arroio, onde a crueza da psicologia rudimentar de certos personagens se funde com as graças transfiguradoras da natureza ambiente, lembrando, como técnica artística, certos processos de Fialho d’Almeida.

Entre os novos poetas, citaremos Mâncio da Costa, que procura irmanar à ideia o sentimento; João Crespo, há algum tempo afastado da vida da capital; Otaviano Ramos, autor de vários sonetos de forte expressão lírica; Ogê Mannebach, o nosso Gregório de Matos, menos cruel e mais elegante; Barreiros Filho, incomparável parnasiano, cujos versos são finos lavores de arte requintada, e que, na prosa, simultaneamente, se revela um completo estilista, sem rival em toda a nossa evolução literária.

O nosso maior lírico, porém, é Othon D’Eça. Suas estrofes têm espontaneidade e comovem. Como prosador, devemos-lhe Cinza e Bruma, cheio de imperfeições, mas, também, digno de estima e que, ao aparecer, ocasionou polêmicas tempestuosas — sinal de que algum valor tinha; e... aos Espanhóis confinantes, impressões de viagem, com alguma ironia, visível tendência apologética e vivo sentimento da paisagem.

Ainda no filão da história, vemos realizarem frutuosas buscas: Osvaldo Cabral, que já nos deu Santa Catarina e Laguna e outros ensaios, demonstrando brilhante vocação para tais estudos; Carlos da Costa Pereira, talento invulgar, tão subido quão modesto, dotado de aguda visão crítica, que ele aplica no discernir as fontes onde sua inteligência se abebera, para honra das letras catarinenses; Santos Saraiva, Renato Barbosa, Heitor Blum, Lupércio Lopes, Álvaro Tolentino e outros, que no Inst. Hist. E Geogr. muito têm trabalhado.

A estreiteza do espaço que nos foi dado impede-nos de justificar certos conceitos emitidos acima e de mencionar outras personalidades de valor cultural, não significando a sua omissão nenhum propósito de amesquinhamento.

Guia do Estado de Santa-Catarina. 3 ed. Atualizada por Alberto Entres s.d. (1940), p.244-248.

O FRANZINO POETA,

O LATINISTA QUADRAGENÁRIO

Para o Anuário Catarinense, de 1948, Altino Flores remeteu a colaboração, sob o título acima, retratando a velha Província literária do final do século passado.

Polêmica literária é coisa que em geral advém quando não se atritam valores intelectuais em concorrência, ou quando não a juventude, por insensata impaciência, supõe que os "velhos" estejam de pé atrás a barrar-lhes a investida aos desejados e prováveis triunfos. Nas mais das vezes, a contenda provém de vaidades feridas ou de incompreensões tornadas irredutíveis por excesso de amor próprio. Na história das Literaturas, porém, se registram grandes polêmicas em torno de teorias, ideias e tendências diversas, havendo-se celebrizado esses conflitos não só pelas figuras envolvidas neles, senão também porque servem de marcos de referência à luminosa ascensão da Inteligência humana.

Em regra, é a polêmica fenômeno ocasional, acidental e, consequentemente transitório. Morre e esquece com pasmosa facilidade. Tem-se visto mesmo o disparate de dois polemistas, após haverem reciprocado os mais ferinos doestos perante o leitor deliciado ou escandalizado, acabarem por se apertar mutuamente as mãos, reconciliados, muito risonhos, muito camaradas, como se entre eles nada houvesse acontecido. Antes assim, porquanto, com tal gesto, estão contribuindo para que se não avinagrem ainda mais as dissensões e incompatibilidades de humores, que no terreno das belas letras, como em tantos outros, separam os homens, pondo-lhes nos nervos impulsos irrefreáveis de tigres e lobos e serpentes...

Quando não Cruz e Sousa se iniciou nas letras no ambiente provinciano da antiga cidade do Desterro, decerto não se considerou isento do prurido a que estão naturalmente sujeitos os "jovens literatos": de atacar aos "velhos", aos "fósseis", como aparentes obstrutores maciços do caminho que aqueles têm o direito de trilhar, lesta e desempenadamente. E isso é que há levado muitos "velhos" a procurarem acamaradar-se com os "novos", mais pelo inconfessado receio de virem a ser atropelados e derrubados e espezinhados por eles, do que por acreditarem que possam viver em celestial harmonia a esperança inquieta e sôfrega e a meditação experiente e analítica. Porque é preciso que um "moço" disponha de imensa dose de modéstia e humildade para aceitar a convivência com um "velho", que, por natureza, está sempre inclinado a assumir as feições antipáticas de tutor, mentor, ou mestre...

Volvendo, porém, a Cruz e Sousa... Não foi ele dos mais atrevidos nas investidas contra os "passadistas" da época. Vontade e coragem talvez lhe não faltassem. Tolhia-o, porém, o complexo da inferioridade racial. Em tempo de escravagem, audácia sem par seria um filho de escravos bolear a funda da crítica, do humorismo ou do sarcasmo contra um intelectual ariano. Na estreiteza da Província esse preconceito assumia implacável rigidez.

O que não fez o jovem poeta negro, fê-lo no entanto o seu amigo e companheiro Virgílio Várzea, algumas de cujas obras mereceriam ser mais largamente conhecidas pelos seus conterrâneos.

Ao redor dos vinte anos, eles e os seus amigos se agruparam sob a bandeira revel da Ideia Nova. Que vinha a ser isso? Não podia ser lá grande coisa, concretamente. Ambições ideais de emoção e cultura? Nesse caso, estaria a revelar-se-lhes o afã do espírito moço, no sentido de modificar a pasmaceira provinciana.

Leituras amplas, decerto atabalhoadas, iam-lhes fecundando a imaginação indecisa. O jornal Regeneração, do Desterro, em que colaboravam Virgílio Várzea e Cruz e Sousa, insere na coluna das publicações a pedido, em 12 de Março de 1884, uma rija tunda em Pinheiro Chagas. Por assinatura, dois simples asteriscos... Ali era o autor do Poema da Mocidade crismado de "atrasado, chapista e fóssil"; qualificados de "homens do passado", mencionavam-se também Vitor Hugo, Lamartine, Vitor Cousin, Chateaubriand, Garrett, Castilho, Herculano, Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias; os "grandes nomes da ldeia Nova" eram somente Darwin, Spencer, Hartmann, Taine, Zola, Afonso Daudet, Richepin, Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro Guilherme de Azevedo, Valentim Magalhães, João Capistrano e Raul Pompéia, "os fortes da atualidade". Pouco depois se lhes anexaria Ernesto Haeckel. Mas, entre os nomes dos portugueses, não é incompreensível a ausência de Antero de Quental?...

Evidentemente, a precariedade e a injustiça transparecem nessa seleção crítica. A pedra de toque para aferição de valores era a simples "actualidade"... De resto, não parece ter sido profunda nem sólida a cultura literária da geração cruz-e-sousista; nem podia sê-lo, pois a Província marcava passo na mais ingênua mediocridade, perdida na politicagem desbragada de um período de transição, donde haveria de brotar a libertação dos escravos e explodir a República.

Percebe-se que aquele mencionar de escritores "actuais", era um modo indireto de bulir com alguns dos pseudo-literatos "velhos" da monótona cidade do Desterro, Entre esses, avultava, mais pela fácil exacerbação do temperamento bilioso do que pela vivacidade cerebral, o latinista Eduardo Nunes Pires, cuja data de nascimento ignoramos. Sabemos que, em 1862, fora aluno do Liceu Provincial, havendo sido aprovado plenamente com louvor no exame vago de Aritmética, plenamente no 1° ano de Inglês e com louvor no 4° ano de Latim; nos exames de 1863, foi aprovado plenamente no 2° ano de Inglês e com distinção em Álgebra. Em 1868, era já designado para servir provisoriamente na função de Procurador Fiscal da Fazenda Provincial, enquanto não assumisse o cargo o seu titular, Dr. Francisco Honorato Cidade. Em 25 de Maio de 1869, foi nomeado Escrivão da Mesa de Rendas Provinciais da Laguna. Em 1883, era Primeiro Escriturário da 3ª Secção do Tesouro. Faleceu em Florianópolis, em 27 de Outubro de 1902, como Inspetor (aposentado) da Fazenda Estadual.

Na capital catarinense existiu um mulato conhecido por Biguibi, com alfaiataria na antiga Rua Bela do Senado (hoje Felipe Schmidt). Quando, ainda rapaz, o conhecemos, já bem velhinho era ele e estava com os restos do seu estabelecimento na Rua Deodoro, em frente à igreja de São Francisco. Ali era visto, de carapinha branca, em colete, quase sempre encostado à ombreira da porta, com a fita métrica pendente do pescoço como uma tênia exangue, e a deitar por cima dos óculos melancólicas mira à fula-fula rueira.

Era a sua alfaiataria, nos tempos da Ideia Nova, um ponto de palestra dos figurões da cidade, como também o era a "Charutaria Espanha", de cujo proprietário, J. Garrido Portela, chegou Virgílio Várzea a traçar o "perfil" pela imprensa.

Biguibi tinha um álbum onde fazia questão de que os intelectuais desterrenses registrassem, pelo próprio punho, as suas inspirações artísticas, em prosa ou verso. Ora, foi justamente nesse repositório de joias literárias ilhoas que Eduardo Nunes Pires escreveu, em Dezembro de 1883, uns versos que Virgílio Várzea, então Oficial do Gabinete do Presidente da Província, teve oportunidade de ler e nos quais farejou "umas coisas contendo insulto à sua pessoa. E pela Regeneração de 3 de Janeiro de 1884, usando um x como assinatura, Várzea endereça a N..., isto é, a Eduardo Nunes Pires, estes quatro virulentos triolés:

Ó idiota emproadoCom pretensões a talento,Tu tens o crânio castrado,Ó Idiota emproado.És literato atrasado E poeta bolorento,Ó Idiota emproado Com preterições a talento.Largaste somente asneiras No álbum do Biguibi:Minhoca das esterqueiras,Largaste somente asneiras,Ri-me das linhas-porqueiras Ali traçadas por ti.Largaste somente asneiras No álbum do Biguibi.Na minha moderna escola Tu não tens ingresso, não!Não entra a tua cachola Na minha moderna escola.Já tens estragada a bola,Por Isso que és toleirão,Na minha moderna escolaTu não tens ingresso, não!Eu não te julgo na altura De poderes criticar,Por seres cavalgadura Eu não te julgo na altura.Precisas de ferradura,És da raça cavalar.Eu não te julgo na altura De poderes criticar.

A reação da parte de Eduardo Nunes Pires foi pronta e violenta. Buscou o autor das oitavas por todos os recantos da cidade, até que numa rua do Mato Grosso 1 o encontrou. Refere a tradição que o latinista procurou socar nas fauces do jovem poeta, à guisa de bucha, o pedaço de jornal com os triolésinsultantes.

Vejamos o que a Regeneração, no dia seguinte, publicou:

"AGRESSÃO. — Comunicam-nos: Ontem, às 5 horas da tarde, o nosso distinto amigo Virgílio Várzea, Oficial de Gabinete da Presidência, foi agredido, em Mato Grosso, por um indivíduo, que, atribuindo a autoria de uns versos ao mesmo Sr. Virgílio, procurou desacatá-lo, no que foi repelido com energia pelo talentoso moço. A agressão não podia ser mais digna de reprovação. Quando se trata de luta intelectual, o apelo animal à força física, que aliás não é permitido entre pessoas decentes, constitui uma desgraçada confissão, de incapacidade".

No dia 5, porém, o Jornal do Comércio, onde trabalhava Martinho José Caiado (que nesse mesmo ano viria a ser o seu proprietário), divulga:

"AGRESSÃO. — Comunicam-nos: Sobre a notícia dada pela Regeneração, de ontem, com este título, é indispensável colocar a questão no seu verdadeiro pé. Com efeito, quando não se trata de luta intelectual, o apelo à força física deve ser inteiramente rejeitado; mas, no caso vertente, não havia luta intelectual possível; o insulto irrogado por um X quem o não insultara pedia uma reparação. A reparação da injúria contida nas palavras: "És da raça cavalar" foi pedida a X, que tentou reagir, mas deu, finalmente, a mais completa satisfação ao injuriado. A verdade é esta: Foi pedida e dada uma satisfação".

Noutra página, o referido jornal, sob o rótulo de "publicações a pedido" e com a assinatura de Anaxágoras (pseudônimo de Eduardo Nunes Pires), frecha ironicamente a personalidade do "insigne poeta V..." (Várzea), dizendo-lhe:

"...Lanças mão de uns triolés nauseabundos, cheios de bestuntidades, que causam náuseas. Cultiva a tua inteligência. Recorre aos dicionários para procurar termos tétricos (homericamente falando), para não te tornares mais ignaro do que és. Podes crer que não te desejo mal; para prova, aceita meus parabéns:

Aceita meus parabénsPelos tapas que levaste...Foi assim tão caladinho.Que nem ao menos... choraste!”

Todavia, no dia 6, a Regeneração vem tentando e pertentando restaurar a verdade:

"AGRESSÃO. — Comunicam-nos o seguinte: O Jornal do Comércio pretendeu contestar a notícia, que demos, da agressão brutal de que foi vítima o nosso jovem amigo Virgílio Várzea e afirma que o agressor não fez mais do que pedir a reparação, que obteve, de uma injúria que lhe fora assacada. Contestamos, deixando o caso bem claro, uma vez que assim é preciso. Um indivíduo com pretensões a literato escreveu no álbum de certo cavalheiro umas coisas contendo insultos ao talentoso poeta V. Várzea. Este respondeu, quebrando uns engraçados triolets na nuca do grosseirão. Reconhecendo o referido sujeito que não podia sustentar luta intelectual com o seu contendor, que lhe está superior a perder de vistas, recorreu às únicas forças de que dispõe: as musculares; e agrediu ao nosso amigo, quando este de volta de um passeio numa das ruas do Mato Grosso. Nenhuma satisfação deu o Sr. Virgílio ao seu agressor; muito pelo contrário, repeliu-o vantajosamente, senão para notar que o agredido é uma criança de dezenove anos e franzino, ao passo que o provocador tem quarenta anos ou mais e está, quanto a organismo, em estado de completo desenvolvimento e vigor, segundo o tipo da espécie. Tudo o que não for o que deixamos narrado é puramente falso".

Nessa altura (é a tradição quem o diz), o Dr. Gama Rosa, Presidente da Província, teria mandado pôr dois policiais, à paisana, à disposição do seu Oficial de Gabinete. Então, Várzea, simples "criança franzina", se sentira à vontade para, naquele mesmo dia, quando não completava vinte anos, dirigir ao quadragenário latinista, desenvolvido "segundo o tipo da espécie", estas linhas.

"AO NULO ANAXÁGORAS. — Sem ter coragem de subscrever linhas que publicou ontem no Jornal do Comércio, o Sr. Eduardo Pires juntou ao seu inqualificável procedimento a mais risível gaucherie,querendo fazer crer que saiu vitorioso da agressão puramente animal de um literato sem cérebro. Hoje, como naquele dia, será repelido com a mesma energia. Quando não for o caso de triolets, conte com eles o escritor fóssil; quando não se tratar de corresponder a ataques, pode convencidamente preparar o frontispício. Fique, porém, sabendo que para mim Sua Mercê não significa um homem, mas, simplesmente, um caso zoológico. Acredite o literato da rosa que as suas ouades serão castigadas com a roseta dos triolés. Desterro, 5 de janeiro. — V. V."

E ma [sic] estes triolés:

A ANAXÁGORASNa tua cara barbadaChupaste duma criança!Levaste só bordoada Na tua cara barbada.E como bem amassada Ficou-te a esguia pança!Na tua cara barbadaChupas duma criança!Não arrotes valentia,Pois tu não prestas p'ra nada!Só sabes ter covardia,Não arrotes valentia;Olha, às vezes, a cotia É um tanto apimentada...Não arrotes valentia,Pois tu não prestas p'ra nada!

A desenfreada veemência dessas diatribes está a denunciar que seu "franzino" autor escrevia sob a égide de um poder oculto, capaz e o abroquelar contra quaisquer revides... Aliás, em todos os tempos os se têm visto os efeitos de semelhante proteção, assim imoral como escandalosa.

É bem possível que o conflito entre o "jovem" poeta e o latinista "tipo da espécie" houvesse impressionado de maneira desagradável o espírito público, Talvez por esse motivo é que o Jornal do Comércio do dia 8 lança um editorial em que define o papel desempenhado pela imprensa no seio da sociedade, como fanal da opinião esclarecida, e estima que o desconhecimento ou menosprezo desse conceito a leve muitas vezes a transformar-se em disseminadora de ruins paixões.

Assim opinava o Jornal do Comércio. Acreditamos na sua sinceridade, como, no entanto, acreditamos que ele ignorasse o modo de pensar daquele jornalista do magistral romance de Balzac, que dizia, certa vez, com dolorosa franqueza, aos companheiros:

"Todo jornal é uma loja onde se vendem ao público as palavras da que ele quer. Se houvesse um jornal de corcundas, havia de proclamar todos os dias a beleza, a bondade e a necessidade dos corcundas. Um jornal, não é para esclarecer, mas sim para lisonjear as opiniões... O jornal pode abalançar a procedimentos tão atrozes, que ninguém pessoalmente se poderá considerar maculado... Havemos de ver os jornais, dantes dirigidos por homens de honra, caírem mais tarde sob o domínio dos mais medíocres, que hão de ter a paciência e a maleabilidade de borracha que escasseiam aos belos gênios, ou de tendeiros com dinheiro suficiente para comprar penas. Já estamos vendo isso! Mas dentro de dez anos, o primeiro pequenote acabado de sair do colégio há de julgar-se um grande homem, trepar às colunas de um jornal para esbofetear os seus antecessores e empurrá-los para se colocar no lugar deles... Todos nós sabemos que os jornais hão de ir mais longe do que os reis em ingratidão, mais longe que o mais sórdido comércio em especulações e em cálculos, e que nos hão de devorar a inteligência, a impingir-nos cada manhã a sua cachaça..."

Em suma: para o Cláudio Vignon do romance balzaquiano, os jornais não passavam de "bordéis do pensamento"; conceito, esse, diametralmente oposto ao emitido pelo Jornal do Comércio da velha cidade do Desterro, e o atual conceito, pela oportunidade que o propiciava, fez cessar a feia briga literária.

CRUZ E SOUSA E A CRÍTICA NACIONAL

Tal é o título dum artigo, que O Município, da cidade de S. Francisco, traz em seu número de 9 do corrente, artigo esse motivado pelo quarto da minha série, que vinha sendo publicada em O Dia a respeito do momento literário.

Abunda o articulista nas minhas ideias? Não sei. Mas a primeira impressão, que tive ao ler aquelas linhas, aliás corteses e até desvanecedoras para a minha apagada personalidade, foi de que elas eram uma lição discretamente dada por quem, valha a verdade, está bem a par do movimento intelectual brasileiro. Por aí já se vê - ao contrário do que geralmente se supõe - como também fora da Capital se estudam e se ventilam questões de mais ou menos monta, o que é tão raro aqui nesta risonha e fresca Ilha dos Patos.

De mim, sempre tive a Redação d' O Município como nimiamente ilustre, com um apreço que mais forte se tornou depois da rija e contundente polêmica em que ele e A Semana, cuja eu era diretor, por tão longo tempo andaram empenhados. Foi um adversário leal e forte: caiu, mas caiu com honra - sem largar a espada!

Tem para si, o distinto articulista d' O Município, que "uma das condições primordiais para aquele que se propõe a fazer um ensaio de crítica literária, seria prover-se de dados informativos que fornecessem elementos bastante seguros para a conclusão de um trabalho sem falhas e que nada deixasse a desejar".

A que vem essa exposição do seu modo de encarar a fatura dum trabalho crítico? À guisa de lição, creio-o, pois logo em seguida ele passa a dar-me "alguns subsídios, na suposição de que eu deles carecesse ou me houvesse sem passado "despercebidos".

Antes de mais nada, vejamos a minha asserção, cuja fraqueza o crítico d'OMunicípio vem subsidiar. Eu referia-me a Cruz e Sousa e Virgílio Várzea, dizendo: "Críticos há que a estes dois não atribuem o merecimento a que fazem jus".

Que se depreende desta frase? Que os nossos críticos nunca reconheceram o valor dos dois escritores catarinenses? Absolutamente não.

Logo: se subsídio é socorro, auxílio, etc., conforme o diz o dicionário que me está ao alcance da mão, o ilustrado articulista, no caso vertente, só subsidiaria de fato o meu acerto, se me citasse, não críticos apologistas do poeta negro, mas aristarcos que lhe não atribuíssem o merecimento a que faz jus.

Não procedendo assim, não me auxiliou em nada. Apenas veio trazer-me citações críticas que reconhecem o mérito do autor dos Broqueis, quando do contrário é que se precisava. Então, sim, seriam "subsidiárias" as suas achegas.

Se bem que me falta o Livro do Centenário, cá tenho na minha estante e como ela é paupérrima! - a História da Literatura Brasileira, por Sílvio Romero, edição da Livraria Garnier. Desnecessário era ao articulista d'O Município acentuar que "muito naturalmente Sílvio Romero não podia falar de Cruz e Sousa em sua valiosíssima obra", pois que "ela abrange o período de 1500 a 1877".

O meu ilustre admoestador enredou-se aí numa confusão muito de lamentar. A História da Literatura Brasileira, por mim citada, não é a de Sílvio Romero, mas o Compêndio de História da Literatura Brasileira, organizado por aquele ilustre crítico e por João Ribeiro, e editado pela Livraria Francisco Alves.

Provemo-lo com a minha frase:

“Cruz e Sousa, por exemplo, não é contemplado na História da Literatura Brasileira compendiada pelos srs. Sílvio Romero e João Ribeiro, etc.”

Não havia também razão para que, citando essa minha frase, o brilhante articulista encravasse nela, depois do nome de João Ribeiro, um ponto d'interrogação entre parênteses... Isso faz supor lhe seja desconhecido aquele volume, o que se torna imperdoável em quem, na apreciação dum ensaio crítico, devia vir abastecido de largos conhecimentos do assunto, "para a conclusão dum trabalho sem falhas e que nada deixasse a desejar".

Os exigentes assim pensariam. Mas eu com eles não pactuo. Ninguém é obrigado a sorver todo esse Niágara de papel impresso e brochado, que, sem descontinuar, as livrarias golfam para a publicidade,assustadoramente.

Uma coisa estranhei no artigo d'O Município: a inconsentaneidade entre o título e a essência do artigo.

Para ventilar o assunto com a largueza que seria muito para louvar, o autor devia não só citar-me críticos cujas apreciações favoreciam o nome de Cruz e Sousa, mas também aqueles que o atacaram justa ou injustamente.

Charles Todelle, escrevendo o seu Cristo e o Cristianismo, estudou a personalidade do Nazareno em face dos dogmas católicos, dos credos luteranos, calvinistas, etc. Semelhantemente, o autor de Cruz e Sousa e a Crítica Nacional devia dar-nos, ao menos em esboço, os juízos vários que a Crítica nacional tem formulado a respeito da obra cruz-e-sousista. O título do artigo e a matéria nele estudada não andariam às testilhas. Tal não se deu. Ali se nos deparam apenas elogios ao poeta negro. Dir-se-ia que todo o empenho do articulista fora respigar, entre as páginas dos nossos aristarcos, aquelas que não empanassem, antes favorecessem o resplendor da coroa tão acuradamente trabalhada pelos catarinenses e por eles tão reverentemente posta sobre a memória do autor dos Últimos Sonetos.

Sílvio Romero e Araripe Júnior, cada qual com menos calma, apologizaram Cruz e Sousa sem discrepância alguma. Pelo menos é o que se depreende das citas feitas pelo articulista d'O Município.

No entanto, nem sempre a Crítica nacional foi favorável ao poeta catarinense. Gomes Bastos, por exemplo, aliás sem nenhum critério, do alto do seu volumezinho Esboços Críticos, teve a audácia de negar in totum o sentimento poético de Cruz e Sousa; e essa amarga catilinária acaba por um tremendo ataque à raça negra.

Um pilhérico qualquer exclamaria:

"Isto é que é meter uma lança em África!"

Não sei se Araripe Júnior e Sílvio Romero, cantando loas apologéticas ao autor dos Faróis, fazem as suas restrições...

Estou que o melhor estudo formulado sobre esse "verdadeiro, esquisito e raro poeta" é, até agora, o de José Veríssimo. Talvez o desconheçam os meus conterrâneos e talvez ele desconhecido seja do distinto articulista d'O Município.

Suponho que o cruditíssimo crítico, que a morte acaba de arrebatar do seu posto de honra nas Letras pátrias, nem nunca houvesse pessoalmente conhecido ao "desditoso e comovido poeta". Mas, lendo os Últimos Sonetos, desvendou-lhe a psicologia com uma nitidez pasmosa e dela nos expôs os mais seguros dados nos seus Estudos de Literatura Brasileira (6ª série, cap. VII).

O próprio Dr. Gama Rosa, que teve íntimas relações com Cruz e Sousa e de quem fala na sua obra Sociologia e Estética (Comentários, 1ª série, p. 277), mal chegou a esboçar o que José Veríssimo integralmente realizou por meio duma simples leitura.

O articulista d'O Município, para ser coerente com o título do seu artigo, devia balancear as diversas opiniões críticas que nas nossas Letras se debatem em torno do poeta negro, extraindo então delas a sua conclusão, isso é: se Cruz e Sousa, em face da Crítica Nacional, foi ou não um poeta de valor.

Mas não o fez, infelizmente.

O Dia (Fpolis) 10/03/1916.

CRUZ E SOUSA INCOMPREENDIDO

A Mário C. Bonnfeld

A grande verbosidade ritmada de Cruz e Sousa absorveu a atenção do catarinense. Quando aqui se fala em poeta da casa, logo nos atiram às bochechas com o nome do autor dos Broqueis. Dir-se-ia que, até hoje, outro vate não tivemos senão o desditoso cantor dos Últimos Sonetos, aquele cuja torturada alma por tantas formas de beleza suspirou e com uma sofreguidão tal que apenas pôde realizar uma pouca dessa beleza.

Sabemos naturalmente que muitos versos de Cruz e Sousa não têm explicação, por isso que lhes falta essência, ideia, fundo. A rima é frequentemente brilhante, bem jogado o rimo, afinal, a sua técnica é magnífica, magistral. No entanto, quando se busca ali uma ideia de valor filosófico, estético, etc., fica-se surpreendido. Surpreendido é o termo: pois de nenhum modo podemos imaginar que naqueles versos tão cantantes e tão cheios, haja carência de fundo, de essência que os justifique. Eles dão-nos a desconsoladora impressão de que, se o poeta possuía ideia, não na soube vazar nos seus versos. Por conseguinte, as belas roupagens da sua poesia não passam dum aliciante artifício, filho dum nervosismo requintado até a tortura e alimentação infernalmente pelo desgosto de quem se vê, por preconceitos de classe e raça, desdenhado na sociedade...

Mas, digamos a verdade, foi o excessivo artifício desse poeta que cegou ao catarinense. Ele quase não tolerou que alguém, depois do poeta negro, versejasse, ainda que magistralmente, por esses Brasis afora. Para ele, Cruz e Sousa e só Cruz e Sousa. Isto é absurdo, é asneira. Mas, sem embargo de não perceber nada em versos como estes, dos "Demônios":

A língua vil, ignívoma, purpúrea Dos pecados mortais bava e braveja,Com os seres impoluídos mercadeja, Mordendo-os fundo Injúria por injúria.É um grito infernal de atroz luxúria,Dor de danados, dor do Caos que almeja A toda alma serena que viceja.Só fúria, fúria, fúria, fúria, fúria!São pecados mortais feitos hirsutos Demônios mais que os venenosos frutos Morderam com volúpias de quem ama.Vermes da Inveja, a lesma verde e oleosa. Anões da Dor torcida e cancerosa.Abortos de almas a sangrar na lama!

sem embargo, dizia, de não compreender a sibilina essência desses versos, o catarinense continua aferrado à convicção de que o autor deles foi, é e será o nosso maior poeta! Stupete...

Longe vá a suspeita de que eu não aprecie o autor dos Faróis. Daqui destas mesmas colunas ansas já tive de censurar os críticos que lhe não davam o devido apreço. Todavia, como então se me deparou ensejo de gabar-lhe os méritos, oportuno julgo agora expor as minhas restrições.

Cruz e Sousa não podia ser um grande poeta, ou, antes, um grande sonetista se precedia, como ele amarguradamente confessa, "de uma raça que a ditadora ciência de hipóteses negou em absoluto para as funções do Entendimento, e, principalmente, do entendimento artístico da palavra escrita!" 2

Verdade é que o sentimento não tem cor, a não ser tropologicamente falando. Mas a sensibilidade tem a sua tábua de valores, que a psicologia das raças descrimina e pela qual está provado que a estesia do africano é diminuta e, embora se refine tanto quanto possa, nunca atingirá o limite médio em que oscila a da raça branca. "Isto, diz Ernesto Haeckel, isto é verdade especialmente para sensações complexas que chamamos estéticas e que são fonte de arte e de poesia". 3

E Büchner pergunta: "Quem não conhece a inferioridade intelectual inata dos negros?" 4.

No autor dos Broqueis havia sinceridade, e é só quando ele é sincero que lhe sentimos a poesia; o resto é acumulação de palavras com apuro metrificadas e com harmonia rimadas. E a insignificação desses versos prova-se com o fato de "eles não poderem ser talvez traduzidos" 5.

A sincera emotividade que a lugares se entremostra no seu versejar e que tão imprópria é à sua raça foi alcançada (dir-se-ia melhor contraída) por via duma artística privança com muitos literatos, aqui e no Rio de Janeiro. O convívio com essas criaturas de alto saber e apurado bom-gosto buiu-lhe as asperezas cognatas do caráter e da inteligência, tanto quanto possível, ao mesmo tempo em que lhe despertava na alma os sentimentos bons que o inspiravam em cantos como este:

O coração de todo ser humano Foi concebido para ter piedade.Para olhar e sentir com caridade,Fitar mais doce o eterno desengano.Para da vida em cada rude oceano Arrojar, através da imensidade.Tábuas de salvação, de suavidade.De consolo e de afeto soberano.Sim! Que não ter um coração profundo E os olhos fechar dor do mundo.Ficar inútil nos antigos trilhos,É como se o meu ser compadecido Não tivesse um soluço comovido Para sentir e para amar meus filhos!

É a flor de simpatia desatando as pétalas na alma triste deste poeta, filho de Cam, "maldito, réprobo, anatematizado" 6, flor cujo perfume saturou tão indelevelmente os seus melhores momentos d'Arte, quando ele se sentia empolgado por "esta ânsia infinita, esta sede santa e inquieta, que não cessa, de encontrarmos um dia uma alma que nos veja com simplicidade e clareza, que nos compreenda, que nos ame, que nos sinta" 7 e que, quando a encontramos, nos torna "desafogados, coração e cérebro inundados de graça de um divino amor, bem pagos de tudo, suficientemente recompensados de todo o transcendente. Sacrifício que a Natureza heroicamente impôs aos nossos ombros, para ver se conseguimos aqui em baixo na Terra encher, cobrir este abismo do Tédio com abismos de Luz!"8.

A intelectualização de Cruz e Sousa é um caso esporádico, arqui-raro no meio da chateza intelectiva da raça preta. A alteração da sua idiossincrasia foi tão profunda que chegou a transparecer-lhe no estilo. Sofrendo moralmente, mais teria ele sofrido artisticamente em face da visceral impossibilidade de exteriorizar nítidas as suas emoções, que deviam ser de natureza nebulosas em obediências a leis etnológicas, cuja influência não lhe era dado fugir - nem a ele nem a outro que se encontrasse nas mesmas circunstâncias.

A sociedade via nele um negro: ele internava-se magoado na sua Arte. Outra luta começava, e era a da sua estesia impotente na tentativa de apanhar e reduzir à forma literária algumas das emoções que perfunctoriamente, como borboletas fugidias, lhe esvoejavam na alma. Que sabia desse esforço? Versos como os do soneto "Demônios" e outros, e páginas como muitas das Evocações e do Missal, cuja expressão, rotunda qual vela de galeão, como essa vela só continha vento.

Mas o catarinense não dá tento destas coisas. O seu critério de julgamento é duma lamentável estreiteza, e tão risível que nos força, para seu bem, a supor que ele jamais tivesse compulsado a prosa e o verso de Cruz e Sousa.

Se a qualquer catarinense perguntarmos o que pensa do autor dos Broqueis,responder-nos-á:

"Cruz e Sousa? Cruz e Sousa? É um vulcão!"

Ora, como o notou muito bem Eça de Queiroz, "esta maneira de falar de um poeta, tratando-o de vulcão, (...) mas um modo inábil de se desembaraçar do severo dever de o compreender". 9

E não é mais nem menos áo que isso!

O Dia 24/03/1916

A SOMBRA DE CRUZ E SOUSA

Cruz e Sousa foi um bem e foi um mai para as letras catarinenses; foi um bem porque, dando-nos versos admiráveis, tornou o nome do nosso Estado conhecidíssimo entre os demais; foi um mal porque, por ser negro, despertou em todos os negros de Santa Catarina, que acompanham a evolução literária do Brasil pelo texto dos almanaques, a veleidade de poetas.

Ildefonso, p, ex., é um destes. Cursou a escola primária e, por deficiências mentais e financeiras, não pôde ir além. Coitado! Nesse ponto nenhuma culpa lhe cabe. A sorte não reparte igualmente com todos o tesouro da suas graças. Como quer que seja, Ildefonso foi um mero aluno de escola de tico-tico, mais nada. Mas, tendo obtido, não sabemos por que meio, uma coleção de Almanaques do Rio Grande do Sul, embebeu-se de tal jeito na leitura dela que, ao fim quarenta e três dias, cinco horas, nove minutos e quinze segundos, se achou grávido de inspiração literária.

Foi então que, em movitos sucessivos e surpreendentes, entrou a bolçar para a publicidade os mais grotescos fetos em prosa e verso, já pelas colunas de jornalecos seus, impressos em papel rosado e dignos de servir de invólucro às Pink Pills for People, já pelas páginas dos grandes diários da capital, os quais abriam as suas colunas caridosamente ao desgraçado escrevinhante e que lhes solicitava essa mercê de joelho em terra e chapéu na mão.

Pouco a pouco, Ildefonso se foi sentindo mais forte. Conseguira dar aos que com ele tinham sido benévolos a ilusão de que era, de fato, um como herdeiro das delicadezas d'alma e dos valores artísticos do soberbo autor dos Últimos Sonetos...

Sobreveio-lhe, nessa altura, uma alucinada febre de trabalho literária: fez contos aos maços, como quem faz cigarros, forgicou Dramas, semeou sonetos à rosa dos ventos, lamentou-se de ser negro e vangloriou-se de não saber gramática - virtude esta que distingue, aliás, a muitos filhos do belo país do Congo, principalmente aos que de lá não saíram e aos que baseiam toda a sua cultura nos tais Almanaques do Rio Grande do Sul.

Com essa bagagem de circo, celebrizou-se entre parvos e recebeu na testa de ébano a vacina da glória - ali insculpida pela pontinha interesseira,mas dulçorosamente amaneirada, da pena de certos jornaliqueiros absurdos. E foi lançado na arena dasletras. (Assim se solta no campo o novilho, depois de receber na anca o ferro em brasa da marca do fazendeiro...)

Desde então, lldefonso estava livre de se confundir com os literatos da raça caucásia, que o julgavam pífio e idiota, e com os de sua estirpe, que o contemplavam embasbacados, como se nele enxergassem o messia X P T O do continente cujo périplo Hannon empreendeu, embora às vezes tivessem secretas vontades de rir de tanta embofia e tão convicta pose.

Outro viciozinho seu apareceu em seguida: chamar cozinheiros aos brancos que lhezurziama petulância... Dá graça! Ninguém melhor do que ele está talhado para o ofício de Vatel: é obtuso, quaDr.ado de costas, pansudo, tem beiço próprio para chupitar as colheradas de prova,faltando-lhe só o barrete, o avental branco, uma cozinha e quem o tome a tantos por mês...

Sim! Ildenfonso irá à posteridade, nem que seja pela porta duma cozinha!

*****

Mas, então, este pobre literatelho não poderá de forma nenhuma ser o sucessor de Cruz e Sousa?

É claro, ou, melhor, é escuro que não.

Por quê?

Escarnemos-lhe de batida a psicologia que obteremos arazão.

lldefonso é bronco, iletrado, vaidoso, embora se cubra do verniz da modéstia, não tem o mínimo sentimento do que seja o ritmo poético e ignora todas as condições da prosa artística. Desconhecendo a técnica do verso e as leis sintáticas que conficionam a integridade estrutural do período na prosa portuguesa, não pôde, por isso, até hoje, fazer coisa que prestasse. E não o poderá nunca, visto que essa impossibilidade deriva das suas próprias condições intelectivas e constitui, portanto, um estorvo fatal e irremovível. E, literariamente, uma fava chocha.

Cruz e Sousa, ao contrário, foi uma criatura delicada, vibrátil, supersensibilizada pelas amarguras e desditas com que o destino lhe agonizou a existência, e que, por possuir um espírito de eleição, sabia traduzir as suas mágoas e desilusões numa forma poética sutil, misto de soluços e músicas em surdina, de gritos de dor e murmúrios de prece, de relâmpagos sangrentos e olhares de crianças... Em suma: uma obra humanamente sentida, digna de quem a realizou - torturado pelo mal da Arte.

Ora, lldefonso está tão impossibilitado de compreender essa obra, para poder imitá-la, como nós de transformar a lua em queijo.

O que, no máximo, se lhe poderá conceder é que seja, até a morte - a sombra de Cruz e Sousa.

Esperamos que ele venha, pela imprensa, dizer que isso lhe dá muita honra e lhe basta.

Assinado L (Altino Flores)

(in Terra n. 19, 7 de novembro de 1920, p. 9-10)

DE PALANQUE

Os homens de imprensa, pelas circunstâncias melinDr.osas em que o próprio ofício os coloca, já pela franqueza, já pela violência de linguagem, já pelo abalo ocasionado com a repercussão das suas opiniões, etc, etc., estão, de vez em quando, envolvidos em polêmicas crudelíssimas ou em escaramuças que não duram mais do que as clássicas rosas de Malherbe.

O caso em que agora andam enredados Othon D’Eça e Anfilóquio Gonçalves é bem um paradigma do que acima disse.

Othon D’Eça, pelas colunas desta revista de que é um dos diretores, esboçou mui de corrida uma opinião, inteiramente pessoal e ligeira - sobre a poesia em Santa Catarina. Foi às do cabo. De classificação de valores não tratou: fez apenas duas exceções. Em uma nota escrita sobre o joelho, acerca de um assunto melinDr.oso, pode ser leviano; mas, injusto, não...

Em resposta a essa nota, a gazetilha hebáomadária comercialmente dirigida pela figura imensa e oca de um apedeuta, disse qualquer coisa, de que já me não recordo, em defesa dos poetas e poetisas que Othon D’Eça tivera a infelicidade de não considerar consagrados. Isso, porém, sem assinatura, ou sob pseudônimo.

Othon D’Eça, pelo Estado, explicou-se como melhor entendeu, e, segundo é do seu feitio, salpicou de ironia a explicação. Por baixo - a sua assinatura.

Foi quando Anfilóquio Gonçalves, irritado pelas expressões usadas por Othon D’Eça - que, aliás, não individualizara o seu arrazoado com a publicação de nomes - se voltou contra ele, o agarrou gráfica e metaforicamente "pela orelha" e o entregou ao tresloucado julgamento da "Opinião Pública", como se faz a um criminoso vulgar ou a um gato morto. Além disso, tachou-o, sem rodeios, de ignorante em matéria de vernáculo, pois que chegara a perpetrar algumas cacografias e a empregar certos termos desconhecidos pelo Dicionário de Cândido de Figueiredo (*). Mas, o que é interessante é que, justamente no período onde apelava para a autoridade do filólogo lusitano, Anfilóquio Gonçalves cometia imperdoável solecismo. Dizia ele: "Othon D’Eça... escreve, vários termos eu até o douto Cândido de Figueiredo desejaria conhecer a significação".

Ademias, grafa ‘poetisa’ com ‘z’, o que não tem justificação possível - e acentua, também injustamente, o o do termo ‘agressor’.

Delicadíssimo é esse polemicar no terreno da gramática. Tem-se de andarás apalpadelas, meticulosamente, como quem lida com objetos de cristal. Do contrário, adeus! Perde-se a vez e o adversário nos tosa a mais não querer.

Não nos desviemos, porém.

Replicando a esse artigo diretamente lançado contra a sua pessoa, Othon D’Eça publicou Uma carta e um conselho,obraprima de sarcasmo, que, pela brilhante violência, lembra certas páginas de Fialho [d'Almeida}. É, além disso, escrita com absoluta correção gramatical e sintática, com períodos cheios e harmoniosos - o que nos demonstra duas coisas: primeiro, que Othon D’Eça, do Cinza e Bruma para cá, tem evolvido sobremaneira em precisão de linguagem; segundo, que as ligeiras deficiências ortográficas, notadas por Anfilóquio Gonçalves no primeiro artigo dele pelo Estado, só se podem atribuir a uma única e atabalhoada revisão, feita apenas na página, no instante em que tem de ser metida na máquina. (Pois, tal, de fato, aconteceu: revisão de última hora!).

Em suma: o pecado único dessa Carta é ter aludido ao defeito físico de Anfilóquio Gonçalves.

Também este não criticou o caráter de Othon D’Eça, pondo-lhe em dúvida a inteireza? Não é isso, acaso, alusão a defeitos morais? E defeitos por defeitos, tanto são feios os morais como os físicos.

Eis aí o que me disse um pessimista. Talvez não tenha razão!

A Carta de Othon D’Eça, entregue à redação do Estado,foi publicada 2°-feira, 8 do fluente, isto é, no dia seguinte ao da partida do autor para o Rio.

Ausente Othon D’Eça, estaria terminada a questão? Qual!

A11, pelo mesmo jornal, torna Anfilóquio Gonçalves à liça. No primeiro artigo, agarrara, em letras de forma, a orelha de Othon D’Eça; no último, chama-o de "boçal, perverso e covarde" e afrontosa mente promete sová-lo "a chicote"...

Essas atitudes e essas aemaças só podem ser mantidas e cumpridas por um indivíduo robusto e no uso pleno de todos os seus órgãos, membros e apêndices... Ora, o sr, Anfilóquio Gonçalves - digo isto sem o menor intuito de o vexar - além de ser fisicamente mais fraco do que Othon D’Eça, carece do braço esquerdo. Logo, a sua ameaça, sobre ser forte, é perigosa para ele mesmo... Repito: o que aí fica não é, absolutamente, um vexame forgicado para amesquinhar o Anfilóquio Gonçalves, mas uma observação feita por quem já está farto e refarto dessas rusgas de imprensa.

O mesmo pessimista que emitira a azeda opinião acerca dos defeitos físicos e morais, rosnou, ao terminar a leitura do Boçal, perverso e covarde!De Anfilóquio Gonçalves:

Bolas! Ameaçar de chicote a um homem que está a cem milhas de distância, não é grande coragem.

Assinado V (Altino Flores)

(in Terra n. 20, 14 de Novembro de 1920, p. 11-12)

PERFIS

FREDERICO SCHILLER

Minhas Senhoras,

Meus Senhores,

Em Marbach - pequena cidade sobre o Neckar, tomada e incendiada pelos Franceses em 1693 e que também foi berço do astrônomo Tobias Mayer - viu João Cristóvão Frederico Schiller a luz do dia, em 10 de novembro de 1759.

Filho do cirurgião João Gaspar Schiller, militar frio e severo, teve por mãe Isabel Dorotéia Kodweiss, que, bastante instruída e amando a boa leitura, o ensinou a ler e logo lhe pôs nas mãos, como livro de encantamento, a Messíada.

O pastor Moser, que, em seguida, o recebeu como aluno, achou-o facilmente acessível à doutrina evangélica, talvez devido à influência do poema de Klopstock.

Quando foi mandado estudar a Ludwigsburgo, era ainda um rapaz tímido, que se perdia em longos devaneios e com quem os mestres não simpatizavam muito. Ele bem o sentia... Por isso, procurava a solidão, em longos passeios através dos campos, se o tempo era bom; ou insulava-se no seu quarto, se o frio ou as chuvas o não deixavam sair.

Encontrou, porém, um amigo, que afinava pelos mesmos sentimentos. E eram, então, conversas sem fim sobre textos bíblicos ou estrofes da Messíada.

Quando os pais lhe falaram em fazê-lo pastor luterano, Schiller concordou. Mas, nessa época, o Duque Carlos-Eugênio de Wurtenberg desviou-o desse pendor, fazendo com que ingressasse na Karlschule, que acabava de fundar como "forja de soldados, médicos e magistrados".

Uma vez ali, sentiu Schiller as durezas do regime educacional adotado, o qual não permitia leituras outras que não as do programa da Casa. Violando, porém, tal rigor, leu ele, às escondidas, as VidasParalelas, de Plutarco, e várias tragédias de Shakespeare, sendo que Hamlet, sobretudo, o maravilhou...

Não era dos melhores estudantes de Medicina e Direito. Porém, como o seu gosto da literatura já se fazia notar, deram-lhe, certa vez, a honrosa incumbência de montar, em homenagem ao Duque, a peça Clavigo, de Goethe, desempenhando, ele mesmo, um dos principais papéis. Mas foi infeliz na representação e teve de reconhecer que não possuía bossa para ator Dr.amático.

Foi quando travou amizade com Cristiano Frederico Daniel Schubart, adversário da Igreja e dos príncipes e com quem se embrenhou em leituras envolventes, entusiasmando-se ambos, em fraternal arrebatamento, ante as páginas de Salústio, que narram a conspiração de Catilina, e as eletrizantes Memórias do Cardeal de Retz.

Entregando-se com afã à composição literária, elaborou o Drama Os Salteadores, para o qual não encontrou editor. Desejoso, porém, de o ver em letra-de-forma, tomou dinheiro emprestado e fê-la imprimir por conta própria (maio de 1781).

Era, então, cirurgião de granadeiros, quando conseguiu fosse a peça levada à cena. Nessa noite (13 de janeiro de 1782), escapa do quartel e vai, sem licença, assistir à representação. Isso lhe custou quinze dias de prisão no Regimento. E essa quinzena de reclusão, passou-a ele a evocar, saborosamente, os aplausos estrondosos que haviam coroado o espetáculo...

Conhecem todos a série de suicídios gerada pela leitura dos Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe. Semelhantemente Os Salteadores levaram não poucos moços citadinos a viver nas florestas, arvorando-se, como os bandidos do Drama, em "julgadores da sociedade corrupta".

É interessante notar que, enquanto o público aplaudia ardentemente o Drama, o próprio Schiller publicava no Würtenbergisches Repertorium der Literatur um artigo anônimo em que dizia: "Se desejas saber francamente a minha opinião, dir-vos-ei que essa peça, apesar de tudo, não é uma peça de teatro. Se se cortarem os tiros e os golpes de sabre, as ruínas e os incêndios, ela é pesada e cansativa para a cena. Pareceu-me, também, que havia enorme acumulação de fatos, o que prejudica a impressão geral. Com essa única peça. Poder-se-iam fazer três, e cada unha delas produziria maior efeito".

É o autor criticando-se a si mesmo, com paradoxal sinceridade...

Se, em 11 de janeiro de 1787, cai redondamente a sua tragédia republicana A Conjuração de Fiesco, obteve, em compensação, caloroso êxito, três meses após, a tragédia burguesa Intriga e Amor, dentre cujos personagens avulta, jovialmente recortada, a figura inesquecível do músico Miller.

Schiller não deixou nunca de poetar. O teatro, sobretudo, continuava a tentá-lo. Perante Carlos-Augusto, na corte de Darmstadt, fez a leitura de Dom Carlos, Infante de Espanha, impresso em 1787, e no qual já alguém quis ver "um pendant político-filosófico do Nathan, de Lessing.

Em sua passagem por Weimar, conheceu HerdereWielaná.

Depois de haver escrito, em Ingolstadt, o primeiro e único volume da História da Revolta dos Paises-Baixos contra os Espanhóis, foi apresentado a Goethe. Este, já curado dos arrebatamentos do Sturm-und-Dr.ang, havia chegado da longa viagem à Itália, donde votara encantado com a luz e as paisagens mediterrâneas.

Schiller, que vivia mais para as emoções da alma do que para o prazer dos sentidos, escutou-o sem se comover. Tal frieza não agradou ao poeta do Fausto.

O Dramaturgo dos Salteadoressentiu, entretanto, que estava diante de uma criatura extraoráinária, capaz de harmonizar as belezas da vida com os mais altos sentimentos estéticos. Pensou, naturalmente, em ser como ele, não imitando-o, mas igualando-o no esforço original por atingir o ideal de plena Beleza artística.

Goethe fez todo o possível para que Schiller fosse o sucessor de Eichhorn na cadeira de história, em lena. Acha Baumgartner que havia nisso um "cálculo egoísta" do autor de Fausto, que desejava vê-lo dependendode um cargo funcional e sem tempo de se dedicaraà carreira literária.

Schiller, por essa época, realmente, considerava a Goethe um "virtuose do egoísmo". De fato, em carta de 2 de fevereiro de 1789, escrevia ele a Koerner: "Goethe possui o talento de cativas os homens e de os obrigar por grandes e pequenas atenções, porém sabe guardar inteira liberdade. Manifesta a sua existência por meio de benefícios, mas à maneira de um Deus, sem propriamente se dar... Também eu o detesto, embora ame o seu espírito com todo o coração e tenha a seu respeito a opinião mais elevada".

Por isso era fruto da incompreensão motivada apenas pela diferença de posição entre as duas grandes almas. O gesto de Goethe era mais uma prova da larga simpatia humana que o fazia, comumente, dar a mão aos infelizes. Schiller, passando privações, carecia de amparo; Goethe vinha generosamente ao seu encontro.

Desfeitas as sombras suspeitosas, profunda amizade brotou entre os dois gênios - amizade essa que se materializou no monumento erguido em Weimar; onde eles, lado a lado, se apresentam bem caracterizados nas suas feições próprias: Goethe sereno, olhando o mundo como se lhe conhecesse todos os segredos e todas as belezas; e Schiller alçando a fronte inquieta, como se procurasse no céu alto ou no horizonte longínquo a suprema inspiração.

Já encarregado das lições de história em lena, vai ele um dia a Rudolfstadt e conhece Luísa Carlota Antonieta, a mais nova das duas filhas da Senhora De Lengefeld, com ela casando-se em 22 de novembro de 1790.

Com os estudos históricos, entremeava Schiller a leitura de Sófocles, Racine e Shakespeare, sonhando a criação de um teatro original, que fosse, ao mesmo tempo, cosmopolita e alemão.

Foi ao elaborar a Historia da Guerra de 30 anos que, defrontando-se com a figura de Wallenstein, pensou em escreverogrande Drama, desdobrado na célebre trilogia: O Campo de Wallenstein - os Piccolomlni -A Morte de Wallenstein, da qual diz um crítico: "O agente sobrenatural que determina a ação em Wallenstein, ou, pelo menos, que influi nas determinações da personagem principal, é a astrologia, a crença nas estrelas funestas ou propícias, reveladoras dos desígnios de Deus. É a fatalidade antiga transportada ao seio da alma humana".

Não era uma obra perfeita, do ponto-de-vista cênico; mas inaugurava "uma era nova na história do teatro alemão".

As velhas crônicas continuam a inspirá-lo. Assim, escreveu Maria Stuart, A Donzela de Orleães e A Noiva de Messina, de êxito oscilante, apesar de belas.

Porém, no gênero, a sua obra principal foi, talvez Guilherme Tell, representada em Weimar a 1719 e 24 de março de 1804, e várias vezes em Berlim no mês de julho seguinte. A peça foi escrita, quase sem descanso, em seis semanas, quando Schiller já tinha o organismo assustadoramente debilitado. Para não adormecer, bebia, a cada instante, grandes xícaras de fortíssimo café. Segundo um historiador da literatura alemã, "Schiller havia feito para a cena de Weimar uma redação especial em que suprimira o papel de

João, o Parricida, para não lembrará Grã-duquesa Maria Paulowna, da Rússia, que acabara de casar com o príncipe herdeiro de Weimar, o assassínio de seu pai, o Czar Paulo I.

Evidentemente, o juízo formulado por Luís Boeme sobre o caráter de Guilherme Tell como personagem histórico é inaceitável. A seu ver, o protagonista do Drama não passa de "um grande filisteu"...

Pouco depois, atacado de súbita febre pulmonar, Schiller não pôde mais erguer-se. Desejava ultimar outra composição: Demetrius. Tinha dois atos prontos. Como levar a cabo a obra? Impossível.

A Senhora Henriqueta de Volzogen, mãe de um seu antigo condiscípulo, chamada pela esposa do poeta, foi vê-lo. Era isso em princípios de maio de 1805.

Inclinando-se sobre o leito do enfermo e dominando a emoção que a sufocava, perguntou-lhe com voz doce:

Como está passando?...

Cada vez mais tranquilo - murmurou Schiller. Agora muitas coisas me parecem mais claras.

No dia seis, começou a pronunciar palavras sem nexo. Às nove, pela manhã, entrou em delírio, repetindo, de quando em quando, frases de Demetrius, a obra inacabada; e às 3 horas da tarde expirou.

Tinha pouco mais de 45 anos.

Seu enterro foi pobre, sem acompanhamento. "Uma das maiores glórias da literatura alemã e universal - disse alguém - não recebia, sequer, ao morrer, as honras que se prestam ao mais humilde filho do povo".

A sua obra, apesar de não ter a variedade e correção estética da de Goethe, está lastrada por evidente substância filosófica. Inclusivamente o seu teatro. E é, ainda, um dos mais belos tesouros da Humanidade.

Ao contrário do que muita gente possa crer, os poemas e Dramas schillerianos não são totalmente estranhos ao público brasileiro.

Por exemplo, o poema Os Deuses da Grécia, escrito em 1788 e reescrito em 1793, foi posto em vernáculo em 1870 por Machado de Assis, que viera a conhecê-lo através de versão francesa. Tobias Barreto traduziu A Luva,de tamanha emoção Dr.amática. E Bernardo Taveira Júnior passou para o nosso idioma OCanto do Sino, escrito em 1799, e que Alexandre de Humboldt tanto apreciava.

Do seu teatro, podemos citar o Drama Os Salteadores, que - segundo refere Schiichthorst em seu livro de memórias intitulado O Rio de Janeiro tal qual é, traduzido por Gustavo Barroso e Emmy Dodt - foi encenado no "Real Teatro de São João", da Corte, por uma companhia luso-brasileira.

Maria Stuart, uma das peças mais populares de Schiller, foi levada à cena, também no Rio de Janeiro, em 1869, pela grande atriz Adelaide Ristori, que ali tornou a representá-la em 1874. Existe tradução desse Drama editorada pelos Irmãos Pongetti e de autoria de E. R Fonseca. Manoel Bandeira igualmente passou para o vernáculo essa admirável composição que hoje constitui uma das jóias do repertório de Cacilda Becker.

Para Schiller - no dizer de Carlyle - "a literatura verdadeira envolve a essência da filosofia, da religião, da arte - de tudo, em suma, que fala à parte imortal do homem. Ela é, ao mesmo tempo, a filha e a guardiã de tudo quanto, em nossa pessoa, é espiritual e elevado".

Lemennais, é verdade, censurou-o por não haver compreendido as "leis severas do teatro francês" e por haver procurado imitar Shakespeare sem possuir a "poderosa originalidade do poeta inglês". Mas faz-lhe justiça quando reconhece o seu nobre senso histórico e, sobretudo, o seu alto sentimento moral.

Madame de Staël, porém, disse dele, entusiasmadamente: "A consciência era a sua musa, musa que não precisa ser invocada, pois que a escutamos sempre, se uma vez foi escutada. Ele amava a poesia, a arte Dr.amática, a história, a literatura por si mesma. Se houvera resolvido não publicar as suas obras ainda assim poria nelas o maior apuro. Nenhuma consideração - nem tirada do êxito, nem da moda, nem dos preconceitos, nem de tudo quanto vem dos outros - o teria feito nunca alterar os seus escritos. Porque os seus escritos eram ele, exprimiam a sua alma; e ele não concebia a possibilidade de mudar uma única expressão, se o sentimento interior que o inspirara não houvesse mudado. Schiller, ao entrar no mundo, prejudicara-se por desvarios da imaginação; mas, com o vigor da idade, recobrou aquela pureza sublime que nasce dos altos pensamentos. Nunca transigiu com os maus sentimentos. Vivia, falava, agia como se os maus não existissem".

E, ainda com Carlyle, concluamos: "Se dúvida, a sua morte foi prematura; mas aquele que a estuda lembrar-se-á da exclamação de Carlos XII, em caso diferente: - "Não é ter vivido muito, se conquistei reinos?" Os reinos que Schiller conquistou não foram a favor de uma nação única, à custa da dor de outra; não foram absolutamente manchados com o sangue de patriota nenhum, nem com as lágrimas de nenhuma viúva, de nenhum órfão: são reinos conquistados sobre os mornos impérios das Trevas, para acrescer a felicidade e dignidade e força de todos os homens; são formas novas de Verdade, novas máximas de Sabedoria, novas cenas de Beleza, ganhas sobre o vazio e informe Infinito; um bem eterno para todas as gerações da Terra".

Palestra proferida no Festival de Schiller, aos 6 de novembro de 1959, no salão nobre da Faculdade de Direito de Santa Catarina.

Livreto editado pelo INSTITUTO DE CULTURA GERMÂNICA DE FLORIANÓPOLIS

HENRIQUE DA SILVA FONTES

(Carta de Altino Flores a Carlos da Costa Pereira)

"Florianópolis, 6 de abril de 1966,

Prezadíssimo Carlos,

Recebi anteontem a sua carta de 31 áe março p.p., em que V., entre outros assuntos menos importantes, alude pesaroso à morte do nosso "amigo e mestre" Henrique Fontes. Foi o golpe que este ano nos reservou, como o ano passado nos reservara o da morte do sempre lembrado Othon D’Eça.

Fontes, ao meu ver, era o catarinense mais ilustre (quero dizer: ilustrado) que já teve a nossa terra. Esse qualitativo ilustre vai cada vez mais depreciando-se, desde que qualquer político embusteiro ou qualquer mascate da Literatura, aproveitando-se das oportunidades felizes e de infelizes de jornalistas venais, conseguem subir ao galarim da fama populaceira e ser batizados de ILUSTRES para todo o sempre... O Fontes não era dessa estofa. Ilustrado, sim, era ele por ser culto, no mais belo sentido da palavra V., que tanto o admirava e a quem ele tanto queria, dentro da mais forte amizade, bem sabe disso, pois era com V., no seu gabinete de Diretor da Biblioteca Pública que ele ia trocar ideias epareceres acerca dos assuntos históricos, tiiológicos, literários, etc., que, no momento, a qualquer dos dois preocupavam.

Eu ignorava que ele estivesse recolhido ao Hospital de Caridade. Submetido ali a diferentes exames clínicos, como eu soube depois, apuraram-se, em alguns deles, resultados normais; noutros, resultados satisfatórios. Não havia motivos de alarme. Seus filhos, no entanto, insistiram para que ele ficasse alguns dias em repouso no Hospital. Na maDr.ugada de sábado, 19 de março, foi acometido de edema pulmonar. Imediatamente medicado, melhorou. Ao entardecer daquele dia, porém, nova crise sobreveio, desta vez mais violenta e rebelde a toda medicação. A pequena melhoria fora apenas um estreito corredor para a morte, ocorrida às 22 horas e 15 minutos de terça-feira (22 de março).

A tristíssima notícia, quem me deu foi o Walter Lange, ao encontrar-se comigo, às 7 horas de quarta-feira, no Mercado, acrescentando que a ouvira através da Rádio Diário da Manhã.

O enterro do nosso querido amigo foi a consagração de uma vida limpa, modelar, fecunda sob vários aspectos, particularmente nos círculos culturais do nosso Estado, nos quais imprimiu luminosos traços com o seu variado e primoroso saber. Dezenas e dezenas de carros formaram extensa fila, repletos de amigos e admiradores. No ato do sepultamento, no Cemitério de Itacorubi, discursaram: o Des. Medeiros Filho (Provedor da Irmandade do Hospital do Senhor dos Passos), o Des. Ferreira Bastos, o Dr.. Ademar Gonzaga, o Nereu Corrêa (pela Academia), o Des. Belisário Ramos da Costa, o Osvaldo Cabral e o Padre Bianchini. O discurso lido pelo Nereu foi bom; o do Osvaldo Cabral (lido também) foi comovente.

Como V. sabe, vinha o Fontes trabalhando afincadamente na, em todos os sentidos, grande monografia sobre a Irmandade do Senhor dos Passos e o Seu Hospital, e aqueles que os fundaram, que era para estar impressa em janeiro de 1965, e só em fevereiro do corrente ano saiu do prelo da Imprensa Oficial do Estado. A tiragem foi de mil exemplares, pelos quais pagou o Fontes, do próprio bolso, um milhão de cruzeiros, e ainda doando à Irmandade, para serem vendidos em seu benefício dela, setecentos exemplares. Ele lhe ofereceu um exemplar; eu também recebi dele um, em data de 21-2-66. O Fontes nunca foi um calígrafo; mas, na dedicatória que apôs ao volume que me enviou, nota-se o talhe tremido das letras e o cansado boleio da assinatura. Sintomático!

Como se trata de alentada brochura, em tipo miúdo, e, sobretudo, por ser a matéria (ou, melhor: a maneira como foi tratada a matéria) variada e rica, ia eu fazendo a leitura com deliciada lentidão, tomando preciosas notas, aprendendo muita e muita coisa. Esperava, no final, conversar com o Fontes, para o felicitar pelo seu magnífico trabalho e trocar ideias sobre certas passagens do livro. A sua inesperada morte, porém, baldou essa intenção.

Por mais de uma vez, me dissera ele, em conversa, que admirava profundamente Alexandre Herculano, já como historiador, já propriamente, como prosador. Não ouso contestar que na suculenta monografia, a que me venho referindo, transpareça tal ou qual influência do "solitário do Vale de Lobos". V., tão bem quanto o Lucas Boiteux e o Osvaldo Cabral, afeitos a esse gênero de pesguisas, está habilitado a rastrear semelhante influência, tendo em vista a massa enorme de documentos originais ou colhidos, em segunda mão, de outros autores, para a feitura do inestimável trabalho, no qual se encontram minúcias que, porventura, poderiam ser deixadas de lado, mas, todavia, pela distribuição equilibrada e jeitoso enlaçamento na trama da narrativa, conseguem integrar- se harmoniosamente na estrutura geral da obra. É que o Fontes quis ser exatíssimo, e conseguiu-o plenamente. A severidade e mestria do historiador casam-se ali com a simplicidade corretíssima e elegantíssima do prosador. Falando da Irmandadedo Senhor dos Passos e seu Hospital, ressuscitou ele "parte da história da gente da antiga Desterro e sua vida social", como diz V. Ali não se encontram lances excepcionais que requeressem soleníssimos brilhos de estilo; mas, o que teve de ser inventariado, certo que o foi com meticulosa probidade. Nisso, principalmente, se vislumbram os métodos e processos herculanianos. V. não é do mesmo parecer?

As Letras catarinense ficaram devendo-lhe, além de outras produções, os criteriosos volumes em que recolheu: a conferência lida no Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, em 29-91938, sobre O Conselheiro José Mascarenhas Pacheco Pereira de Meio, o estudo biográfico-crítico sobre Lacerda Coutinho (conferência no referido Instituto, em 15-12-1942) e a biografia de O Irmão Joaquim, o Vicente áe Paulo Brasileiro (1958). Tudo isso V. conhece, e sabe quanto vale. Ponho-o, no entanto, em relevo, porque é justamente a parte do espólio literário do Fontes que mais aprecio, não esquecendo o seu último trabalho, que, me parece, lhe exauriu as derradeiras energias.

Ele nunca manejou a pena visando a esfuziantes efeitos fraseológicos. Seu escopo, era, como já disse, a simplicidade, a clareza, a elegância não sofisticada. Mas o seu espírito sabia onde e quando aplicar uma pitadinha de sal, como fez, discretamente, naquele trecho da monografia sobre Lacerda Coutinho (p 57-58), em que emparelha as "polidas virgens" românticas dos idos de Casimiro de Abreu e Soares de Passos, e as "requeimadas garotas modernas", e alude ao tempo em que "era moda chorarem os poetas", os quais encontravam consonância no sentimentalismo das "donas e donzelas desterrenses", abundantemente "lacrimosas"... É nessa monografia mesmo que ele se revelou um crítico de muita argúcia e sensibilidade, não arrotando descabidas terminologias filosóficas, mas cingindo-se objetivamente ao assunto, com perfeita compreensão do métier, — em que, entretanto, não era profissional.

Em tudo quanto escreveu, não me lembra ter encontrado nunca uma página descritiva, de brilhante colorido e palpitante relevo. A sua prosa, talhada em linhas severas, tinha ao mesmo tempo a nítida transparência do cristal e a fria robustez do mármore; era uma prosa criada para exprimir ideias e conceitos. Na expressão do seu pensamento era ele de um rigorismo e precisão exemplares. Não possuía (como V. e eu também não possuímos) a espontaneidade oratória, isto é, a faculdade quase milagrosa de, perante um auditório surdamente empapado de curiosidade e ironia, tomar determinado assunto e desdobrá-lo, de improviso, em períodos carregados daquela fascinante facúndia que eletriza, domina, arrebata os corações. Os seus discursos e mesmo os seus breves speetches de abertura ou encerramento de qualquer ato público ordinário nunca deixaram de ser lidos. Levava-os escritos, naturalmente porque receava embaraçar-se nervoso na tessitura e entrelaçamento dos períodos e, também, porque desejava traduzir as ideias numa forma não apenas vernaculamente perfeita, senão também exata, insusceptível de múltiplas interpretações.

Mas, voltando ao seu último livro: tenho a impressão de que, sendo o assunto originalmente religioso, quis o Fontes tratá-lo de uma maneira, por assim dizer, religiosa. Escoicinhado pela ingratidão e maldade de certa gente, golpeado tão profundamente pelas mortes sucessivas de uma filha casada, de um filho solteiro e da esposa (que por tantos anos jazera paralítica, mas que, ainda assim, continuava a ser para ele a "rainha do lar"), teve pressentimento do seu fim próximo, e então se lançou à realização de uma obra, cuja execução minuciosa, servindo-lhe de nobre e sagrado solaz em meio a tantos dissabores, ficasse como demonstração de amor aos fastos e tradições da sua gente e, acima de tudo, como acrisolada prova de fé na Religião que o embalara no berço e iria por fim levá-lo aos pórticos da Eternidade. Se não, meu prezado Carlos, repare na página 5 daquela obra, bem ao alto, acima do título, e verá ali, com a data inicial, a invocação "Veni, CreatorSpIritusV; e, na página 380, com a data final, a exclamação breve e agradecida: "Deo gratiasl" Isso indica um grande, extraoráinariamente grande sentimento religioso! Não sei se V. concordará comigo.

Seja como for, numa coisa creio estarmos acordes: e é que perdemos o catarinense mais culto do nosso tempo e o amigo cuja amizade deveras nos honrava pela inteiriça nobreza e indefectível lealdade.

Abraça-o, com a segura estima de sempre, oAltino Flores."

OTHON DA GAMA LOBO D’EÇA

[In Memoriam]

NOTA DE SIGNO: Devidamente autorizados pelo autor, publicamos, abaixo, uma carta do Prof. Altino Flores endereçada a Carlos da Costa Pereira, logo após a morte de Othon Gama D’Eça. É um depoimento valioso, de quem compartiu, durante mais de quarenta anos dos ideais literários do autor de Homens e Algas, como amigo e companheiro de geração, colaborando, inclusive, na direção da Academia Catarinense de Letras, da qual foi Secretário Geral durante a presidência de Gama D’Eça.

"Florianópolis, 4 de abril de 1965

Prezadíssimo Carlos,

Sua última carta tem a data - já agora, quase antediluvianade 19 de fevereiro. Nela me diz V. que eu possivelmente devia estranhar a demora que tivera em responder à que lhe escrevi em 19 de janeiro. Demora por demora, estamos quites, caríssimo Carlos. Você deu as suas razões. Que direi eu?... Nós, velhos, já não temos segurança nenhuma na turva correnteza do tempo, scilicet da vida. Os pequenos azares, contratempos e imprevistos que outroravencíamos com um simples gesto de quem enxota uma mosca, afiguram-se-nos agora insolentes problemas que nos derrotam. Diz-se que o envelhecer nos vai preparando para tudo, quando, afinal, não nos sentimos preparados para nada, inclusive para esse "baixar de pano" (Dr.amático? trágico? cômico?) que é a morte.

Lembra-me, a propósito, uma estância de Racan, que o meu velho professor de Francês, certa feita, nos deu para decorar, declamar e analisar, e da qual apenas três versos me ficaram na memória:

"Qu'on fasse de la mort un mal épouvantable

"En elle je ne vols qu'un moment délectable "Qui consomme nos biens et metfin à nos maux".

Poeta valente, em bem escandidos versos! Mas eu sempre desejaria saber com que cara teria ele recebido, na realidade, a visita da Ceifeira inexorável. Ainda quando ela vem e, ao invés de pôr-se a cutucar-nos com a pontinha da segadora, nos desfecha logo o certeiro, o fundo, o definitivo golpe, não é (talvez...) nada: somos derrubados sem saber por quê, como um pinheiro que o raio abateu.

Era assim que Renan desejava acabar. O autor das Origens do Cristianismo, no entanto, agonizou sob as lentas punhaladas de atroz pneumonia. Mas o nosso amigo Othon da Gama Lobo D’Eça, o Baby da nossa intimidade - teve o fim por que suspirava o historiador francês, o qual confessava carecer de feitio para morrer, desvairado de heroísmo, numa trincheira ou numa barricada.

A morte de Othon foi uma das maiores tristezas que já me lancearam no decurso destes meus setenta e três anos. Agora mesmo, caríssimo Carlos, ao escrever-lhe isto, sinto que as lágrimas me empanam os olhos.

Ele faleceu, mais ou menos às 22 horas de domingo, 7 de fevereiro. No dia seguinte, quase à hora do enterro, o Gustavo Neves me lembrou pelo telefone que, sendo eu, como Secretário Geral, a segunda pessoa da diretoria da Academia (da qual o Othon era Presidente), competia-me falar, em nome dela, no ato do sepultamento. Tive ainda tempo de rascunhar algumas frases, cuja frouxidão denuncia não apenas a pressa com que forampostas no papel, mas, sobretudo, o confuso estado do meu espírito, naquela dolorosa conjuntura.

Othon D’Eça foi, talvez, a mais original figura da geração que sucedeu à de Cruz-de Sousa e Virgílio Várzea. Nunca aprendeu com segurança a sua língua, e fez-se escritor de fina sensibilidade; nunca estudou pintura, e pintava apreciavelmente; nunca se enfronhou nesse "hieróglifo sonoro" que é a música, no dizer de Moréas, e, no entanto, musicava com galhardia ao piano.

Como escritor, foi, sempre, um herético em ortografia. Começou por imitar a maneira de Coelho Neto, com alguma felicidade; passou, depois, a imitar o Eça, com felicidade bastante; e ultimamente (veja Homens e Algas] imitava o Raul Brandão (dos Pescadores e das Ilhas Desconhecidas), com extrema felicidade. Aquela excelente criatura obrava assim, por ignorar o talento original com que Deus o dotara. Tudo, porém, se lhe perdoava, porque era bom, afável, generoso, desinteressado. Conversador inestancável, parece-me estar a vê-lo numa roda de amigos - alto, moreno, bem feito de corpo, embora magro, nariz forte, cabelos meticulosamente tingidos de preto - espalhando gestos para a direita e para a esquerda, entre ironias e paradoxos, como se desejasse monopolizar todas as atenções; e era então que se lhe poderia aplicar aquela frase de Saint-Simon, creio eu, a respeito de Fénelon:

7/ fallalt faíre éfort pour cesser de le regarder"

Não faz muito tempo, em sua casa, revelou-nos ele - ao Henrique Fontes, ao Neceu Corrêa e a mim - que estava a escrever as "memórias" do "grupo" (leia "geração") a que ele e eu pertencêramos, mas que, todos, aparecíamos ali sob pseudônimos. A que advertiu o Fontes — com aquele jeitinho meio irônico que nós lhe conhecemos, a coçar o bigode com a ponta do indicador direito - que mais acertado seria apresentar-se cada qual com o seu nome próprio, sob pena de as "memórias" virarem nebulosa charada ou secreto baile de más caras... O Othon ficou um instante pensativo e disse por fim:

-Você parece que tem razão. Fontes. Vou pensar nisso... Vou reler o que já está escrito, para ver a mudança que se fizer necessária...

Quando, atacados de comichões literárias, lá pela altura dos nossos 18 ou 20 anos, começávamos a rabiscar para os nossos próprios jornalzinhos, cuja impressão nós mesmos nos cotizávamos para pagar, escreveu Baby esta frase de tão delicado ineditismona abertura de uma página impressionista: "Dia crepuscular de inverno"... Uma gazetinha galhofeira chamada/A Thesoura (com th!) meteu a riso a frase, observando que não há dias crepusculares, visto que o crepúsculo é apenas uma fase de transição (matinal ou vespertina) do dia; podia-se dizer: hora crepuscular, luz crepuscular, etc. mas, nunca: dia crepuscular.

O Baby não teve que responder; nem ninguém, igualmente, achou, na ocasião, resposta nenhuma, apesar de sentirmos que a frase era bela, de uma beleza palpitante de melancolia.

Nas minhas leituras, através dos anos, topei, muitas vezes, o adjetivo crepuscular, ora empregado com estrita propriedade, ora usado com menor ou maior liberdade de significação, sem que jamais me passasse pela cabeça a ideia de recolher e colecionar todos esses achados. Mas, felizmente, três ficaram registrados; encontrei-os agora, num retalho de papel, entre as páginas do Cinza e Bruma, do Othon. Vou recopiá-los aqui, para que V, os aprecie:

O primeiro vem de Oliveira Martins: "realidade crepuscular" (História de Portugal, 99 edição, tomo II, página 215);

O segundo vem de Benedetto Croce, infelizmente não no original (crepuscolare), mas em tradução espanhola, que acredito ser, nesta passagem, ao pó da letra: "visión crepuscular"... (Breviário de Estética, trad. castelhana de José Sanchez Rojas, lección cuarta, página 136;)

O terceiro vem de Albert Thibaudet: "montagnes crépusculaires..." [Les images de Grèce, pág. 21].

Pela ousadia, particularmente, esta frase de Thibaudet parece-me tão poética quanto o "dia crepuscular de inverno" do saudoso amigo Othon D’Eça. Não lhe parece?

Recordo tudo isso, prezado Carlos, somente em louvor dele que, por ser tão bom, tão amável, tão confiante, não sabia (ou não podia?) resistir à embriagadora influência das coisas belas que em outros autores se lhe deparavam. Que soberbo artista não seria ele, se se tivesse desvencilhado do visco de certas leituras impressivas e temperasse as suas emoções estéticas na forja da própria originalidade! Seja lá como for, temos de reconhecer que deixou páginas extraordinárias, dignas de uma antologia.

No seu livro ... aos Espanhóis Confinantes(1929), há belos trechos transbordantes de cor e movimento. Se V. o tem ao alcance da mão, queira reler as páginas 93-95, em que ele descreve uma "picada" na mata hirsuta. Outro quadro de nítidosrecortes é o que começa assim na pág. 220: "Passei um dia agradávei..." e vai até a página seguinte. Por duas vezes traça ele um paralelo entre o homem ilhéu e o homem serrano (pág. 118122 e pág. 228-137), acumulando muitas observações exatas e não poucas romanticamente deformadas, mas todas elas traduzidas numa prosa pinturesca, de sigularíssimo encanto (descontadas, é claro, as excentricidades gramaticais, de que ele mesmo ria com gosto quando os amigos lhas apontavam).

Não sei o que será agora da Academia Catarinense de Letras, cuja presidência ele vinha ocupando há vários anos, já com o mandato extinto e contra o que ninguém se insurgia, porque ele tinha muito amor àquele cenáculo, e porque o cargo qe presidente é um verdadeiro pau com formigas ou um rabo de foguete em que ninguém queria pegar... Ele era a Academia como o Fontes é o Instituto Histórico, - com a diferença de que este faz questão de que a sua eleição seja coisa efetivamente legal.

Esta carta já vai longa. Desculpe-me. É a única maneira de conversar com V., a quem abraço com a velha e sacra amizade.

ALTINO FLORES

In Signo - Revista da Academia Catarinense de Letras - N. 1, Janeiro de 1968, p. 13-17

LAÉRCIO CALDEIRA DE ANDRADA*

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Conheci Laércio Caldeira de Andrada, que contava dois anos mais do que eu, em 1906, por ocasião da abertura do Ginásio dos padres jesuítas (hoje "Colégio Catarinense"), no qual nos matriculamos. Lá foram entrando também Haroldo Calado, Othon D’Eça, Barreiros Filho, Jocelyn Viegas, Francisco Teotônio AlveSão José d’Acampora, para citar somente aqueles que, desde logo, se acamaradaram por afinidades das suas ingênuas pretensões literárias, milagroso fermento dos sonhos, aspirações e idealismos das nossas almas juvenis, enfeitiçadas pelo prestígio de famosos escritores estrangeiros, tais como Alphonse Daudet, Emile Zola, Guy de Maupassant, Paul Bourget, Edmoná e Jules de Goncourt, Pierre Loti, D'Annunzio, Gorki, Turgueniev e outros, em Portugal traduzidos e em Florianópolis vendidos pelo "Gabinete Sul-Americano" de Francisco de Assis Costa.

Quando, passado algum tempo, falei a Laércio em fundar uma agremiação estudantil para considerar e debater assuntos literários, apoiou ele com entusiasmo a ideia, surgindo dentro em pouco a "Centro Catarinense de Estudantes", cuja presidência quiseram os colegas confiar-me, por ter sido eu quem o projetara, - atenção essa, que, no entanto, recusei, indicando, ao mesmo tempo, para aquele cargo o nome de Laércio Caldeira. E ele foi eleito. O "Centro Catarinense de Estudantes" foi a primeira associação desse gênero aparecida em Santa Catarina. Apesar de legítimos e prestimosos os seus objetivos, infelizmente não conseguiu nunca sólidas bases nem funcionalidade progressiva, certamente pela desavisada inexperiência dos nossos verdes anos. Instalou-se, de início, numa casinha de porta e janela, hoje desaparecida, na Rua Álvaro de Carvalho; depois, em antigo prédio, na Rua Vítor Meireles; por fim, já decadente, em simples sala da casa de um padeiro, na Rua Jerônimo Coelho, onde ingloriamente se finou...

Reeleito presidente várias vezes e geralmente estimado pelos colegas, Laércio, entretanto, no exercício do seu cargo, teve de afrontar verdadeiros macaréus. A rapaziada, com suas extravagantes diabruras, levava-o às fronteiras do desespero, donde voltava logo com os nervos asserenados por fraternal indulgência. As sessões, por estranho que pareça, processavam-se em ritualística disciplina, sem embargo das risadas súbitas e gostosas que, a revezes, certos incidentes imprevistamente provocavam.

Todavia, foi lá que alvoreceram algumas das inteligências que, segundo se esperava, sucederiam ao "grupo" de Cruz e Sousa, Virgílio Várzea, Santos Lostada e Horácio de Carvalho (a que talvez se possa acrescentar Araújo Figueredo).

De uma tribuna rotunda como um púlpito e pintada de verde-abacate, plantada gravemente a um ângulo da sala de sessões, discursava-se com atrevida abundância sobre o que de mais surpreendente íamos descobrindo nas páginas dos diferentes autores caídos sob os nossos olhos ávidos, originando-se dessa derramada oratória os mais ousados assertos mistura dos aos mais chocantes desacertos...

Do alto dela, várias vezes falou Laércio Caldeira sobre O Ideal da Humanidade, fundando-se no Krausismo, de que absorvera noções num livro com aquele título, da autoria de Sanz del Rio e em tradução lusitana. Othon D’Eça fez o que lhe foi possível fazer para elucidar a "tese": Se os olhos veem com amor, o corvo é branco; se com ódio, o cisne é negro, encontrada numa seção de sermões do Padre Vieira, que eu lhe emprestara. Por minha vez, aventurei-me a considerar, cahin-caha, a veneranda figura de Jesus, dentro e fora da História. José d'Acampora, hoje pacato e sólido proprietário, mas naqueles tempos encharcado de Kropotkine até a medula, fez uma estrondosa Apologia da Bomba...

Foi assim que começamos a nossa juvenil caminhada no maravilhoso mundo das Ideias e das Emoções — entre debates, gracejos e rebeldias. Unia-nos leal camaradagem, mas nunca nos submetemos à rasoira das uniformidades e conformismos panúrgicos. Fomos como essas árvores que, num bosque, entrecruzam e emaranham as raízes no mesmo chão, haurindo o mesmo humo, mas cujos ramos não se misturam nem se confundem, cada uma delas erguendo a altiva fronde para receber as fecundas bênçãos do Sol e arrostar impávida a fúria das tempestades. Por isso mesmo, — bem era de esperar-se —, mais tarde, entre nós sobrevieram ásperos entrechoques de opiniões, possivelmente derivados de pontos de vista mal definidos ou meras arranhaduras de vaidades. Laércio Caldeira, como quase todos os do nosso "grupo", — uns mais, outros menos, — pagou também a ingrata alcavala. Ele e eu, por duas vezes, polemicamos em jornais. Mas tudo esqueceu. Desde muitos anos, depois que ele daqui se transferiu para Niterói, onde faleceu, mantivemos correspondência mais ou menos assídua e sempre afetuosíssima. A minha última carta, com que procurava animá-lo nos seus cruéis padecimentos, ele não a chegou a ler. A Morte não queria perder a sua hora.

Da já longíngua mocidade nossa, guardamos sempre as mais gratas lembranças. O nosso mais belo sonho era a Cultura literária. Para nós a Vida não tinha outros encantos senão os que ela nos pudesse proporcionar através do prisma iriante da Arte. Naturalmente, era-nos ainda incerto e débil o sentimento do Belo. Em tão refinado assunto, porém, tudo se pode desculpar aos moços. Barreiros Filho e Othon D’Eça, a princípio, rendiam fervoroso culto ao romancista de Inverno em Flor. Fascinado pela leitura das coloridas páginas de Os Gatos, sobre o saimento fúnebre do Rei D. Luís e sobre o violoncelista Sérgio, entusiasmou-se Laércio Caldeira por Fialho de Almeida, passando, sob sua influência, a observar as criaturas humildes e tristes que o mundo esmaga como uvas no lagar, com a diferença de que da fermentação desse mosto não ressumbram capitosos vinhos, mas tão somente lágrimas, amaríssimas lágrimas. Enquanto Jocelyn Viegas se deliciava comos romances de José de Alencar, Haroldo Calado chegava a decorar trechos e trechos do Cortiço e da Casa de Pensão. Eu, de mim, ia tentando convencer o velho e saudoso livreiro Pascoal Simone a mandar vir de Portugal os livros de Eça de Queirós...

Quando Laércio Caldeira, supostamente dentro dos moldes dos autores seus preferidos, publicou numa gazeta local as pinturescas "figurinhas" da Mascatínha, do Tio Militão e outras, percebeu-se ali o pulsar de um coração enternecido diante dos seres cuja existência é um misto aziago de humildade, desambição, paciência, fatalismo...

Não cheguei a encontrar a Mascatinha nas ruas da cidade, mas o Tio Militão, esse, era de toda gente conhecido. Baixote, magrelo, cabelos grisalhos, pele meio achocolatada, boca murcha e olhinhos apertados e oblíquos, tinha assim uns ares tipicamente mongolóides, Era acendedor de lampiões, dos velhos lampiões de querosene, protegidos do vento e da chuva numa espécie de caixa de viDr.o com uma de cujas faces móvel, e encarrapitados em esguias colunetas de ferro estriadas, de chatas bases octogonais solidamente plantadas às esquinas das principais ruas da cidade. Com a escada posta horizontalmente ao ombro, caminhava sempre pela sarjeta, silencioso, cabisbaixo, submisso ao cumprimento da sua singela obrigação. Como aparecia ao cair da noite, a molecada chamava-lhe morcego, coruja. Não lhe dava ouvidos o Tio Militão: despegava do ombro a escada e, encostando-a ao suporte do lampião, trepava, abria a portinhola de viDr.o, riscava um fósforo, acendia a morrinhosa torcida, graduando-lhe cuidadosamente a chama e, retomando a escada, rumava para outra esquina onde outro lampião houvesse. LaDr.ava-lhe na pegada a maldade dos garotos: —Morcego! Corujal Ele parecia surdo; mas, surdo, na verdade, não era: é que talvez estivesse mesmo convencido de ser feio como uma coruja e repulsivo como um morcego, — como ele, pobres criaturas de Deus, Veio depois a luz elétrica e Tio Militão desapareceu, inútil e esquecido. Laércio Caldeira procurou descobrir onde morava ele, pois queria conhecer mais um pouco da humilde história da sua modestíssima existência. Não o conseguiu nunca. E, inexplicavelmente, não mais voltou a traduzir, sob forma artística, a comovida observação dessas criaturas impiedosamente ferreteadas pelo Destino.

No Rio de Janeiro, onde trabalhou alguns anos como telegrafista, escreveu Laércio Caldeira para a Gazeta de Notícias pequenas "Impressões", nas quais se comprazia em neologismar à maneira do autor de Vida Irônica.Ao regressar a Florianópolis, ofereceram-lhe os amigos mais íntimos um almoço no antigo "Hotel Taranto", cordial homenagem que ele (já com arraigadas prevenções contra o álcool, o fumo, etc.) francamente declarou que somente aceitaria com a condição de se não servirem bebidas espirituosas. E foi assim que eu, incumbião de brindá-lo, em nome dos companheiros, ergui em honra dele uma cândida tacinha de gasosa...

Aqui, criou Laércio Caldeira o "Curso Prático de Comércio" e o "Ginásio José Brasilício" (no qual, por sua instância, durante alguns meses lecionei Francês) e fundou o Boletim Comercial.

Deveras aplaudidas foram sempre as conferências que em Florianópolis e na Laguna realizou, versanão assuntos literários, cívicos e folclóricos.

De quando em quando, reaparecia com artigos em jornais e revistas, já agora sem decalques fialhescos, mas discretamente influenciado pela elegante prosa de Oliveira Martins, que ele tanto passaria a admirar até o fim da vida.

Aliás, o periodismo local (e isto deve assinalar-se) frequentava-o ele desde os tempos do jornalzinho literário O Livro (fundado por Nelson Cunha em 1906 e meses após transformado em modesta revista), onde colaborava sob os pseudônimos de "Icariotis" e "Lucullus".

Propus-lhe, certo dia, formarmos um grêmio literário. Objetou ele que associação exclusivamente votada ao estudo da Literatura (ou Literaturas) seria de estreita finalidade; na sua opinião, devia também ter objetivos cívicos. Nasceu então o "Centro Cívico e Literário"; mas, dentro em pouco, dele me afastei, por motivos de ordem pessoal. A agremiação, da qual Laércio Caldeira foi presidente, fez muito barulho nos noticiários da imprensa. Quando o entusiasmo inicial estancou não houve civismo que a salvasse. Morreu.

A crença de Laércio Caldeira radicava-se na Denominação Protestante Presbiteriana, em que definitivamente se filiara, quando, pelos laços matrimoniais, se uniu a essa admirável Josefina Caldeira de Andrada — esposa modelar, indefesa e amantíssima.

O proselitismo ditado por suas convicções religiosas levou-o a promover, na sua terra, "congressos" de moços, onde se ventilavam argumentos evangélicos, bem como problemas éticose de outros gêneros. A seu convite, numa dessas reuniões, tive oportunidade de fazer o Elogio da Leitura.

Quando daqui se retirou com a família, fixando residência em Niterói, exerceu ali a advocacia e o magistério, ainda encontrando tempo para organizar e chefiar humanitária campanha de assistência evangélica aos presidiários fluminenses. Era metódico, regrado, meticuloso, pertinaz. Não desperdiçava os seus dias. Desde que o conheci, foi sempre assim.

Não sei se ele teria conservado a parte, que ficara inédita, do seu "estudo" publicado pelo matutino O Dia, de Florianópolis, em 1910, a respeito de Antero dos Reis Dutra. Mas deie temos em volume uma breve Introdução à História do Comércio Catarinense,igualmente impressa em Florianópolis, em 1920 e que deu motivo à nossa segunda polêmica (a primeira fora a propósito da atraente plaqueta Cinza e Bruma, de Othon D’Eça; e A "Igreja dos Fiéis", impressa em Niterói, em 1947.)

No vigésimo capítulo desse último livro, refere Laércio Caldeira, em traços nervosos, incisivos, de grande Dramaticidade, a matança ordenada por Villegaignon daqueles que, no insulamento do Forte de Coligny, perseveravam corajosos na Fé jurada. Talvez possa alguém advertir que à comovente narrativa falte perfeita isenção e clara objetividade histórica; mas, o que não se poderá negar é que nela avulta a mestria de Laércio Caldeira no versar assunto que na sua sensibilidade estética simpaticamente ecoasse.

A mão que desenhou fremente o sinistro episódio de Coligny, a Morte para todo o sempre a imobilizou; todavia, do nobre espírito, que a galvanizava, perdurará, entre os que o conheceram e o conversaram, a mais salutar e fecunda recordação.

Justo é, portanto, que nesta Casa, da qual foi Laércio Caldeira de Andrada um dos fundadores, nos tenhamos reunido para render à sua memória o nosso mais sentido preito de admiração e de saudade.

FRANCISCO BARREIROS FILHO

Francisco Barreiros Filhos está completando oitenta anos de idade, pois nasceu a 26 de setembro de 1891. A cidade de Tubarão foi seu berço. Daqui a pouco menos de cinco meses, se Deus quiser, estarei atingindo esse mesmo numeroso aniversário. Do ponto a que chegamos, podemos evocar largo passado. Vimos o Munão esbrasear-se nos fogaréus de duas grandes guerras, além de outras menores, onde o mesmo sangue humano formou e continua a formar lagoas inúteis... E quantas outras desgraças desabaram por aí! Quantos seres queridos levamos, entre lágrimas, ao cemitério! Dando-nos a sensação do Infinito, o Tempo nos está lembrando a curteza da Vida. Amiel escreveu: "É a vida um bem? Eis a questão. Seria melhor que não existisse o mundo? Tal é o problema".

Longa vida é sinal de Eternidade próxima. Com essa Eternidade misteriosa e silente, decerto não se apavora Barreiros Filhos, porque a Fé, com que o seu espírito se abroquelou, haverá de iluminá-lo e fortalecê-lo até o fim. Que Deus ainda por largos anos o conserve entre nós, que continuamos a admirar a firmeza do seu caráter e as sempre límpidas fulgurações do seu talento!

★ ★ ★ ★PAREI AQUI 17H07

Neste artigo comemorativo do aniversário de Barreiros Filho não desfiarei dados biográficos dentro de rígida cronologia. De corrida, salientarei apenas algumas facetas da sua individualidade como intelectual. Refujo a menção das suas atividades político-partidárias - deputado estadual, orador de comícios, colunista belicoso - que, embora nos hajam revelado incontestáveis recursos da sua inteligência e ardo combativo, devem ter-lhe acarretado dissabores e desilusões em barda.

Barreiros Filho, pertencente à geração seguinte, sempre teve predileção, levada ao mais alto grau, por esse estudo, provavelmente por inspiração de um dos seus primeiros mestres na matéria, o Professor José Oiticica, celebrado filólogo e brilhantíssimo poeta.

Ao matricular-se no Ginásio Catarinense, dos Padres Jesuítas, nesta capital, distinguiu-se logo pelo conhecimento das principais sutilezas gramaticais. Afiadíssimo em "análise lógica". O velho e plíssimo Padre Vargas, cateDr.ático de Português, estimava-o deveras. Em aula, costumava propor-nos para análise uma estrofe de Os Lusíadas ou um retalho qualquer de um vetusto clássico. Mandava um aluno analisar. Se este não acerasse, chamava ouro. Se também esse titubeasse, outros sucessivamente iam sendo chamados. Foi, bem me lembro, o que, certa vez, aconteceu, quando nos foi dado para analisar um retorcido período interrogativo, extraído da Imagem da Vida Cristã, do remoto quinhentista Frei Heitor Pinto:"A vida, que sempre morre, que se perde em que se perca?' O osso, de fato, era duro de roer. Nenhum dos alunos chamados teve dente capaz de esburgá-lo. Então o bom do Padre Vargas, com aquele seu sorrizinho inocente, ironia, olhando por cima dos óculos, voltou-se para Barreiros Filho e com a sua voz lenta e cantada:

Barreiros - exclamou - dê quinau a essa rapaziada!

Não houve dúvida. O quinau veio. A encaracolada interrogação de Frei Heitor Pino foi por Barreiros Filho alisada, partida em porções - quero dizer: em orações - e estas classificadas, rotuladas e expostas ao nosso entendimento como a coisa mais simples deste mundo.

* ★ * ★

Já no Ginásio, ia-se-nos despertando o gosto das Letras: Nas Composições (redações) timbrávamos não só em escrever correto, mas também com relativa elegância,

Barreiros Filho continuou lá e "bacharelou-se". Por dificuldades financeiras decorrentes da morte de meu pai, vi-me forçado a interromper os estudos. Saí ao fim do penúltimo ano do curso, que naquele tempo era de seis anos.

Cá fora, não nos desgrudamos da leitura de bons Autores. Barreiros Filho persistia em aprofundar-se no estudo do Vernáculo. A famosa Réplica de Rui Barbosa ficou sendo o seu livro de cabeceira. Embora reconhecesse terem sido justamente causticados pelo Professor Carneiro Ribeiro alguns pontos do livro querido, este permaneceu para ele como um monumento do mais peregrino Estilo. E daí o estender-se a sua admiração a tudo quanto, através do prisma literário, brotou da pena do grande Rui.

Seguramente certo dos conhecimentos adauiridos no contínuo estudo dos segredos do Idioma, assentou candidatar-se à cadeira dessa disciplina, na antiga Escola Normal Catarinense.

Ao anunciar-se o concurso, foi o primeiro a inscrever-se. Em seguida, alistaram-se como concorrentes Mâncio Costa e, já em idade provecta, Horácio de Carvalho, companheiro de Cruz e Sousa. Barreiros Filho conquistou o primeiro lugar, foi nomeado. E todos sabem que inconfundível lustre deu àquela importante cáteDr.a.

Foi ele quem, no convívio amigo, me despertou, com o seu exemplo, o amor da frase escorreita. Mas creio ter sido eu quem lhe revelou o envolvente encanto da prosa eciana. Também fiz o mesmo a Othon D’Eça, que até então se embevecia no culto a Coelho Neto.

Quase todas as noites, em casa de OthonD’Eça, nos reuníamos - Haroldo Calado, Manoel da Nóbrega, Jocelyn Viegas, Francisco Teotônio AlveSão José d’Acâmpora, eu e outros amigos - num gabinete esquisitamente enfeitado, conforme há muito tempo descrevi em crônica intitulada "Há Dois Anos" e publicada no suplemento literário da Gazeta de Notícias, sob a direção de João do Rio. Palestrávamos de Artes e Letras, líamos, discutíamos sobre questões suscitadas - pela leitura.

Certa vez, numa espécie de desafio, Othon D’Eça leu o pequeno conto "A Escolha", de Coelho Neto, que, aliás, para falar verdade, tem coisas muito melhores. Eu tinha levado comigo as Prosas Bárbaras de Eça de Queiroz; li dele "Entre a Neve". Othon, convertido, fulminado, apenas murmurou;

Que beleza! Que beleza!

Na manhã do dia seguinte, em caminho para o escritório da antiga firma Eduardo Horn, onde estava cavando a vida como encarregado da correspondência, passei pela casa de Othon D’Eça e como ele deixei A Ilustre Casa de Ramires. À noite, fervendo em curiosidade, fui perguntar se estava gostando do livro. Recebeu- me com um abraço, exclamando:

Se estou gostando? Como não haveria de gostar? Li tudo, de ponta a ponta! Que maravilha, rapaz! Nunca vi coisa igual! Nunca pensei... O final, como o último verso de belo soneto, é uma verdadeira "chave de ouro".

Othon D’Eça entrou a ler tudo quanto escreveu o autor de O Primo Basílio, o qual por longos anos sobre ele exerceu fascinante influência. Barreiros Filho leu muita coisa do imortal "pobre homem da Povoa de Varzim". A sua admiração por ele continua inalterável,sem esconder, entretanto, corajosas ressalvas quanto a certos "aspectos éticos" da obra do romancista luso. Mas afirma:

A sua adjetivação é surpreendente, originalíssima, insubstituível.

Eu de mim, à medida que fui conhecendo a prosade Ramalho Ortigão, sentia que a prosa de Eça de Queiroz, sem perder a sua autêntica beleza, carecia de mais nervo, mais sangue, mais músculo. Ramalho escreveu como eu desejaria escrever. De vez em quando volto a algumas das páginas suas, e a emoção que essa leitura me causa é simplesmente eletrizante. Assim penso; assim o digo.

★ * * ★

Quando, por volta de 1956 ou 57, apareceu a interessante Introdução à História da Literatura Catarinense, do Prof. Osvaldo Ferreira de Melo (Filho), julguei conveniente retificar certos fatos, certas datas, certos juízos nela exarados pelo seu inteligente Autor; e, tendo de aludir a Barreiros Filho, observei que este, com ser um prosador elegante, vigoroso, corretíssimo, "não se abalançou nunca a entrechar um romance nem sequer um simples conto". E aduzia: "Poeta parnasiano (e por que não?), devemos-lhe alguns dos mais perfeitos sonetos compostos por catarinenses (sem excetuar, sequer, Luís Delfino)".

E como já muita gente não se lembra hoje da poesia de Barreiros Filho, parece-me não estar fora de propósito, à passagem do seu octogésimo aniversário, relembrar alguns versos por ele rimados quando as Musas ainda lhe sorriam feiticeiras.

Aqui está, por exemplo, o soneto "Branca de Neve", sentidamente feito "para a alma de Catita Flores". Catita era o apelido familiar de minha irmã Anondina, falecida com pouco mais de dezessete anos de idade:

O abroqueiado caule, já lenhoso.

Golpeia com as unhas de faquir,

A mãe Natura fê-lo belicoso.

Crespo de espinhos para reagir;

Mas esse caule ríspido e espinhoso,

Com aBranca de Nevevai sorrir.

Mal desaperte o cálix amoroso,

Para exibi-la pérola de Ofir.

E a rosa surge como um Santo Graal...

É neve, é jaspe! É mármore e é cristal,

É marfim e é candor alabastrlno!

Depois, pétalas voando na lufaga... Despojos virginais de flor fanada... Nascer... florir... despetalar... Destino!

Outras estrofes aqui estão, embebidas também de terna beleza, intituiadas "Ó Minha Companheira":

Escutei, por meu bem, a voz secreta.

Mas cristalina, desta intuição:

Por amor, só de amor, eu sou poeta.

Coração a cantar teu coração!

Sorte grande de amor! Mulher dileta.

Ao meu problema deste a solução.

Em me dando a riqueza mais completa De copo e de alma, em plena comunhão.

Se breve passa uma ventura boa.

Se a mão do tempo ao sonho tira a cor,

Se a ventura tem prazo, e logo escoa:

Tenhamos a coragem de supor Que o tempo que possou Inda revoa Batendo as asas sobre o nosso amor!

No soneto em homenagem a Cruz e Sousa, comovidamente condensou Barreiros Filho a mística essência do martírio e da glória do desventurado "Cisne Negro":

Cruz e Sousa, meu poeta emparedado. Nasceste paria, em casa de um patrão,

E o leite maternal, por t i sugado,

Foi um soro letal de escravidão;

Cresceste, e no teu peito rebelado Irrompeu tua raça em convulsão:

Há dores retranzidas no teu brado,(assim) Soluços de senzala na aflição.

Teu pai foi carne negra de um senhor.

Tua mãe, negra e escrava - que amargura!

Tu foste a flor dos cardos desse amor.

E és agora uma flor de eterna dura:

Flor da Raça, maldita em sua cor,

Flori da Glória, nos hortos da Tortura!

•k ★ * * ★

Claro está que, depois de citar versos cinzelados com tão magistral perfeição, não ousarei prender por mais tempo o leitor à minha maçuda prosa.

Mas, um instantinho só: - Parabéns a Barreiros Filho, pelos oitenta nos limpos e corajosamente vividos!

OEstado. 26 de setembro de 1971.

PERFIL LITERÁRIO

Penadas de crítica)

BARREIROS FILHO já se impôs aos seus contemporâneos como homem de caráter e artista de mérito.

Shelley, em versos admiráveis que a condessa de Noailles tranladou a francês, fala da convivência com homens superiores, assemelhando-a ao uso de certas flores: estas. Pomo-las ao apeito e elas, com o sutil do seu perfume, nos impregnam a roupa; aqueles se insinuam delicadamente no nosso espírito, saturando-o de lés a lés. Pode dizer-se isso de B. Filho. Quem já uma vez privou com ele ou apenas o conversou, jamais o esquecerá. O seu palestrar é sugestivo, movimentado, colorido e brilhante, e a frase que exprime ação ou violência, ele a não pronuncia sem a fazer seguir do ágil e alado complemento de gesto expressivo e revelador. Serve-se de um vocabulário tão simples quão variado, e, às vezes, quando quer lançar o termo técnico, aparentemente esquipático, ele o faz com timidez, invadido pelo receio de parecer escandaloso ou... não se ter feito entender à gagosa.

Como escritor, B. Filho é um purista impecável, não no sentido estreito e escolásticodo termo, mas numa acepção mais moderna, mais liberal, mais artística, se assim nos for lícito qualificá-la. Conhecendo magistralmente a opulência da língua portuguesa e prestando-se de bom grado a defendê-la contra as razzias dos literatelhos francesmente engalispados, busca escrever os seus sonoros e extraordinários períodos numa prosa que, sem o rancido do seiscentismo, exclui também a desnacionalização do vocabulário e da sintaxe - o que equivale a dizer que o gênio da língua fica nos seus escritos resguardado de todo contágio estrangeiro, apenas permitindo-se as irrecusáveis alterações decorrentes da fatal evolução a que se não podem furtar os idiomas.

Quanto ao estilo, basta-nos ler Os á/as para vermos que admirável pintor é ele, como a sua pena dispõe das mais variadas cores para delinear aqueles quadros cheios de luz e vida, e tão trabalhados que se diriam pacientes estudos de cromática. O lavor dessas páginas deve ter sido um puro martírio intelectual. Se B. Filho há escrito tão pouco, ele que tão refinada sensibilidade tem para perceber, nas suas diversas modalidades, a beleza do mundo objetivo, não é senão porque o trabalho artístico o excita e exausta.

Na prosa não há vocábulo que se possa cancelar sem que o conjunto da pintura se ressinta; todas as palavras têm cor e expressão emotiva. A sobriedade dos seus melhores trechos dir-se-ia ter sido bebida em Par les champs et par les grèves, ealguns deles estão como que saturados da esquisita finura e fremente nervosidade das Lettres de mon moulin.

Entretanto, o avassalador desejo de atingir a plenitude da expressão, de modo que a forma alcançada seja a única realmente artística, muita vez o tem sobreexcitado até o desânimo. É um insatisfeito, como quase todos os lídimos artistas.

Daí, pois, acharmos perfeitamente explicável que, ao escrevermos as últimas linhas, nos ocorram estas palavras de Bourget acerca de Gustavo Flaubert: "Noble et fier défaut après des tout, car il dérive du plus magnifique des tourments qu'il soit donné à l'homme d'éprouver: - le mal de la perfection"

1918

(in Terra n° 3, maio de 1920, p. 66-67)

REFLEXÕES CRÍTICAS

PLÁGIO... SIM OU NÃO

I

Presentemente, pouco se fala em plagiato. Até há pouco tempo, a increpação de plágio, de quando em quando, se fazia ouvir nos arraiais literários. Para não citar senão dois casos - e dos mais notáveis - de que bem nos recordamos, aludiremos às acusações formuladas, a respeito, contra Gabielle d’Annunzio e Anatole France. Fizeram época. Rios de tinta escorreram a propósito. Todos nós, que estamos de cabelos brancos x (francamente brancos ou sob a camuflagem química da Juventude Alexandre...), não esquecemos ainda o escandalosíssimo rumor dos debates travados em redor daquelas duas eminentíssimas figuras do mundo das Letras. Mas, porque ambos continuaram a proceder como dantes, a disputa crítica tornou-se vã - e extinguiu-se.

Hoje, no meio de abundosa produção livresca, quase sempre apressada, extensamente medíocre e na qual o lavor do estilo é posto em plano secundário, - gabando-se mesmo certos autores de desarticular o travejamento íntimo da língua vernácula, quando, na maioria das vezes, não há nisso nenhum propósito deliberado, mas simplesmente a inconfessada falência de não na terem estudado com amor e segurança, - hoje, dizíamos, fala-se pouco em plágio. Talvez porque todos os que escrevem são profundamente originais, ou porque o plagiato se tornou processo literário difundido, praticado e aceito sem nenhum caráter pecaminoso...

II

Disse Remy de Gourmont que "a psicologia do plagiário se prende naturalmente à do laDr.ão, e ambas à do avestruz. O plagiário ou é ignorante e acredita que to mundo é ignorante; ou ele sabe, e então a raiva lhe faz crer que ó o único a saber" (1). Em regra geral, o plagiário supõe que nunca será apanhado em culpa. "O jogador de loteria escolhe um número e acredita que ele sairá; o plagiário escolhe um número e crê que não sairá. Todos os números podem igualmente sair. Eis por que é desarrazoado jogar na loteria, ou roubar, mesmo milhões, ou copiar, ainda que sejam quinze linhas, de uma oba em cinquenta volumes" (2).

Todavia, há plágios só aparentes. "Há plagiários inocentes. A memória, que os espiritualistas persistem em considerar como uma das faculdades da alma, outra coisa não é senão uma biblioteca de clichêssensoriais: uns vivazes, outros alterados ou apagados. Portanto, a lembrança de uma leitura pode-se conservar no cérebro, ao mesmo tempo que ali se acha abolido qualquer vestígio das circunstâncias que localizavam, situavam essa leitura na realidade; a recordação toma a forma de inspiração, de criação subconsciente, e o autor julga recolher na sua própria fonte a água pura e nova dum poema borbulhante, quando não faz mais que transvasar líquidos antigos" (3).

A memória tem caprichos extraordinários, e ordinários (no sentido depreciativo do termo). A observação desses fenômenos reservou larga margem às lembranças deformadas ou truncadas, as quais, segundo Ribot, são perfeitas "doenças". Referiu ele, por exemplo, o caso de Lineu, que, já velho, ao reler as suas próprias obras, exclamava, a revezes:

"Como isto é belo! Como eu desejaria ter escrito isto!" Não menos curioso é o caso de Macaulay, que, também ao fim da vida, "se ouvia ler, de noite, qualquer coisa, acordava pela manhã com o espírito cheio de pensamentos e expressões ouvidos na véspera e escrevia-os, na maior boa-fé, sem duvidar que eles não lhe pertencessem".

E Remy de Gourmont resume: "O plágio inocente é sempre sintoma de doença e está sempre ligado a um enfraquecimento cerebral, quer passageiro, quer definitivo, ou a um estado epiléptico. O plágio voluntário denota igualmente doença, mas da moralidade".

III

Há poucos anos, publicou em Lisboa o Sr. Cruz Malpique, professor do Liceu Nacional Salvador Correia, um livrinho de título bastante ambicioso: Como se faz um escritor. Nas suas páginas, quase sempre correntias e amenas, são inúmeros os preceitos, conselhos e observações de grande justeza. Mas, de longe em longe, repontam conceitos que, às vezes, raiam a incoerência ou a banalidade.

Toda a gente sabe que um escritor não se faz com 252 páginas dessa estofa. Semelhantes livros têm tanta probabilidade de dar fruto concreto, quais aqueles outros intitulados: Como enriquecer, Como ser feliz, etc.

Ademais, o autor é dos que malsiname remoqueiam a Gramática, tachando-a de inútil, obstrutora e nociva. Esse homem ilustre, que quer dar regras a quem deseja escrever com arte, não admite um livro que nos ensina a escrever com limpeza. E dos que ainda laboram na confusão de estilo literário e correção de linguagem...

Mas, deixemos isso. O que pretendemos fazer é salientar um período seu, onde não nos parece haver originalidade nenhuma, pois o que se diz ali, em raccourci, foi dito, extense, por Lessing, no hamburguês Melchior Goeze, defendendo o direito, que ao filósofo assiste, de se conservar fora das doutrinas consagradas.

Escreveu o professor Malpipue: "Se ao sábio, por exemplo, dessem numa das mãos a verdade já descoberta, e, na outra, a simples esperança de a descobrir, o sábio enjeitaria a primeira, e guardaria a segunda" (4).

Vejamos agora Lessing: "O que constitui o valor do homem não é a verdade, que ele possui, ou crê possuir: é o esforço sincero, que faz, para conquistá-la: porque não é absolutamente na posse, mas, sim, na busca da verdade que o homem aumenta as suas forças e se aperfeiçoa. Se Deus tivesse fechado na mão direita a verdade inteira e na mão esquerda a eterna aspiração à verdade, mesmo com a condição de sempre haver engano, em dissesse: "escolhe!", eu lhe seguraria humildemente a mão esquerda e diria: "Dá-ma, meu Pai, pois que a verdade pura só para Ti foi feita!" (5)

Essa é, cremos, a fonte aonde o prof. Malpique foi beber. A feia ação está em que, servindo-se dela, não a mencionou, como era o seu dever.

IV

Mais dignamente andou Humberto de Campos, ao contar o mesmo caso. Porém, fiado na sua memória, que, aliás, era estupenda, enganou-se ao atribuí-lo a Schiller. Assim escreveu ele: "Schiller costumava dizer que, se Deus lhe oferecesse em uma das mãos a pesquisa da verdade e na outra a verdade, ele preferiria a primeira à segunda, pelo só prazer de encontrá-la através dos obstáculos" (6).

Enquanto o escritor lusitano dá a ideia como sua, o crítico brasileiro, embora errando ao indicar-lhe a paternidade, procedeu com toda a lisura. É que a elegância mental de Humberto de Campos não se compadecia com a ousada atitude de plagiário.

V

O plagiário não deixa de ter, às vezes, certo sabor de aventura. O plagiário entrega-se à sorte, arrostando todos os riscos. É, nesse particular, uma espécie de Ankudinov, aquele célebre aventureiro russo, que, surgido não se sabe donde, ousou apresentar-se com o nome de tsarevltchIvã Vassilievitch, lutando bravamente na Polônia e na Ucrânia, abraçando o islamismo em Constantinopla e o catolicismo em Roma, indo, por fim, colocar-se à sombra da rainha Cristina da Suécia; até que um dia, surpreendido na sua estada em Neustadt, foi agarraão por agentes russos, levado para Moscou e enfocado... (7).

Também o plagiário pode ser apanhado de surpresa. Pois, como já disse alguém, Alá é grande, mas o acaso é maior.

O Estado

Remy de Gourmont. Le problème du style, 6. edição, Paris, 1970, págs. 139-140;

idem, obra citada, pag. 142.

Idem, obra citada, pág. Cit.

Cruz Malpique. Como se faz um escritor. Lisboa, sem data, pág. 59.

Conforme A. Bossert. Histoire de la littérature allemande,Paris, 4 ed. págs. 339-340.

Crítica, Ia série, Rio, 1933, pág. 258.

Em Dictionnaire d'Histoire,etc., de M..-N. Bouillet.

O MENOR ESFORÇO

As maravilhas da Ciência vão a pouco e pouco consolidando o ideal da dinâmica social, com a realização, a prática da lei do menor esforço.

No mundo intelectual tudo parece tender a esse alvo: desde a leitura para trem, medida pelo espaço que vai duma a outra estação, até o trabalho do próprio escritor, trabalho este feito hoje com facilidade, atenta a grossa aluvido dábras literárias que cobre numa escura camada a superfície da nossa desgraçada Terra.

A época do Artista passou, como passou a época da peDr.apolida.

Agora não há mais o homem que, cuivado sobre um bloco de papel, espremia angustiosamente os mamilos da inteligência, na expectativa duma gota de leite basto e substancioso; há só o indivíduo que, cingindo-se estreitamente ao trabalho alheio, nele plasma suas ideias com lastimável subserviência, apenas disfarçando a modalidade expressional sob um verniz de sinônimos e duns retoques de hipérbatos. De forma que não será para espantar que sempre nos saia um escrevedor sofrível quem, por conta própria, não iria além de bom conjugador de verbos...

Ora, foi assim que havendo eu publicado, sem assinatura, na Semana de 4 de Abril, um artiguelho sobre o Outono, tive o prazer de encontrar coisa semelhante no Mackenzista, de S. Paulo, áe 14 de Abril, deste ano.

É mister, antes de tudo, dar atenção às datas das duas publicações, e depois realizar um cotejo: ver-se-á, então, como o autor do Outono, do Mackenzista, escreveu seus períodos sob a influência das minhas impressões.

Dizia eu:

"OUTONO

Já pairam no ar as primeiras sinfonias outoniças. Os crepúsculos têm alaranjados de aquarela, cambiantes de violeta e cinza, com leves tons aperolados e indecisos...

Nas laranjeiras os frutos se avolumam para em breve transmutar o verde-negro da cor em ouro rico. Passam dias de chuva, tristes como tuberculosos; e passam dias de sol, alegres como ceifeiros no trabalho... O azul, por vezes, é puro, diáfano. Mas não há como as tardes. As tardes outonais...

Que solenidade quando o sol se recolhe, moroso, por entre cortinas aurifranjadas e rendões policromáticosl E, depois, as clarinadas rubras que ficam, incertas, palpitando no ar adormentado, invadido de mansinho por adensamentos violáceos e nostálgicos... Espontam as primeiras estrelas. O plenilúnio assoma de trás dos morros.

E é então que a saudade estende dentro de nós seus tentáculos rudes e voluntariosos...

Outono - quaDr.a das folhas que caem e das lânguidas nostalgias..."

Vejam agora o escritor paulista:

OUTONO

"Andam pelo ar macio, cerúleo, as primeiras sinfonias do outono. Já se ouve o farfalhar das folhas secas, tangidas pelo vento frio, e as árvores vão se vestindo de folhagens flavas, que vão caindo, que vão caindo... As tardes, então, são divinas. O sol, como um velho rei de lenda oriental, com lentidão majestosamente desaparece entre explosões sanguíneas de luz gloriosa, em meio de um silêncio claustral da natureza concentrada. E ficam, no céu, tonalidades mansas, claras, lilazes, aperoladas... Depois são farrapos rubros aurifulgentes, como clarões de granadas rebentando...

E então uma grande saudade do Invisível nos invade, uma tristeza suave se alarga por nossa alma, e ficamos para aí, olhos vagos, a olhar os matizes d'oiro, as "miauces", doloridas que palpitam no espaço... As tardes outonais! Que doçural Que saudades! Demais, com o outono, chega Maio, o mês dos crisântemos, o mês da Virgem. É um murmúrio dolente de litanias, um balbucio de preces que sobe aos céus, nas espirais do incenso redolente, no bimbalhar dos sinos altos, na voz profunda dos órgãos... Para mim, o outono dá-me a impressão bizarra de uma fila de chineses que, pausadamente bamboleantes, de quimonos amarelos, andem a ler o "Shi-King", nos caminhos torcicolados, entre lagos quietos, bambus nervosos, cerejeiras em flor, e Budas graves de dois mil anos..."

A mesma cor, a mesma forma de expressão tornada prolixo pasticho pela alargada substituição de sinônimos e metáforas.

Esta não é a primeira vez que alguém se apega a escritos meus, para - alargando-os, espichando-os, invertendo-os, substituindo-lhes sinônimos - fazer obra original.

A 24 de Janeiro de 1914 publiquei na Folha do Comércio - que ainda estava sob a direção do pranteado e inesquecível jornalista Martinho Calado - uma Carta a Mademoiselle, em a qual tentei pintar o tipo do janota fútil, transbordante de gestos, carecente d'ideias.

Foram estas as minhas expressões:

"... Todos eles (os janotas) trajam bem. Os colarinhos têm uma alvura crua, brilhante, obtida a trincai, que mais brilhante e mais crua parece ser quando a gravata é rubra ou verde-emaiado e sobre ela ressalta a gota latecente duma pérola... falsa; os "fracks", muitas vezes por pagar, são dum invejável primor de corte; os coletes, tirantes a cinzento com pintinhas escarlates, fecham apenas em tresa botões, para que, bem decotados, decotados até ao umbigo, deixem ver o reluzente peitilho da camisa ajustado em preguinhas estreitíssimas, sobre as quais a engomadeira suou e praguejou; as calças, estilo americano, são duma escrupulosa exatidão de linha vertical, e as bainhas dobradas acariciam as fivelinhas prateadas das polainas ricas, que por seu turno recebem o pé calçado de verniz... Pouco tratei com eles, os seus admiradores, e já vê daí que a minha observação não tem sido persistente; depois, porque esta minha prosa é por demais mesquinha e fraca para dar corpo e vida às imagens que elegem; falta-lhe, por desgraça, aquela onipotente espiritualidade que é a seiva dos estilos imortais..."

Onze meses e quatorze dias depois, pelas colunas da Semana, um inteligente moço, que conhecia bem o meu artigo, escondeu-se sob o pseudônimo de Paiva Ribas e escreveu o seguinte:

"... Tratam (os janotas) mais de arruar do que da palestrade fundo. São bonitos no peitilho da camisa, pregueado, mais polido que um espelho, mais estralejante e rijo que coiraça, usa botões de peDr.as falsas. O colarinho, alto, ataca de perto os maxilares e o "frack" muito bem talhado, de um só botão, "audernler cri", só serve, às mais das vezes, de reclame ao alfaiate.

Oscilam, em geral, entre o ridículo e o imbecil... Não tenhooestilo dos artistas imperecíveis, mas deves reconhecer. Etc..."

Eu dizia:

"E quando falam? Unem os calcanhares, abotoam o "fack", quebram um pouco p'ra diante o busto, juntam o indicador e o polegar, abrindo em leque os outros dedos, e, com este gesto, vão batendo as sílabas silvantes de S S ..."

E vai, o Sr. Paiva Ribas toma das minhas palavras, retorce- as e escreve o seguinte:

" Quando falam, curvam para a frente e dizem: V. Excia, é a flor do salão... Dançando, espicham os quaDr.is para trás, o peito para diante, etc..."

Basta só isto para que se veja se também em literatura não começa a vingar a lei do menor esforço...

A Semana, 8 de maio de 1915 p. 1 -2

A QUARTA ESPÉCIE DE CRÍTICA

Ao meu maior inimigo,

As três espécies de crítica, tão perfeitamente definidas por Almachio Diniz, são

- a crítica otimista;

- a crítica hedonista;

3- a crítica pessimista.

A primeira tem seu lídimo representante em Anatole France, que pensa descobrir em todas as obras mais um fundo bom, uma parcela de unidade nas obras que mais inúteis nos pareçam; a segunda, por se confundir com a filosofia, é a que faz com que, colocando-nos diante duma obra de arte nos reduzamos ao papel de simples e indiferentes espectadores, apenas obrigados a analisá-las sem curar dos seus valores estéticos: é o método de Taine; a terceira é a crítica à Nordeau, a verdadeira, segundo o nosso pensar, tendo como postulado a afirmação de que, senão o homem um animal, e, portanto, circunscrito ao campo da imperfeição animal, só poderá dar-nos obras duma perfeição relativa.

A crítica hedonista é glacial na sua apreciação, e, registrando apenas as faces emocionais da obra de arte ou as suas falhas estéticas, se encurrala numa zona, vasta, sim, mas, estéril e inútil - passando a ser uma curiosidade científica. E, enquanto a crítica otimista tutela as maiores frivolidades, com a preconcebida fé na existência duma faísca de belezas, a crítica pessimista faz brotar, à força de exigir e de combater, a ânsia do melhor, do ainda melhor, do semper ascendens.

A crítica hedonista reduz-se a um diletantismo científico; a otimista é ingênua e infrutífera; só a pessimista traz em si a exigência de obras progressivamente melhores.

O otimismo crítico apageia; o hedonismo observa e registra; o pessimismo não apageia: além de observar e registrar, impugna.

Mas o crítico leal, justo e inflexível, é raro. A amizade é peia que nos trava... Por isso os autorezinhos das críticas feitas a retalho, sob o vago e modesto paDr.ão de notassem contextura científica, estão, quase pelo comum, forçados a violentar a lealdade que nos é inata (a par da hipocrisia) e que até existe no fundo dos mais eméritos canalhas.

Têm de apreciar a obra do autor A? Bem: A é amigo deles, duma boa e antiga amizade, e, só por isso, o sagram superior e perfeito, artista que consigo afama leva - como as conservas de Matozinhos...

Esta é a quarta espécie de crítica, feita às obras dos amigos - acrítica X.RT.O.

Oásis Ano I, n. 1, Julho 1918, p. 1 -2

A COUVE E O CARDO

Todo aquele que maneja uma pena, escrevia Eça de Queiroz em carta a Mariano Pina, tem por dever dizer aquilo que julgar ser a verdade.

Só os tíbios silenciam. O homem que nada teme, vai de encontro à opinião errônea, embora ela pertença à maioria, e a golpeia com ironias ou argumentos.

Por que deixar prevalecer o erro? Por que bater palmas à ignorância? Por que manter a obra do passado - cadáver que carregamos aos ombros - se ela não corresponde à exigência hodierna? Por que alimentar a mentira? Em suma, por que mentir?

Eu não turíbulo o apedentismo, não me volto para as épocas extintas senão quando elas possam dar-me uma lição de energia viril, não abroquelo o erro, não minto... Por isso me proclama Irrequieto!

Mover-me-ia ao riso, se me não provocasse engulhos...

Então, que querem eles, os filisteus? A mole pasmaceira da couve? Mas a couve acaba por ser comida...

Antes ser cardo!

Oásis, I, n° 3, setembro de 1918, p.2

TRECHO DUM ESBOÇO CRÍTICO INÉDITO

... O autor que se preza tem obrigação de fazer da pena um instrumento de arte e não uma ferramenta de subalterna utilidade. Igualar a pena à gazua é desmerecê-la e infamá-la.

O "estilo fácil" é suspeito entre os ourives da palavra escrita. Renegava-o Flaubert com uma cólera sagrada como se nele visse o mais fiel indício da tibieza mental e da miopia estética. É que o autor da Educação Sentimental escrevia com o sangue das suas veias, e os autorezinhos de cordel, pontífices do "estilo fácil e correntio", escrevem desenxabidamentecom... tinta Sardinha. Eles ignoram as esmagadoras e fundas torturas do verdadeiro artista, que se castiga na ânsia de dar ao período o ritmo absconso, mas real, a sonoridade ondulante, a coloração fugitiva, derramada, semelhante ao vago esplendor que fica um momento no céu, por cima dos montes longínquos, depois de o sol se pôr...

As páginas saem-lhes da pena às dúzias, com a fluência duvidosa e própria dos escrevinhadores de gazelas bastardas, sem outro ideal que não seja a cavação por todos os meios. Tudo, para esses tais, é assunto, desde a ignota riqueza potamográfica de terras que são cantadas por patriotarrecas parladores e incômodos, até a lenda ingênua das abusões sertanejas... E tudo embrulham com um desaso altivo e procaz, como se estivessem a doutrinar para uma récua de asnos que vivessem filosoficamente à espera dos livros deles ou de uns feixes de capim...

Até quando havemos de esperar por um crítico de consciência, um lutador heroico e intimorato, que erga o pulso justiceiro contra essa miserável palhada científico-literária - diariamente festejada como obra-prima no gênero - pulverizando-a para sempre a malhadas de tacape?! Porque só a tacape, botocudamente, é que se devem tratar as mixórdias da nossa terra e quem nas faz...

É preciso cassar o uso da pena aos tamanqueiros da arte de escrever!...

O Momento, outubro de 1920, p. 2

INTRÓITO (Da Revista Terra n° 1)

Não acreditamos que haja, dentro do Brasil, tantas literaturas quantos são os estados, nem, ao menos, literaturas regionais, como a "do norte" e a "do sul". Haverá, talvez, aqui e ali, tendências mais ou menos acentuadas, mas isso não caracteriza literatura alguma.

As tendências são fenômenos históricos, pois, filhas das circunstâncias duma certa época, têm a sua cronografia. Houve quem as quisesse fazer derivar do gênio da raça. Disso não se tem prova alguma. Como poderiam elas provir da raça se, às vezes, criam e desenvolvem ideais inestéticos ou duma beleza inegável que, entretanto, se apagam e desaparecem depois de certo tempo, sem que a raça haja sofrido mudança alguma na sua plástica psíquica,

O pendor da literatura brasileira é, atualmente, de franca imitação a díspares e opostos mestres estrangeiros, com especialidade franceses, porque a França é a eterna tentadora, se bem que nem sempre lhe copiemos a última novidade. Ora, o labor literário catarinense deve de enveredar pela mesma estrada. E envereda, realmente.

Não nos venham dizer que José de Alencar e Gonçalves Dias, p. ex., deram à nossa literatura lindos, incontestáveis e permanentes caracteres de originalidade. Pois, perguntamos nós: acaso terão perdurado em nossas letras o indianismo do romancista cearense e o lirismo romântico do autor dos Timbiras?Quem é que se arrojaria a ressuscitar nos nossos dias a ingênua fabulação de Iracema e o sentimento clássico da poesia de Gonçalves Dias?

O que vemos são romances em cuja carnação circula o sangue do naturalismo de Zola e Eça, e versos durn lavor superfino, acabados segundo as regras mais severas do Sibarita Teodoro de Banville, ou do vago e sugestivo Verlaine. Outros, menos attrardés, modelam seu versejar (ai! E seu prosar também) pelas rimas de Samain...

Lês rimes se frôlant comme des tourfelles,

La fumée ou le songe en spirales tournoie.

De forma que o que vemos persistir não revela originalidade alguma, mas, sim, uma larga imitação. Não haverá perdão para esse crime, se crime for? Cremos que sim.

TEXTOS CRÍTICOS

O nosso país entrou na história quando as demais literaturas por que hoje nos guiamos se achavam formadas e enchiam a época de um esplendor radioso. Num tempo em que o ar se sonorizava com o lavor do intelectualismo cosmopolita, derrubador de fronteiras, era natural que nos sentíssemos arrastados antes a assimilar o fruto do pensamento estrangeiro do que a descobrir no subsolo da nossa raça as energias artísticas que ali dormiam e, provavelmente, dormem.

Sem querer, o Brasil, buscando alcançar o mesmo poder de vibração literária conquistado pela Velha Europa dava um passo no longo caminho que leva à realização do granáe ideal de Goethe - a literatura universal", cujos característicos principais são: extinção das fronteiras das literaturas nacionalistas e trabalho simultâneo dos espíritos eminentes dos diversos países, a fim de se instruírem reciprocamente, e se completarem e se continuarem uns aos outros121.

Neste século de curiosa pressa e videira luta conquista da perfeição e domínio moral e material, só se conservarão originais os países que fecharem as portas ao caixeiro-viajante e ao escritor estrangeiro. Não é paradoxo. A China e o Japão, enquanto inacessíveis ao livre trânsito de gentes alienígenas, tiveram na sua vida social e literatura um senso recatado e próprio à sua idiossincrasia . Desde, porém, que pediram amostras e preços aos industriais de Manchester, Hamburgo e Marselha, e começaram a receber essas brochuras amarelas que em Paris custam 3 francos e 50, em LonDr.es 3 xelins e 3 marcos em Berlim, nunca mais puderam dizer que estavam virgens do bafejo do estrangeirismo.

Pelo livro, sobretudo, é que se realiza o maior intercâmbio entre os povos. Há nações que necessitam de ideias como de pão para a boca. E o livro mata-lhes a fome. Como as ideias calam mais fundo que adagas, a sua influência é poderosa e irremissivelmente certa. Não é, pois, de surpreender que, aceitando ideias forasteiras, também aceitem as consequências dessa assimilação natural.

As belezas das literaturas regionalistas morrem quando essas literaturas se extinguem, ou declinam e se diluem as tendências que lhes deram nascença. Em literatura só tem longa vida as criações que encerram maior soma de humanidade - devendo tomar-se aqui humanidadenão no sentido de benevolência de homem para homem, porque isso é do domínio da moral, massim de expressão generalizada da personalidade humana, que tal é a exigência da filosofia da arte.

Absorvendo as produções literárias de países mais avançados e mais cultos, e procurando por elas guiar seus passos, a literatura brasileira não perpetra crime. Dá-se com as literaturas o que se dá com as línguas: às vezes, com mais frequência do que se julga, elas tem necessidade de sugestões e orientações advindas do estrangeiro, como os idiomas tem necessidade de novos termos, exigidos pelo progresso industrial, científico, etc. Diz-se que língua que estaciona é língua morta... Apliquemos o dito 'a literatura, mutatis mutandis, e o símile será perfeito. São aspectos do insuperável evolver humano.

Por todas essas razoes, TERRA não quer restringir o seu âmbito artístico 'as fronteiras do nosso Estado. O homem atual deve estender o olhar por horizontes mais dilatados. Delimitar terreno de ação para o homem é agrilhoá-lo, o pensamento só é fecundo quando é livre.

Libertemos esse Prometeu!

ARTES E LETRAS

Cruz e Sousa e Araújo Figueiredo foram dois grandes amigos e também dois grandes irmãos no parentesco espiritual da arte.

O primeiro morreu cedo, deixando, porém, com a saudade pungente na memória dos seus conterrâneos, lembrança forte do seu maravilhoso talento. A sua alma rebentava em flores admiráveis, que são os versos dos Faróis, dos Broquéise dos Últimos Sonetos, eas páginas das Evocações e do Missal,enquanto o seu coração se dilacerava na dor de ser incompreendido e, sobretudo, de ser desprezado pela fatalidade de ter nascido negro, num meio a que a lei de 88 não pudera de todo apagar os preconceitos de raça. A miséria sempre lhe andou no encalço. As privações e os homens pouca trégua lhe deram. E ele vingou-se divinamente, deixanão à posteridade cinco livros soberbos, que são a punição póstuma de quantos o desdenharam e o mais cabal desmentido à teoria da superioridade e da inferioridade das raças.

Dentro em breve um sexto livro de Cruz e Sousa será dado a lume. Com uma paciência fraternal, Araújo Figueiredo andou coligindo as poesias esparsas, deixadas pelo autor dos Broquéis em todos os jornais do Estado e do interior, a fim de as enfeixar num primoroso volume. O seu trabalho está concluído, e para breve está marcada a publicação. Quando? Que venha sem demora! Será esse um outro meio de reativar na lembrança dos intelectuais brasileiro o nome do desgraçado poeta negro, verdadeira alma de eleição.

Numa época em que as sobras de regionalismo de pacotilha vão sendo apologizadas sem exame por críticos que se deixam levar pelos adjetivos sentimentais das dedicatórias que se lhes fazem, um volume de versos de oiro será um banho lustral para os espíritos delicados e puros, a cuja sensibilidade estética repugnam os interesses do utilitarismo filisteu.

Louvores, pois, a Araújo Figueiredo, o anteriano do Ascetérlo!

A história catarinense continua a fornecer assuntos a todos os que a estudam.

Baseado nela anuncia-se para breve outro livro: é a História do Comércio catarinense, de Laércio Caldeira.

Laércio Caldeira não é, absolutamente, um desconhecido no terreno das letras do nosso Estado, Com cerca de 30 anos de idade, já tem um nome feito através do jornalismo catarinense, em cujas páginas poderemos analisar-lhe a evolução.

Depois de ter escrito contos, crônicas e esboços bibliográfico, sem falar na rápida excursão que tentou ao país das musas, dedicou-se agora ao cultivo da história catarinense - verdadeiro labirinto cujo acesso tem sido permitido tão somente àqueles que se sabem valer desse precioso fio de Ariadne que são as Notasde Lucas Boiteux.

Esperamos a História do Comércio da nossa terra, e que ela venha vazada num estilo ameno e colorido, diferente do de certos historiadores, que, à força de quererem ser sintéticos, se tornam secos e fastidiosos.

(in Terra, n° 4-22 de julho de 1920, p. 12)

ARTES E LETRAS

Dentre os diversos representantes da nova geração de artistas e cientistas catarinenses, com grande brilho se destaca Antônio Mâncio da Costa, que é, sem favor, pela louvabilíssima constância no estudo, um dos seus mais valiosos ornamentos.

Vindo de um grupo que tanto prometia e que, por desgraça, tão desconsoladamente faliu (deixando apenas escapar mais dois ou três que, todavia, não alteiam a cabeça acima do nível da vulgaridade), Mâncio da Costa não ficou acorrentado à teoria da arte pela arte, mas, levado pela sua natureza de investigador, foi mais além, penetrou de peito feito no território da ciência e ainda hoje o trilha ousado. Isso, porém, sem desprezar de todo a cultura delicada das flores literárias. Muito ao contrário. E tão exato é o que digo, que ele, para externar graficamente as emoções e raciocínios, provou a sua afeição às letras de um modo magistral: estudando, com desenvolvimento, critério e segurança, todas as sutilezas e flexibilidades da portuguesa língua. Não andou como muitos escrevinhadores que o querem é graforrear livros às medas, empolgados infantilmente pela balofa ilusão de que oescritor é aquele que, ao sair deste "vale de lágrimas", deixa uma obra capaz de só por si atulhar uma biblioteca.

Para esses, a correção da linguagem e o trabalho artístico do estilo são coisas de somenos importância, nugas futilíssimas em que só se absorvem jagodes e lunáticos.

Felizmente não pensa desse jeito o distinto lente de ciências físicas e naturais da Escola Normal.

Para as páginas fugaces do jornalismo indígena pouco tem contribuído a sua pena, que, nestes últimos tempos, se vem ocupando com um curioso e profundo estudo sobre a Química dos Lusíadas. Sobre a indumentária,a flora, a fauna, a geografia, a astronomia, etc, do imortal poema, "peDr.a angular" da Literatura da nossa língua, já temos alguns volumes, todos eles saturados da mais forte erudição. A monografia cuidada e documentada que Mâncio da Costa está escrevendo há de, com garbo e glória, formar ao lado das outras, que tiveram assunto nas oitavas camonianas.

O poema do épico português é, ainda hoje, como na Itália a Divina Comédia, uma fonte rica aonde grandes inteligências vão buscar os mais variados temas para as suas cogitações - e ninguém pode garantir que leia e explique todas as suas estrofes, como também todos os tercetos do poema dantesco, sem encontrar o menor embaraço. É impossível. Quando a dificuldade não for de ordem gramatical ou sintática, será, então, histórica, ou geográfica, ou astronômica, ou botânica, ou zoológica, ou inâumentária, etc. E quantas dúvidas dessas não se encontram nos 8.816 hendecassílabos da imortal epopeia lusitana?

Três eram os corpos simples conhecidos pelos antigos: o ar, o fogo e a água...

Hoje conhecemos dezenas e é possível que, dentro do insondável bojo do futuro, ainda vamos descobrir mais outros. A quantos alude Camões no seu poema, real e metaforicamente? Qual é, nos seus versos, a linguagem, a tecnologia, a nomenclatura química, que só foi cientificamente estabelecida séculos depois, por Guyton de Morveau e Lavoisier, em 1787, numa Memória à Academia Real das Ciências?

Essas interrogações terão com certeza resposta, e resposta cabal, no estudo de Mâncio da Costa. O autor é uma inteligência culta e grande conhecedor da língua.

Tudo, pois, leva a concluir que a sua obra grangeará duradoura consagração.

”Men ought not to be estimated by their size or stature..."

(in Terra n. 5, 29 de Julho de 1920, p. 11)

ARTES E LETRAS

Nada mais fácil que elogiar, em se tratando de coisas literárias... Dizem que menos difícil ainda é criticar. Não creio. Quando, pelo menos, se exerce crítica sensata, apoiada em provas e documentos, a censura se torna trabalho árduo, por isso que não é feito ao ar e exige conclusões decisivas como um problema de matemática. O elogio é que não necessita dessas precauções. Dada a falta de sinceridade que hoje se vai verificando em todos os lugares, os insinceros vão cada vez mais alargando o seu vocabulário elogioso e hipócrita: e é desse vocabulário que estão cheios os artiguelhos rabiscados de enfiada por meninotes que querem estadear filaucias literárias e se acostam a este ou àquele autor, cantando-lhes sonoras loas...

Ainda ontem os meus olhos se deliciaram com estas linhas, topadas numa revista daqui e escritas a propósito da obra dum jornalista catarinense:

“Os primores do seu estilos, a sua riqueza e variedade de linguagem, o vigor e a propriedade nas locuções dão-lhe jus a ser apontado por todos nós como um dos nossos melhores escritores contemporâneos, dão-lhe um lugar bem saliente entre os literatos da época.

"Os seus pensamentos, ainda os mais altamente burilados, não são enfeitadospelas desnecessárias palavras grandíloquas: - tudo simplicidade, tudo graça, tudo perfeição e harmonia".

Mas, essa obra, em que, conforme se viu, há "riqueza e variedade de linguagem", "primores de estilo", "vigor e propriedade nas locuções", é, manda a verdade dizê-lo, um trabalho manco. É alguma coisa, mas não é muito e está longe de ser tudo! Por quê? Porque, acima dessa crítica leviana, ejaculada após a leitura duma simples página, está a opinião dos conscienciosos e incorruptíveis que, na calma salutar dos gabinetes, vão de lápis em punho, pondo à margem da brochura as suas notas - verdadeiros gritos de protesto contra os crimes cinicamente perpetrados por aqueles que, neste Brasil de confusos limites, se dizem discípulos de Saint-Beuve, Taine, Brunetière, etc.

Para provar que o tão gabado volume não foi lido nem analisado com o critério exigido, basta dizer que é precisamente quanto à linguagem e ao estilo, como quanto a observação e ao bom-senso, que ele mais eivado se nos depara.

Vejamo-lo de esfusiote. O autor fala da mulher catarinense. Como pintá-la? Em estilo 1830: "Estatura média, rosto oval, faces pálido-rosadas, olhos castanhos ou pretos com longo cílios e olheiras arroxeadas" (p. 13). Deviam possuir essa expressão romântica e triste todas as raparigas que se suicidaram depois da leitura falta de Werther... Mas o autor continua: "A sua palavra é sempre de imensa doçura" (idem). Reparam? O som não emite voz, nem aqui nem, provavelmente, em lugar nenhum. Isso, na verdade, é um não sei como lhe chame!

Já viram um casamento em S. Bento? É pitoresca a cena. O autor do volume consagrado tenta descrevê-lo por miúdo. Alude ao bródio festivo e canta a fartura da mesa: "Imensas travessas de legumes e carnes fumegam num grande desprendimento de vapores"(p. 117). Em primeiro lugar, aí não se diz como estavam os legumes... Estando crus, não podiam fumegar, é claro! E, mesmo que estivessem cozidos, como as carnes, é pleonástico aduzir que fumegavam esprendendo vapores... Para isso basta que não estejam frios - quer em S. Bento, quer em Tóquio.

Eis como se diz a maneira por que trazem o lenço as mulheres da colônia do norte catarinense: "As de mais idade carregam o lenço amarrado por baixo do queixo, ou ainda em triângulo sobre a costa, com as pontas cruzadas no peito" (p. 116). O verbo ‘carregar‘está aí descabidamente empregado; a acepção que o autor lhe dá não existe em nenhum léxico e constitui um brasileirismo plebeu. Também ‘costa’, no singular, significa uma infinidade de coisas, menos o que o autor quis dizer: o dorso, a parte posterior do corpo. Isto, em português, sempre e sempre se escreveu no plural: ‘costas’.

Um baile em S. Bento é um espetáculo furioso. A pena do autor, a quem vou glosando, procura esboçá-lo com esforço. Os pares, bem unhados, giram e riem, à doida. "Por fim já não há mais cerimônia. Cada um se debruça no colo da sua amada ou se lhe senta nos joelhos e ambos dormem bem-aventuradamente recostados nas paredes da sala o delicioso sono do idílio e do amor" (p. 119).

Isso pode não ser Zola, mas é Paulo de Kock autêntico... E fica bem num livro que vai ser reeditado em papel mais barato, visando entrada nas escolas públicas...)

Mas segue: "Só ao outro, com o sol alto, é que o baile termina, quando não se prolonga por mais uma ou duas noites" (id.)

Agora pergunto eu: se cada um (por conseguinte, todos) se recostou no colo ou se sentou lubricamente nos joelhos da sua amada para saborear "o sono do idílio e do amor", como é que poderia o baile prolongar-se até o outro dia? Não me consta que uma imigrante de S. Bento possa dançar em pleno sono, tendo, além disso, nos joelhos, o maganão dum colono... também a dormir. Em todo caso, vou lançar inculcas...

Defeitos desse quilate avultam no livro às dezenas. Quando tiver mais vagar hei de expô-los todos. Por hoje basta citar mais um. É respigado no capítulo Episódio dos campos, que procura dizer da luta entre um touro e um tigre. Ei-lo: "Umas vezes o pugilato trava-se desde logo e um dos contendores é imediatamente atirado por terra, agonizante". A minha observação incide sobre o vocábulo pugilato. Está ele ali bem empregado? Tomemos os dois melhores dicionaristas vernáculos: Figueiredo e Aulete. Que diz o primeiro? Isto: "PUGILATO, m. Ato de lutar com punhos. Fig. Discussão acalorada (Lat. Pugilatus)''. E o segundo? Isto: "PUGILATO, s.m. briga às punhadas. F. lat. Pugilatus". Só! Nem mais uma palavra acrescentam!

Portanto, em português, pugilato significa o ato de brigar com os punhos, isto é, às punhadas, aos socos, aos murros; e figuradamente exprime discussão acalorada. Assim senão, o termo pugilato está erradamente empregado na descrição da luta do tigre com o touro, pois que nem um nem outro desses animais tem punhos com que possa dar murros ou socos...

Por aqui me fico.

Antes, porém, de pingar ao cabo desta croniqueta o ponto final de todos os assuntos, devo declarar que ela foi motivada pelo artigo Crispim Mira e o seu livro Terra Catarinense, vindo a lume pelas colunas da Revista Acadêmica e assinado pelo Sr. A. Correia - que não tenho o prazer de conhecer.

Gosto de definir atitudes

(in Terra n. 6, 5 de Agosto de 1920, p. 7-8)

ARTES E LETRAS

Deverá por estes dias regressar da sua viagem ao Rio e S. Paulo o nosso conterrâneo farmacêutico Heitor Luz.

No austero e incansável trabalho mental, que tanto dignifica o homem como fisicamente o deprime, pode haver aqui quem rivalize com ele; quem o sobrepuje, não. É um trabalhador de verdade.

Possuindo uma inteligência perspicaz e curiosíssima, não há ramo da ciência que ele não tenha versado, e sempre com grande destaque. É possível que na sua ação fecunda se note certa dose de versatilidade ... Mas, isso, no seu temperamento complexo e inconfundível, não é verdadeiramente um pecado. Na época em que vivemos, os cérebros como o seu são atraídos para os diversos quaDr.antes do saber humano, com os aliciamentos quase irresistíveis que a ciência exercita diante dos olhos maravilhados daqueles que a desejam possui integralmente.

Homem do seu tempo, isto é, que deseja senhorear-se de todas as conquistas que dia a dia o espírito humano entesoura, Heitor Luz não reduziu o seu estudo a um único objeto; desdobrando com inigualável força a sua capacidade intelectual, tornou-se um delicado talento enciclopédico do que tem dado as mais seguras provas pelas colunas da imprensa deste e de outros Estados.

Ainda agora, em S. Paulo, realizou magistral conferência sobre a dinâmica dos fenômenos vitais, expendendo foda TODA??? uma rica série de observações feitas por um prisma rigorosamente científico, bem como as conclusões daí derivadas, e que vêm, uma vez mais, comprovar a solidez da sua cultura. Os aplausos com que na esclarecida Paulicéia o festejaram falam mais eloquentemente que a notícia desta croniqueta. E S. Paulo é S. Paulo, ponderaria o Conselheiro Acácio com o maior acerto.

Porque - dizem-me cá! - quem é que, entre nós, estaria em condições intelectuais de deixar sua casa para ir escutar uma conferência dessa natureza? Por desgraça, ainda estamos aferrados à delícias grosseiras das revistas teatrais e dos circos de cavalinhos e a certas seroadas em que só se ouvem parvoíces a respeito de Cruz e Sousa, Anita Garibaldi et magna comitante caterva... Arte e patriotismo! Saturou-nos a obsessão de que isto aqui é o centro do mundo e o berço dos heróis máximos.

Ainda não nos compenetramos de que é preciso olhar para o futuro, ter a fronte erguida e abraçar antes o pessimismo franco do que o otimismo bobo e deluso. Nada mais prejudicial do que parar, no meio da agitação moderna, a olhar para o umbigo, como também nada mais ridículo do que andar com o cadáver do passado às costas...

O nosso passado nada é; e, atualmente, no tocante a letras e artes, nada somos. Resgatemos, pois, essa dura, mas real situação, preparando-nos com absoluta segurança para a obra do futuro, que requer, não espadachins impulsivos, mas cérebros ilustrados, não patriotas paroleiros, mas gente que pense, estude e saiba onde tem o nariz.

O cidadão mais prestimoso não é aquele que se acha com a melhor disposição de morrer pela pátria, mas o que se ilustra na assimilação do saber do seu tempo, a fim de a tornar mais culta, mais digna e mais bela.

Heitor Luz é uma figura que honra a minguada classe pensante do nosso Estado, é por isso que através destas linhas o saúdo.

(in Terra n. 8, 22 de Agosto de 1920, p. 7)

TEATRO

Foi, há dias, afixado no Café Natal, um cartaz anunciativo da próxima chegada da Companhia Dr.amática Alves da Silva a esta Capital.

O anúncio foi retirado e já não temos esperança de ver de novo no nosso palco a figura simpática do ilustre artista. Estaria ele inteirado do apreço em que o nosso povo tem a Arte Dr.amática? Haveria exigências absurdas da parte dos arrendatários do Álvaro de Carvalho? Mistério.

A Companhia não vem. Tanto melhor para ela e tanto pior para nós. Em vez do cel. Eugênio andar no Rio apregoando aos repórteres embasbacados que o nosso idioma é um sepulcro do pensamento, devia escoimar-se dos melinDr.es bairristas e confessar sem nojo e com lisura que Florianópolis é o cemitério das companhias Dr.amáticas ou líricas que aDr.egam de por aqui passar. Talvez fosse considerada tola e descabida essa frase, escapulida dos lábios de um parlamentar como o Sr. Eugênio. Mas menos descabida e menos tola foi a afirmação de que a Língua de Vieira, de Castilho, de Camilo, de Rui Barbosa - é uma sepultura do pensamento... Há criadas que, não sabendo cozinhar, se queixam das panelas... Non licet omnibus adire Corinthum.

Mas deixemos o cel. Eugênio com o seu imortal sepulcro e volvamos à vaca fria.

Companhia teatral que por aqui passe, ou rebenta, ou sai com as junturas rotas, lamentosamente. Já tivemos oportunidade de nos referir ao amor do nosso povo às palhaçadas torpes dos circos de Cavalinhos, aos quais acorrem multidões hilariantes, tocadas, por assim dizer, duma faísca de loucura, duma inversão dos sentimentos superiores, postos a rastos na pingada das truanices cheias de clowns obscenos. E há pais que não se pejam áe levar às arquibancaáas dos circos a família em peso, para gozar as garimonhas dum fony latrinário! O senhor gargalha, a senhora ri, as senhoritas sorriem e o pequerrucho, já com o arzinho acanalhado de quem vai entendendo, arregala os olhitos, apura o ouvido, retesado no colo da criada - a única que conserva, em respeito aos amos, uma linha heroicamente pudica.

Apenas uma dúzia de espíritos elevados, pairando acima dessas tacanhices, dedicando-se a ideais mais sólidos e mais nobres, calcando com sobranceria o trabalho absconso e atoupeirado da massa ignara, ainda se esforçam para conservar os foros cultos da nossa capital. Se não fossem eles, estaríamos hoje relegados para a craveira dos lugarejos atrasadões da nossa Pátria - que os tem a fartar.

Porque a nota de adiantamento, o sinal nítido e brilhante de civilização não se traduz só no fonfonar dos autos, nem nos vestuários estapafúráios das senhoritas. Um povo educado revela-se pelas diversões por que opina. Ora, nós já tivemos o desprazer de, entre um sarau teatral e uma noitada de circo, ver o circo transbordar de habitués e o teatro transferir a função por falta de espectadores. Provas deste jaez só as podemos ter em Florianópolis e nenhures.

A razão? É ousadia referi-la. Há certas verdades que não devem ser ditas - simplesmente porque ainda ninguém as disse. O arrojo está em manifestá-las pela primeira vez; e Tanto basta para que redundem em lugar comum.

A causa mater está na claudicante educação intelectual do nosso povo, agravada porcincadas do bom gosto. O Amor de Perdição comoveu a cinco gerações de senhoritas que nunca tiveram um Simão Botelho na vida; e em Florianópolis ainda arranca soluções à platéia, por via duma sentimentalidade lacustre... Por quê? Porque há um tio inquisitorial, pistoladas assassinas, prisão, degredo, tizicas e suicídios. Isto entra pelos olhos do espectador, e para o compreender é bastante olhar.

Mas, quando a questão é de raciocínio, de ouvir mais do que ver - por exemplo: o 10 ato do Segredo, de Bernstein - então as coisas mudam de figura por completo. Ninguém vai ao teatro, e a companhia, se não quer rebentar, tem de pôr em cena o Pauzinho, o Preto no Branco e quejandas imoralidades, em que tão gostosamente se rebolca o florianopolitanense.

O Teatro tem o seu postulado artístico e social. Negar-lhe estes caracteres é inutilizá-lo, é nivelá-lo com qualquer genérico de diversão. Como para perceber, compreender e aquilatar tal postulado é mister certo grau de desenvolvimento intelectivo e de afinação sensorial, fica explicada a aversão do nosso povo às peças de fina contextura e de não menos fina essência.

Assinado Albino ROZAS

(In A Semana, 13/06/1915)

O REI ALBERTO VEM...

Dentro em pouco o Brasil receberá - não sabemos se desvanecido ou contrafeito - a visita de S. M. o rei Alberto I, sobrinho e sucessor de Leopoldo II, o argentário administrador da Associação Internacional do Congo.

Grandes e pomposas medidas estão sendo tomadas para que o heróico e já lendário rei fique europeiamente surpreendido com as maravilhas do nosso progresso de mestiços, e, por isso, o dinheiro corre a rodo. Numa época de aperto como esta, em que o povo é sempre quem paga o pato com as últimas moedas ou com o resto da sua histórica pouca-vergonha, a visita de um monarca não será muito agradável. O diacho é que temos de lhe mostrar boa cara e afetar desafogo de vida. Rir-lhe e banqueteá- lo, eis, em suma, o que se deverá fazer durante o tempo em que S. M. e todo o seu séquito se demorarem entre nós e enquanto duas, três, ou quatro empresas cinematográficas, para tal contratadas, forem apanhando os melhores sorrisos e as melhores atitudes de mesa, para os divulgar depois pelo mundo com o fim muito útil de dar a conhecer a maneira como no Brasil se recebem monarcas, e a fartura com que se almoça no Corcovado.

O plano das festas não está fixado. Discute-se ainda. Dar à língua é verdadeiramente o mais fiel característico da nossa nacionalidade. O inglês, p.ex., pensa calado; nós, ao contrário, mesmo nas mais caligantes alturas da filosofia, mesmo no emaranhamento dos frios raciocínios da matemática, mesmo a matutar nos meios de nos evadirmos da prisão, pensamos falando, em voz alta, quando não em tom de discurso. O brasileiro e o peixe perdem-se pela boca. É de recear, até, que o afável e glorioso reis nos venha encontrar ainda a discutir sobre o modo mais digno de o irmos buscar a borão...

Houve, porém, quem já alvitrasse a ida do galeão D. João IV ao costado do Dr.eadnought em que vem Alberto I, e que S. , uma vez em terra, seja conduzido para o Catete no coche que foi do epônimo do galeão. Alguns republicanos puristas farejaram nessa ideia vislumbres monárquicos, e rosnaram, quer dizer, falaram. E a proposta foi rejeitada com toda a sua sequência, que, parece, custaria os olhos da cara à República. Afinal, rios de ouro há de custar qualquer projeto que venha a ser adotado. O vício da ostentação invadiu e saturou o regime republicano em o nosso país: por isso faremos o que pudermos e o que não pudermos. Quer dizer: depois de S. M. regressar à Europa, ficaremos mais encalacrados do que já estamos. É fatal. Fatal e trágico. Pobre que dá banquetes, ou está prestes a ter ingresso no hospício, ou a ser trancafiado na cadeia...

O que está de antemão e solidamente assentado é que várias empresas cinematográficas se encarregarão, sob contrato, de colher os mais sugestivos aspectos das festas que ao rei dos belgas se fizerem, para o exibir no estrangeiro, à guisa de reclamo e propaganda das nossas belezas e riquezas - ou possibilidades, como diriam certos jornaliqueiros enfáticos e melinDr.osos que conhecemos. As objetivas dos tira-fitas hão de pousar defronte das estátuas e dos palácios, dos hotéis e das bocas triunfais das avenidas, a fim de só apanharem gente repleta e coisas suntuosas. Excelente! Mas tudo isso será apenas uma pantomima insuportavelmente enganadora, a despeito do seu majestático esplendor. Alberto I há de ver do Brasil apenas o que ele tem de bom e que é pouco - sejamos francos! - comparado com o que poderia ter sido tão largos decênios de frustradora politicagem lhe não houvessem jarretado o valor para o progresso. Mas ele não verá nem tampouco as fitas registrarão o espetáculo infernal do Nordeste em seca, os milhões de ancilostomados que deperecem por léguas e léguas da paralia zona brasiliense, as extensões formidáveis e quase ignotas do sertão, onde o analfabetismo do caboclo ao nível dos felinos mais temíveis, e, sobretudo, a figura sacerdotal e vampírica do açougueiro citadino que, de manchil em punho, vai impondo a uma plebe que já perdeu o sentimento da reação, uma carne hedionda - a 1 $300 o Kilo, com ossos e pelancas, queiram ou não queiram.

Esses aspectos do Brasil são miseráveis demais para logrem a honra de ser tirados num film onde aparecem a face resplandecente de um monarca heroificado e avenidas coalhadas de melinDr.osas e almofadinhas.

(de Terra n. 5, 29 DE JUNHO DE 1920, p. 7)

SÍNTESE HISTÓRICA DA INDEPENDÊNCIA

Na esperança trêmula e vá de ainda deter a cólera napoleônica, quis o príncipe regente satisfazer algumas das intimações recebidas de Paris; e foi quando a Inglaterra, agora ferida, voltou, por sua vez, as armas contra ele, Era tarde, porém, Napoleão não se deixava iludir. Por sua ordem, o exército do general Junot atravessou a marcha batida o território espanhol e fez irrupção no reino.

Nesse apertado transe, D. João resolveu tornar às boas com a Inglaterra; e, aceitando o conselho do ministro britânico, lord Strangford, embarcou-se para o Brasil ao alvorecer do dia 27 de novembro de 1807, acompanhado de toda a sua família e muitos nobres da corte. O governo ficava nas mãos duma "regência" de cinco membros, a cuja testa figurava o marquês de Abrantes.

Ao largo da Madeira, foi a esquaDr.ilha real assaltada por desabrida tormenta, que a faccionou em duas, chegando a parte mais grotesca à Bahia, a 22 de janeiro de 1808. Dessa parte constava a capitânia, em que vinha o príncipe, o qual só às cinco horas da tarde de 24 desembarcou, prolongando ali a sua estadia até 26 de fevereiro, dia em que partiu para o Rio, aonde aportou em 7 de março.

Localizada a corte no Brasil, com as frivolidades e fraquezas todas da princesa D. Carlota Joaquina, e os 1.200 cavalos que logo D. João adquiriu "para os serviços dos paço", a mágoa dos portugueses que na terra mater ficavam, aflorou e cresceu a olhos vistos. Todos eles criam ou, ao menos, suspeitavam que a metrópole se havia mudado "com os seus trezentos milhões de cruzados, com mais de quinze mil servos tauxiados de fitas e cruzes, conselheiros, desembargadores, marqueses, condes e comendadores, monsenhores e cônegos..."(1).

Uma nova era se abria para a colônia. Quando ainda na Bahia, D, João assinou o célebre decreto, solicitado por lorá Strangforá e aconselhado por José da Silva Lisboa (depois visconde de Cairu), com que franqueava às nações amigas os portos do Brasil; quatro dias depois de chegar ao Rio, organizou o seu ministério; a Io de maio declarou guerra à França, mandando imediatamente invadir a Guiana Francesa, suja capital se renáeu a 12 de janeiro do ano seguinte (1808).

Sem ideias originais nem arrojo de iniciativas, o príncipe regente foi em boa hora guiado por esclarecidas inteligências. A sua administração, assim, pôde ser fecunda desta banda do Atlântico. No Rio de Janeiro, p. ex„ criaram-se as Secretarias no Estado, o Supremo Conselho Militar e de Justiça, o Arquivo Militar, a Mesa do Desembargo do Paço e da Consciência e Ordens, a Casa de Suplicação, o Tribunal da Junta de Comércio, o Erário Régio, o Conselho de Fazenda, a Provedoria Mor da Saúde, a Imprensa Régia, a Academia de Marinha, a Escola Médico-Cirúrgica, a Academia de Ciências Físicas, Matemáticas e Naturais, a Biblioteca Pública, o Jardim Botânico, a Fábrica de Pólvora da Lagoa RoDr.igo de Freitas e, como áigno remate a tantas criações de utilidade pública, o Banco do Brasil, com o capital de três milhões de cruzados, divididos em 1.200 ações de conto de réis cada uma. Diversas povoações foram elevadas à categoria de vilas (a primeira foi a de Porto Alegre I), e autorizou-se a fundação na Bahia da primeira oficina tipográfica. Os únicos monopólios conservados foram o do "pau-brasil" e o dos "diamantes". Não tardou também a ser decretada a emancipação industrial do Brasil, suspendendo-se a proibição para o fornecimento de fábricas e manufaturas (2),

Tudo isso vinha facilitar o incremento da riqueza colonial, que atraía elevado número de estrangeiros, desejosos de tratar com as cidades marítimas franqueadas ao comércio dos povos.

"A separação política do Brasil, ainda que efêmera no sentido da lei, era-o já definitiva no sentido dos fatos" (3).

E essa separação não fez mais que acentuar-se.

Simultaneamente, tornava-se a corte impopular, devido a causas múltiplas, e o absolutismo era criticado, censurado, impugnado com o mesmo ardor por constitucionalistas e republicanos.

Da cronologia, de que tanto receio abusar, é que me vou servir agora para encurtar a exposição da série dos acontecimentos subsequentes.

Desejando a república, fundam os pernambucanos uma sociedade democrática em 1814. A16 de dezembro de 1815, D. João eleva o Brasil à categoria de "Reino Unido ao de Portugal e Algarves". No ano seguinte, a 20 de março, morre a rainha D. Maria I, subindo o príncipe regente ao trono com o título de D. João VI. Em 1817 duas revoluções estalaram: Uma em Portugal, de intuitos constitucionalistas; outra em Pernambuco, de caráter legitimamente patriótico e nobremente humano, que, tendo-se ateado com relativa facilidade, chegando até a captar a adesão da Paraíba, do Rio Grande do Norte e das Alagoas, foi, dentro em pouco, afogada em sangue. Quase todos os que a pregaram ou chefiaram foram trucidados. O Padre Roma, designado para ir à Bahia, foi preso, ao desembarcar, no dia 26 de março e fuzilado, três dias depois, no Campo da Pólvora; às 10 horas da manhã de 12 de junho, também na Bahia, foram espingardeados José Luís de Mendonça, Domingos José Martins e o padre Miguelinho; na sentença lavrada no Recife, a 8 de julho, contra Domingos eotônio Jorge, José de Barros Lima (o "Leão Coroado") e o Padre Pedro de Souza Tenório, vinham estas palavras: "as sobreditas penas se executem nos réus, os quais, todos, depois de mortos, terão cortadas as mãos e decepadas as cabeças, e se pregarão em postes, a saber: a cabeça do primeiro réu na Soledade e as mãos no quartel; a cabeça do segundo em Olinda e as mãos no quartel; a cabeça do terceiro em Itamaracá e as mãos em Goiana, e os restos dos seus cadáveres serão ligados a caudas de cavalos e arrastados até o cemitério"; também no Recife ainda foram enforcados Amaro Gomes Coutinho, José Peregrino Xavier de Carvalho, Ignácio Leopoldo de Albuquerque Maranhão, Francisco José da Silveira, Antônio Henriques Rabello e o Padre Antônio Pereira; o cadáver do Padre João Ribeiro P M. Montenegro (que se tinha suicidado) foi desenterrado pela soldadesca portuguesa, que o degolou, levando em triunfo pelas ruas do Recife a cabeça do grande patriota.

Desde essa época, as simpatias brasilienses se divorciaram completamente de D. João VI que, entretanto, viu passar os dois anos seguintes e quase todo o terceiro no maior sossego possível.

Não direi palavras sobre a campanha realizada contra os caudilhos Rondeau e Artigas, para poder aludir ã revolução de... 1820, levada a efeito em Portugal, onde a administração do general inglês Beresforá foi rejeitada e substituída por uma Junta Provisória, que reuniu as cortes, baniu o absolutismo e proclamou o regime constitucional. Em fevereiro de 1821, coagido pela opinião partidária que o assediava, promete D. João VI adotar da futura constituição portuguesa os pontos aplicáveis ao Brasil; mas essa promessa exclusiva desagradou às tropas aquarteladas no Rio, que, pegando em armas, se rebelaram e tumultuariamente impuseram ao Rei aceitasse a constituição "tal como as cortes a viessem a decretar". D. João VI, de pronto, capitula. Não era homem para resistências tenazes, e o fim trágico de Luís XVI enchia-o dum terro obsidiante.

Foi quando o conde de Palmela, o ministro inglês no Rio, Thorton, e algumas outras pessoas da corte, pintando os acontecimentos de Portugal com as cores mais suspeitas, entraram a sugestioná-lo para regressar à pátria. Pelo decreto de 7 de março manifestava o rei a vontade de voltar para a Europa. Outro decreto da mesma data dava instruções para a eleição dos deputados da colônia às Cortes Portuguesas. Essa eleição obedecia provisoriamente às normas da constituição espanhola de 1812 e, ao realizar-se um dos seus graus, a 20 de abril, no edifício da Bolsa, a reunião assumiu caráter de motim; e D. João VI, sempre receoso, acedeu a todas as exigências que os procuradores da tumultuosa assembleia lhe fizeram, notadamente o juramento da referida constituição espanhola. Mas, às 3 horas da maãrugada do dia 21, como a sessão, sempre agitada, se havia prolongado e provavelmente planejava novas exigências, um destacamento da tropa lusitana assalta de improviso o edifício e dissolve a tiros e pontaços de baioneta a ardorosa mas desprevenida assembleia.

Esse acontecimento, que encheu de indignação todos os corações....ilenses, veio, entretanto, animar a altesa e a doblez de D. João VI, que, no dia seguinte (22), sem razões plausíveis, anula tudo quanto sua régia palavra havia prometido e nomeia o príncipe D. Pedro regene e seu lugar-tenente no Brasil.

A 23 lança uma longa proclamação aos habitantes do Rio de Janeiro, em que lhes aconselhava "benevolência e prudência" e deles se despedia.

Pronto para seguir, afinal para a Europa, deu el'Rei, a 24, beija-mão a quantos se foram despedir dele na quinta de São Cristóvão; no dia seguinte, em que se comemorava o aniversário da rainha, embarcou, ao romper d'alva; e, mais ou menos às 7 horas da manhã de 26, a esquaDr.a largava da baía do Rio de Janeiro.

D. Pedro ficava, pois, como regente do Brasil, tendo-lhe sido dados poderes plenos, além do direito de conceder postos e condecorações, havendo somente a este respeito restrições, no caso de se tratar de bispos, e podendo, mesmo, em lance de urgência, fazer a guerra e aceitar tréguas. Todos os negócios do Estado deveriam ser tratados e decididos em conselho, tornando- se por eles responsáveis os ministros que os propusessem e referendassem (4).

Mas, o exercício desses direitos não se pôde dar livremente, tais foram os óbices que encontrou o príncipe ao tomar nas suas mãos a governança. Apoiado, entretanto, pelo ministério que organizara, começou por cercear as despesas públicas.

Não tardou a chegar de Portugal aquilo que mais receavam os brasileiros: as insidiosas pressões da corte, visando à recolonização do Brasil... Manifestava-se a primeira no decreto em que se declaravam independentes do Rio de Janeiro as Juntas Governativas das Províncias, sujeitando-as em linha direta aos tribunais de Portugal - o que restringia grandemente a ação de D. Pedro, reduzindo-o, nem mais nem menos, a simples governador do Rio de Janeiro.

A animosidade entre brasileiros e portugueses avultava cada dia. Fundaram-se clubes patrióticos, e Joqauim Ledo deu a lume o periódico Reverbero.

Após a eleição dos deputados às Cortes de Lisboa, espalhou-se a notícia de que já lá tinham sido decretadas as bases da nova Constituição, e a tropa portuguesa, aquartelada no Rio, revoltou-se sob o comando de Jorge de Avilez, impondo ao príncipe o juramento das mesmas. O ministério demitiu-se, mas D. Pedro acedeu, enquanto que a exaltação dos ânimos crescia. Pouco depois, o traiçoeiro plano da recolonização do Brasil se mostrava abertamente em dois decretos emanados de Lisboa e datadosá de 18 de setembro, nos quais respectivamente se ordenava a supressão dos tribunais do Rio e a partida de D. Pedro para a Europa "fim de viajar e completar a educação, pois a sua permanência no Rio, além de desnecessária, era indecorosa à sua alta jerarquia".

Tomados de indignação os brasileiros induziram o príncipe a desobedecer às ordens recebidas, e de todos é conhecido o dia que na nossa história tomou o nome de "dia do Fico", em que D. Pedro, tendo resolvido deixar-se ficar no Brasil, depois de receber a representação assinada por oito mil patriotas, respondeu ao povo:

"Como é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto a ficar. Dou-vos com a minha pessoa a minha dinastia" (9-1- 1822).

A Divisão auxiliadora, comandada por Jorge de Avilez, tencionava prender o príncipe e embarcá-lo para Portugal. A essa atitude hostil e deprimente, responderam os brasileiros pegando também em armas e obrigando a Divisão a retirar-se da cidade e seguir depois para Lisboa.

José Bonifácio, o patriarca da nossa Independência, é chamado pelo príncipe para ocupar a pasta do Reino e Estrangeiros, e, nesse lugar, teve as melhores oportunidades para louvar e sustentar a atitude de D. Pedro contra a metrópole.

A 16 de fevereiro de 1822 é publicado o decreto que restitui a unidade política ao Brasil.

Cinco dias depois novo decreto é assinado, estatuindo que nenhuma lei portuguesa teria efeito no Brasil sem o cumpra-se do príncipe regente. E como de Portugal havia partido uma esquaDr.ilha com forças para o Brasil, a 17 de março uma circular levava a todas as províncias do litoral a ordem de não permitir o desembarque das mencionadas tropas. O Senado da Câmara, a 13 de março, confere o título de Defensor Perpétuo do Brasil a D. Pedro, que a 3 de junho, levado na corrente dos acontecimentos, convoca uma Assembleia Geral Constituinte e Legislativa.

O final da narrativa, fá-lo-ei servindo-me das palavras dum historiador brasileiro: "Ao passo que o príncipe regente assim inaugurava o sistema constitucional, desenvolvia maior atividade e firmeza na sustentação dos direitos do novo império que ora começava a constituir-se. Para selar esta grande obra da libertação do país, o decreto de 10 de agosto de 1822 ordenou que fossem repelidas como inimigas quaisquer tropas portuguesas enviadas ao Brasil. A 6 de agosto dirigiu o príncipe regente um manifesto aos governos e nações amigas, expondo a marcha dos acontecimentos e a situação do Brasil, oferecendo-se a entabular com todos eles relações de amizade, e declarando continuarem abertos os portos ao comércio. Em seguida, D. Pedro deu princípio à guerra, fazendo partir numa expedição sob o comando do general Pedro Labatut, em auxílio dos patriotas da Bahia.

Na província de S. Paulo, lavrando-se séria desarmonia, para ali se dirigiu o príncipe e conseguiu com a sua presença e com adequadas providências, aplacar os espíritos, voltava - depois pelas margens do Ipiranga, quando recebeu novos decretos das Cortes, nos quais se davam por nulos todos os atos do governo do Brasil; então o príncipe compreende que não podia contemporizar mais e logo alçou nos campos do Ipiranga o grito - "Independência ou morte!” (5)

"Em verdade, diz João Ribeiro, "em verdade, o 7 de setembro não se traduz por ato oficial algum e dele quase não há notícia completa e pertence à história anedótica do príncipe; mas esse rasgo de impaciência teve grande propagação" (6).

Realmente, mas nele se consuma a nossa autonomia.

As lutas que se seguiram pertencem à história do Brasil-império.

Aclamado Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, a 12 de outubro, D. Pedro é sagrado e coroado a 10de dezembro.

"Ele era um instrumento, mais do que um agente", diz Oliveira Martins (7); e esse seu dizer baseia-se na verdade, pois que "a independência do Brasil era um fato necessário, como consequência da história anterior, e não o ato voluntário de um homem" (8).

* ★ ★ ★

Como quer que se seja, resta perguntar: - Se Napoleão, com a alavanca do exército de Junot, não houvesse jogado D. João VI para o Brasil, teríamos conquistado em 1822 a nossa independência?

Não é fácil responder afirmativamente.

O que é fato é que o Brasil se libertou do jugo português e, hoje, honrando a liberdade que dignamente conquistou, caminha resoluto e confiante para o futuro.

Aliás, olhar para o futuro é o dever de todos - nacionalidades e indivíduos - o que não quer dizer que devamos aprenunciar o passado, não. Mas, o passado só é útil quando tem o valor de uma lição de incitamento progressista e virilidade moral.

Tenho visto indivíduos assentarem-se à borda de pequenos fatos históricos, sem importância de espécie alguma, e ficarem assim, chinesmente encolhidos, com uma varinha na mão, a remexer o pequeno lago, no desejo infantil de o transformar num vasto, grosso e iracundo oceano...

Patriotas falidos, que enganam a Pátria com odes e discurso empolados nos quais se cantam talentos e triunfos de quinta ordem, não toleram que a aspiração dos outros seja plenamente combativa, revolucionária mesmo, mirando a um futuro em que resplandeça um Brasil mais unido, mais forte, mais sábio, infenso às mentiras e mazelas que carcomem a pureza do Evangelho Republicano.

Quando o passado vale tanto quanto uma moeda que deixou de circular, é preciso lançá-lo para o lado e preparar o resgate do futuro.

O patriota honesto não é o que diz à sua pátria: "Foste grandel" - mas o que de vez em quando lhe repete: "Foste pequena, és grande, é preciso que ainda sejas maior!"

Estudemos o Passado, sim, com alma e entusiasmo, procurando extrair dele a maior quantidade de seiva possível que nos vitalize para as difíceis conquistas do futuro!

Só assim demonstraremos o nosso patriotismo sem deixarmos de ser razoáveis.

Tenho dito.

Oliv. Martins - O Brasil e as Colônias Portuguesas, livro III, cap. I, p. 103

Duque Estrada - História do Brasil (curso sup.), parte VIII, cap. I, p, 304

Ver Hist. Do Independência do Brasil, de Varnhagem, In Rev. do Inst. Hist. e Geog Bras., tomo LXXXIX (191 7), p. 81,

(5 )Moreira Pinto - Epitome de Hist. Do Brasilp. 141 -143

Op. cit. Parte IX, cap. 2, p, 401

Op. cit. loc. cit. p. 108

Op. cit. loc. cit. p. 108

In Terra n. 12, 19 de setembro de 1920, p. 11; n. 13, 28 de setembro de 1920, p. 16-1 7; n, 14, 3 de outubro de 1920, p: 6

A ILHA DOS CASOS RAROS

A tranquilidade, a monotonia da vida em nossa terra, - agora perturbada pelo crescimento da população, as buzinas azucrinantes dos automóveis, o alarido sonoro dos rádios e o pregão enervante dos camelôs, - deu ensejo a que fosse outrora considerada lugar próprio para repoiso ou estação-de-cura, não falando nas vantagens do preço dos gêneros alimentícios e dos aluguéis de casas, de então.

Nesse ambiente pacífico - que não obstou ao enrijamento da têmpera dos valorosos soldados "barrigas-verdes" e dos intrépidos canoeiros que soltam as velas para o mar largo e sobre o dorso eriçado da vaga fazem arrojadas maravilhas, - nem sempre fatos sensacionais se registravam. Por si acaso abrolhava no calendário local um acontecimento de vulto, triste, sério ou estrambótico, um escândalo polpudo, um crime estardalhante, logo se dizia que a coisa era digna desta terra dos casos raros. A raridade do fato arrastava após si, durante largos dias, infinitos comentários.

E a expressão vulgarizou-se com a variante: ilha dos casos raros.

Será o dito comum a outras terras? Não sei. Entre nós, porém, foi usual, na conversa como na escrita. Até hoje o é.

Interessante, porventura, seria pesquisar - quando pela primeira vez, em letra de molde, apareceu a expressão, no periodismo do Desterro. Já se disse que ela aqui corria há muito tempo. Ponho de lado o emprego mais moderno, para ir a fontes recuadas, cada vez mais recuadas,

*****

Assim, no DESPERTADOR, de 31 de Agosto de 1872, lê-se um artigo político, intitulado "Candidatura extemporânea", tendo ao cabo dois asteriscos, e cujo começo reza:

"Quando alguns espíritos forte chamam a esta terra a - ilha dos casos raros, - têm algum fundamento para isso".

* * * *

No mesmo jornal, edição de 20 de Setembro de 1864, vem um editorial, que assim se inicia:

"Bem se diz que esta é a ilha dos casos raros". *****

Um tópico do MERCANTIL, em 29 de Novembro de 1863, comenta:

"É um dos casos raros desta terra dos casos raros, pagar o Estado a um promotor público para estar em santo ócio escrevendo em descrédito da realeza, isto é, atacando uma das gases fundamentais da constituição".

(O "promotor" visado pela flechada do MERCANTIL, diga- se de passagem, era Marcelino Antônio Dutra, o "Poeta do Brejo").

* * * * *

O ARGOS, de 6 de Novembro de 1861, observa que "terra dos casos raros é fama que "desde longa data" tem "a província de Santa Catarina".

(Note-se que nesta referência não se trata apenas da Ilha, mas, declaradamente, da "província de Santa Catarina").

* * * *

Uma das alusões mais antigas me parece ser a que se colhe em O NOVO ÍRIS, de 24 de Maio de 1850, nesta pergunta ácida:

"Para que em nada deixe de verificar-se um dito sarcástico de Frei Antônio (o macuco), crismando a Terra de Santa Catarina por Ilha dos casos raros - o que é que miseravelmente estamos presenciando?..."

*****

Anteriormente a essa referência não achei outra. Talvez seja a que se contém, originariamente, no tal "dito sarcástico" de Frei Antônio (o macuco).

Quem foi, porém, esse "Frei Antônio"? Não será fácil identifica-lo. É bem possível se trate de Marcelino Antonio Dutra, espírito combativo, humorístico, satírico. Mas, por que chamar-lhe "frei"? Quiçá por ironia, dado o seu feitio irreligioso, acatólico (de que poderia aduzir provas se não receasse tornar-me fastidioso).

"Macuco" era um de seus apelidos; "Savelha", outro. O professor poeta, apesar de sua veia sarcástica, foi ferozmente causticado na campanha política de 1850. O Pe. Joaquim Gomes de Oliveira e Paiva, vaidoso e politiqueiro, que passava por ser o diretor do NOVO ÍRIS, deu-lhe fundas estocadas. Várias foram as formas de ataques com que o saltearam. Serviram-se contra ele até de charadas malcozinhadas, de que citarei um exemplo:

CHARADA MUI DIFÍCIL Ronco quando estou irado - 1 [Mar]

Tira do cebo [s/c] a primeira - 1 [ce]

De Mali [?] a derradeira - 1 [li]

É um círculo bem fechado 1 - [nó]

CONCEITO É bicho, é gente,

É peixe, é lente,

É poeta Que a meta Passa insolente [Etc.]

Que Marcelino Antônio Dutra era lente" (professor) e "poeta", sabe-se; de peixe tinha um apelido ("Savelha"); de "bicho", outro ("Macuco"). Por conseguinte, parece que o "Frei Antônio" a que alude o NOVO ÍRIS era de fato o "Poeta do Brejo". Se assim for, a ele se deve a alcunha de Ilha dos casos raros"com que foi Santa Catarina batizada.

Guia do Estado de S. Catarina Suplemento de 1938, p. 55-58

O “DIVINO” NO DESTERRO

Ao amigo Acelon Souza

Em artigo publicado na edição especial do Diário da Tarde de Florianópolis, em 6 de Outubro de 1948, relevei certas referências dos escritores portugueses Maximiliano de Azevedo, Raul Brandão e Hipólito Raposo à festa do Espírito Santo nas Ilhas dos Açores, e referi-me, muito à pressa, à evolução ou, melhor dito, à decadência dessa festa entre nós.

Paulo José Miguel de Brito, que por aqui andou em 1797 e, mais tarde, talvez em 1815, escreve na sua preciosa Memória Política sobre a Capitania de Sana Catarina (págs. 73-74): "O que em geral posso dizer dos habitantes desta Capitania é que eles são muito fiéis ao seu Soberano, muito inclinados aos atos de nossa Religião, tanto públicos como particulares, às festividades da Igreja e às procissões, e principalmente às festas do Espírito Santo, o que tudo vi fazer em Santa Catarina, não só com decência, mas até com grandeza".

Parece-me que o autor, embora incluísse as festas do Espírito Santo entre os atos da, como ele diz, nossa Religião, estrema-as das festividades da Igreja e das procissões. Como não aduz mais nenhum comentário, torna-se impossível afirmar se, de feito, quis atribuir caráter menos ortodoxo à festa do Divino, tal qual era efetuada pelos velhos desterrenses.

Através da leitura de amarelentos jornais da antiga Capital, pude forragear diversas notas acerca das festividades do Espírito Santo, aqui, e da Santíssima Trindade, na freguesia do mesmo nome, Atrás do Morro. Ambas essas festas não se distinguem. Ao contrário: fundem-se e completam-se. Pois não é o Espírito Santo uma das pessoas da Trindade católica?...

A 7 de Junho de 1854 - há, portanto, noventa e cinco anos - "Um Devoto" publicava pelo Correio Catarinense um "A pedido" referente à festa do Espírito Santo, no Desterro. Pelo seu dizer, vê-se que também aqui havia a "folia", que era praxe percorrer as casas dos irmãos, "cobrando os competentes anuais". No ano anterior, dizia o articulista cum grano salis, "graças ao progresso do século", o "costumado leilão teve lugar em uma casa do quartel da Tropa de 1a Linha". ri Censurava os abusos que, durante as novenas e o leilão de prendas e "promessas", isto é, dentro e fora da Igreja Matriz, se verificavam constantemente e de tal forma que a algazarra era ouvida até "em lugares muito distantes". Os músicos da folia eram troçados pelos mais audaciosos. Não podiam as "pessoas honestas" tolerar tais excessos e, tampouco, o jocoso costume de "ofertar ao Divino Espírito Santo segredos que quase sempre continham um mimo que deixava o arrematante de cara à banda..."

O mesmo jornal, catorze dias depois, insere, a propósito da festa da Trindade, uma croniqueta, cuja assinatura eram dois simples asteriscos, que decerto encobriam um dos "leões" da elegância desterrense. A sua maior preocupação eram as mulheres e as modas. Refere que na manhã do dia 11 de Junho seguira "para Atrás do Morro em companhia de uma bela reunião de senhoras e cavalheiros, pelas boas estradas, cujos moradores se achavam muito animados". A Igreja não estava concluídal*"1. Pelas 10 horas da manhã, "teve lugar a festa, que foi celebrada pelo reverendo vigário da Freguesia, o qual estava um tanto agoniado, talvez por estar em jejum até o meio-dia, hora esta em que chegou o Imperador do Espírito Santo, acompanhado da competente folias, os quais se colocaram na capela-mor, que se achava decentemente ornada. Achou o cronista "ser muita economia da parte do festeiro, ou da irmandade o fato de só terem ido ao ar dois foguetes, um ao principiar e outro ao acabar da festa. Embora em obras de construção, estava o templo repleto de "pessoas distintas, de ambos os sexos", que ali faziam as suas orações e depositavam as "promessas ao Divino". As senhoras tinham ido ao arraial montadas em "lindos cavalos", apesar do frio vento sul, "não se divisava em seus semblantes senão alegria". O localista, romanticamente encanado, descreve a toilette da que ele chamou a Flor das que se apresentaram a cavalo na festa de Trás do Morro. Trajava "vestido e jaquetinha verde-escuro, chapéu de palha à pastora, com fita azul-claro". Outra, morena, que ele crismou de Deusa dos Amores ostentava "cabelos mui pretos em trancinhas", os seus olhos tinham brilho "igual aos planetas Vênus e Júpiter" e trajava "vestido roxo e xaile preto". A terceira, "de cor clara, que trajava vestido azul com três barras de mimosas flores e chapéu de palhinha guarnecido de fitas azuis-claras e mimosas rosas", ele chamou compridamente, como era do seu gosto, a Flor do Menino Deus que vai abrilhantar a festa do Espírito Santo da Trindade. Finalmente, a quarta, a Estrela da Alva da Festa do Espírito Santo de Trás do Morro, "estava sentada na Sacristia, trajava vestido de fina cambraia, mui simples", tinha os "cabelos pretos com penteado de bandos e uma flor ao lado, que tão bem lhe assentava". E fecha ele a crônica elegante, baixando das esferas da poesia à suculência do "belo jantar" oferecido pelo "amigo Cabral, que sempre se tornará lermbrado..."

Em 1856, tinha o Mensageiro um cronista que raivava contra a festa do Divino. Eis como ele se expandia na crônica de 23 de Abril:

"Ninguém como eu respeita os usos e costumes religiosos, ninguém como eu respeita a Religião, que me ensinaram, ninguém como eu acata e reconhece a necessidade do culto externo. Não posso, porém, habituar-me a ver usos e costumes que possam tornar ridículo o que é santo, risível o que deve ser respeitado. O que quer dizer - andar, pelas ruas de uma cidade civilizada, uma música infernal, composta de uma mal tocada viola, de enferrujada rabeca e de um insuportável tambor? Será isso culto? Não seria melhor pagar a uma banda de música? Não há dinheiro, me dirão. Nesse caso, melhor é dispensar uma coisa e outra, e cobrar os anuais sem rabeca, assim como se faz nas demais irmandades. Isso que se chama folia é dessas coisas que não têm pés nem cabeça e que só servem para nos envergonhar na presença de pessoas estranhas que estejam na terra. Será bom, portanto, que se aposente o Felisberto e todos os foliões passados, presentes e futuros!"

Dito seja entre parênteses que o tal Felisberto era o velho rabequista mestre da folia; picando-se com o remoque do jornal, nunca mais quis musiquear nas festas do Divino...

Nesse mesmo ano, a propósito da festividade então realizada, e já com fígado mais aliviado, escreve dulçurosamente o cronista na edição de 14 de Maio:

"Era na noite de domingo do Espírito Santo. À sultana da noite, marchando por sobre o azulado tapete do céu, recamado dos mais ricos brilhantes, das mais preciosas pérolas e rubis, miravase, enamorada de si mesma, nas prateadas águas da formosa Desterro. Uma multidão compacta enchia o adro da igreja matriz, contemplando no céu as maravilhas de Deus e na terra o louvava e adorava na forma de uma inocente pombal. E se nessa noite o céu era belo, se milhares de estrelas mais belo ainda o tornavam, também a terra nada tinha a invejar-lhe, porque sob a barraca armada ao lado da Igreja, também se viam estrelas luzentes, também era ali um céu na terra! Numerosas e delicadas oferendas foram feitas ao Espírito Santo e algumas delas foram por alto preço arrematadas. Excelentes braços, pernas bem torneadas, gaiolas, galinhas, segredos, tudo rendeu bem no leilão, e melhores preços não achariam no mercado comum. Na sala do dossel do Imperador sentava-se este, empunhando o cetro sagrado e tendo às suas ordens o seu fiel Pajem do Espadim, ambos primorosamente vestidos - ambos florentes aetate. Árcades ambo. Para suprir a falta do Felisberto..., uma banda de música fazia ouvir de vez em quando ricas peças, tornando-se assim mais agradável a noite e desterrando-nos da memória os monótonos sons daquela clássica viola e daquele célebre tambor!"

Era anônimo o cronista; literalmente assinava... De cruz. Não era apenas lírico; mas, às vezes, zombeteiro e gaiato. Senão, vejamos só o que ele diz na crônica de 27 de Maio:

"... No domingo da Trindade, apesar de se terem aberto nesse dia as cataratas do céu, houve muito devoto que foi à romaria... Houve por lá cenas bem curiosas, como exercícios equestres acompanhados de chicotadas para aquecer o corpo, boas quedas dos morros, que deixavam ver interessantes vistas, pernas finas e grossas, brancas e pretas, saias borradas (de lama) et coetera e tal!"

A chuva não permitira a realização da festa da Trindade naquele dia (24 de Maio). Por várias vezes adiada, somente veio a efetuar-se a 13 de Julho. Infelizmente não temos notícia de como transcorreu.

Porém, no ano de 1857, dizia o cronista do Argos, a 23 de Julho:

"Existe nesta nossa boa Ilha um pitoresco vale que forma o arraial ameno da Santíssima Trindade, hoje elevada às honras de freguesia, apesar de, para isso, não ter gente nem jeito, ou modos e maneiras, como dizia um velho mestre da nossa terra. Ali há um templo, que por ora se reduz a quatro paredes, sem altares nem imagens; entretanto, chama-se Igreja Paroquial. Uma romaria anual convida a esse lugarejo toda a população da Capital. É na dominga da Trindade que tem lugar essa festança, com Imperador do Divino, leilões, muito cavalo pastando no adro da igreja, etc. etc. Os pios fiéis, por devoção ou por ostentação, arrematam as ofertas por preços fabulosos em relação ao seu valor real! Roda dinheiro ali, que não é brincadeira! Porém, todos os anos, há a mais severa economia pelo que pertence a adornos do altar e atos religiosos, limitando-se (o que é vergonha dizer) toda a festa religiosa a uma missa rezada. Por maior que seja a renda dos leilões, não há uma colcha de seda para forrar o espaldar do Imperador; servem-se de um cálice que pertence a outra igreja; não se convida ao menos o vigário a que cante uma missa, recite um sermão, etc. É uma ingratidão! E que fumaça ceva tantos cobrinhos arrecadados naquele dia de matutina festança, e as outras esmolinhas que caem nas devoções noturnas dos sábados? Não nos prevaleceremos da ocasião para censurar as simplicidades que por ali se dão, v. g., deixar o Imperador o trono e ir de manto ao adro fumar o seu papa-terra de palha, etc."

Era costume exercer o papel de Imperador o filho do festeiro; se não tinha filho, ou, se, tendo-o, contasse este mais de quinze anos, era-lhe facultado convidar para cingir a coroa um rapazito de família do seu parentesco ou das suas relações. Mas houve ano em que o próprio festeiro quis por vaidade empunhar o cetro imperial. Foi certamente um desses, que o cronista do Argos viu a espairecer no adro da igrejinha, de manto escarlate aos ombros e papa-terra entre os beiços.

Julgo serem essas as notícias mais antigas sobre as festas do Divino e da Trindade, em nossa Ilha.

Entre os escritores conterrâneos que melhor descrevem esses festejos, incluem-se Virgílio Várzea e Crispim Mira, aquele no seu livro sobre a Ilha e este na sua Terra Catarinense. Várzea, principalmente, é rico em pormenores acerca de como se organizavam e realizavam as festividades, ao fim do século passado e que até à primeira década do presente se revestiram de ruidosa pompa; Mira tem apenas um capítulo sobre a folia do Divino nas localidades do Interior, em geral, e cita quaDr.as cantadas pelos foliões, mas sem notar onde foram colhidas. Esse autor, escrevendo em 1920, já dizia (pág. 145): "Tem decaído muitíssimo a antiga folia do Divino Espírito Santo... Presentemente estão rareando os bandos do Divino. Mas, ainda agora, como noutros tempos, constam da bandeira, da viola, rabeca e tambor",

Lacerda Coutinho, o notável poeta catarinense, tão mal conhecido entre os da sua grei e do qual o erudito desembargador Henrique Fontes escreveu primorosa biografia dele, sobre a Folia do Divino, um sonetilho caricatural, mas de inconteste expressão realista (*****) 1Ei-lo:

Uma bandeira encarnada,

várias fitas muiticores,

no topo, em ninho de flores,

uma pomba prateada,

uma rabeca safada,

três ou quatro berradores,

entre dois roucos tambores,

viola desafinada,

salva de estanho e sacola

com o emblema columbino,

destinado à oferta, à esmola,

isto e mais algum menino,

que tenha gazeado a escola,

é...Floria do Divino

Há quinze anos, mais ou menos, vindo em automóvel, de Tijucas, encontrei pouco além do sítio de Sorocaba, por uma tarde de loiro sol maiozinho, um desses grupos de foliões. Que saborosa graça tinham aqueles musiquins do Divino, acompanhados de uns dez ou doze "devotos", a tocar e a cantar diante duma casita erguida à beira da estrada, à sombra de farfalhudas bananeiras! O automóvel passou à desfilada e aquele quadro rusticamente harmonioso lá ficou para trás, envolto em dourada nuvem de poeira. Ainda hoje cerro os olhos, numa evocação saudosa, e parece-me revê-lo, com a mesma vida, o mesmo colorido, a mesma singela harmonia...

n O dogma da Trindade foi solenemente proclamado pelo concílio ecumênico de Constantinopla, no ano 381, e encontra-se integralmente estruturado no famoso "Símbolo de Santo Atanásio" (Qui vult salvus esse...), em uma de cuias passagens se define: Ita Deus Pater, Deus Filius, Deus Spiritus sanctus, et tamen non três dii, sed unus est Deus".

Porém, a festa da Trindade (festum SS. Trinltas) só muito arde veio a institulr-se de maneira individualizada. Houve, a principio, o movimento particular de algumas igrejas, no sentido de se solenizar cada ano o mistério da Trindade, devendo salientar-se dente elas a de Artes e a de Lieja. Deu-lhes o papa João XXII o seu placet em 1334 e, embora inscrevendo a festividade entre as de segunda classe (festum secundae ctassls) do ano eclesiástico, estendeu-a a toda a Igreja.

(**) Era o amplo quartel construído no governo do Coronel Manoel Soares Coimbra, pelos fins do século XVIII, por sós 600 mil réis, e do qual apenas restam alguns paredões arruinados, que tristemente se esboroam no Largo do General Osório. Repare-se na expressão: "uma casa do quartel”. O velhinho dicionarista Morais registra, sobre o termo casa, o seguinte: Peça ou quarto do edifício: v.g., casa de jantar, de dormir, de música". O filólogo português V. Botelho do Amaral informa que no Sul do seu país ainda hoje se dá preferência à palavra casa, no sentido em que no Norte se diz habitualmente sala. Portanto, a "casa do quartel", a que o cronisto se referia, outra coisa não era senão uma sala daquele edifício militar.

(***) Logo que pela lei provincial n. 352, de 23 de Março de 1853, foi criada a Freguesia da Santíssima Trindade de Trás do Morro, deu-se forte impulso à ereção da respectiva igreja, mas daí a pouco, arrefeceram os trabalhos de construção e, assim, por vários anos se arrasara.

(****) Não andou certo o cronista na citação. Enganou-o a memória... visual. Trata-se do 4o verso da Écloga VII de Virgílio, que, correto, é isto: Ambo florentes aetatibus, Árcades ambo: e, troduzido, diria: "Ambos na flor da idade, Árcades ambos”.

(*****) Pág 126 do livro póstumo Páginas Soltas (Rio de Janeiro, 1913 Tip. Bernard Frères - Rua do Hospício, 130). Anuário Catarinense - 1949, p. 95-98

TOURADAS NO DESTERRO

Altino Flores

Divertimento de grande cotação, na capital catarinense, foram outrora as corridas de touros. Domingo de Tourada era motivo para exibição de roupas e sapatos novos. Vizinhos combinavam-se para ir juntos ao circo, em grandes lotes palreiros. Os periódicos publicavam anúncios berrantes, realçando a importância das sortes a serem executadas pelos capinhas, espadas e moços de forcado. Às vezes, iscados do entusiasmo reinante, alguns amadores locais se propunham a tomar parte nos espetáculos das empresas que armavam os seus circos na cidade. A alegria alvoroçada dessas tardes remotas era bem a prova de que a Ilha tinha sido povoada de Lusitanos e ocupada, embora por pouco tempo, por soldados, marujos e aventureiros espanhóis. Questão da massa do sangue: vinho da Madeira cortado por um tantito de Xerez... Chegou a possuir o Desterro não só um público exigente em matéria de tauromaquia, como também alguns cronistas rigorosos da arte de tourear.

A 10 de setembro de 1882, domingo, realizou-se uma corrida em que figurava o amador conhecido por "Feliciano Ticotico". Na quara-feira seguinte, o cronista do Despertador, com inegável segurança técnica, fez a crítica dessa "corrida de quatro novilhos", em que "o gado não era de todo mau e deu algumas sortes para bandarilhas": para o cavaleiro, que fora o dito Feliciano, as observações do cronista são severas: "Este, parece-nos, nunca virá tourear a cavalo, porque , se ao menos tivesse viso, não se exporia pelo lado esquerdo, nem quereria picar o boi por esse lado, o que é erro imperdoável e pode ser funesto, etc. é também imperdoável que o Sr. Feliciano se apresentasse ao público trajando um paletó de brim pardo enxovalhado e montado em cavalo mal apeirado. Os picadores ou toureadores a cavalo usam trajes apropriados; se toureiam à vara larga, vestem calção de anta, perneira de cor viva, chapéu branco de abas largas; se toureiam à farpa curta, à portuguesa, caso em que estava o Sr. Tico-tico, trajam à Marialva, isto é, casaca de seda de montar e chapéu armado. A razão por que os cavaleiros se apresentam assim vestidos tem dois fins: o primeiro, tornarem-se mais vistosos ao espectador e, segundo, provocar os bois, tornando-se-lhes desconhecidos. Em geral o gado está acostumado a ver os campeiros montados e vestidos, mais ou menos, como estava o Sr. Tito-tico, porém estranha quando vê uma figura como a que acabamos de descrever, e então persegue-a". Ajuda alguns reparos aos homens de forcado, por se haverem apresentado, "um de camisa branca, outro de flanela", ao invés de "vestimentas próprias ou, pelo menos, iguais", e por fim reclama contra o preço ãas entradas, nestes termos: "Dois mil réis à sombra e mil réis ao sol é o que se paga no Rio de Janeiro e no Rio Grande para ver correr oito touros e trabalhar uma companhia completai.

Outra corrida realizou a mesma companhia, que era composta de toureiros espanhóis e dirigida pelo "hábil e intrépido artista Mateus", a 24 do mesmo mês. A Regeneração que fala agora: "Entre os novilhos apresentaãos para a lide, notavam-se alguns bastante bravios. Nem todas as sortes, porém, tiveram feliz resultado, porque os animais, uns eram ligeiros demais e outros muito matreiros". Para se avaliar a exigência dos espectadores, leia-se este tópico: "Um incidente digno de nota e que muito contribuiu para o enfraquecimento dos trabalhaãores deu-se nesta corrida: o melhor novilho, o mais valente e no qual o diretor Mateus muito confiava, morreu repentinamente em uma das jaulas do circo; Findo o espetáculo, o artista Mateus noticiou ao público a morte do novilho, apresentando as suas desculpas. Mostrando-se, porém, o público pouco satisfeito com as desculpas do artista Mateus, viu-se este obrigado a fazer arrastar para a praça o referido novilho, forçando assim os espectadores a darem inteiro crédito às suas palavras".

Que saborosas não deviam ser essas velhas tareds primaveris do Desterro, numa praça de touros, cheia de rumor, movimento e colorido!...

Anuário Catarinense - 1950, p. 121 -122

QUANDO E COMO VIMOS GRAÇA ARANHA

Em janeiro de 1924 esteve Graça Aranha em Florianópolis. Ignoro o motivo da sua viagem à capital catarinense. Governava o Estado o Dr.. Hercílio Luz, cujo filho Alfredo (que infaustamente acabou num sanatório carioca em abril de 1944). Fora diplomata como Graça Aranha, não senão, portanto, impossível tenha vindo o autor de Canaã a Santa Catarina a convite do Governo Estadual, por sugestão do filho do Governador.

Ao termos conhecimento do estada do afamado escritor entre nós, Othon D’Eça e eu, ao mesmo tempo acicatados pela curiosidade e sofreados pela timidez, resolvemos afinal visitá-lo no velho hotel assombrado em que se hospedara, na Praça Quinze de Novembro, no local onde hoje fica a Agência do "Banco Comércio e Indústria de Minas Gerais".

Encontramo-lo sentado em uma cadeira de balanço, junto à sacada que dava para o jardim fronteiriço. Tinha uma coberta de lã sobre as pernas, apesar da quentíssima tarde janeirinha. A sua face era pálida, mas o olhar vividamente límpido, a palavra acolhedora e entusiástica.

Nós sabíamos da sua arrojada participação na superaplaudida e ultrapateada "Semana de Arte Moderna", de 1922, em São Paulo, entre cujos promotores fora acolhido, por alguns com sincero agrado e desvanecimento, por outros com desconfiança e, mesmo, indisfarçável antipatia. Embora provincianos, não ignorávamos os ecos desses rumores provindos dos desvairamentos da Paulicéia; mas, por discrição, combinamos não aludir a eles na palestra com o discutidíssimo homem de letras; no entanto, foi ele quem se referiu àquele fragoroso sismo cultural, proclamando-o oportuno, necessário, corajoso, triunfante. E indagou de como iam as Letras em Santa Catarina. Modestamente, tentamos explicar-lhe como iam as coisas... Não havia casa editora... às vezes aparecia uma revistinha... Só nos valíamos das colunas dos jornais... A essa altura, pediu licença para dizer que, se os jornais de que falávamos eram os que ele via no salão do hotel, estávamos muito mal servidos. Declarou que, na véspera, havia estado na Biblioteca Pública, considerando-a de nível deploravelmente baixo, sem fichários modernos e prestantes, não tendo encontrado ali sequer um livro de Cruz e Sousa. E frisou, caloroso: - Sim, senhores! Nada de Cruz e Sousa, filho da terra, e do qual o Brasil deve orgulhar-se!

Tivemos de engolir as duras verdades, sem tugir nem mugir. Creio que a Biblioteca já tem hoje o seu Cruz e Sousa. Todavia, se Graça Aranha ressuscitasse e lá fosse procurá-lo, por acaso, em dia de mau tempo, teria de entrar de guarda-chuva aberto, capa impermeável e galochas, porque, presentemente, segundo dizem, chove lã dentro um pouquito mais do que na rua...

Conversando, era Graça Aranha um espontâneo e faiscante suscitador de ideias, aliás, nem sempre nítidas e valedias quando, a revezes, lhes queria imprimir alcance filosófico, deixando- nos in albis...

Lembro-me de que Othon D’Eça lhe perguntou se o romance Canaã era, como havia escrito alguém, um "romance simbolista". A inesperada pergunta fez-me evocar Giovannina, de Afonso Celso, publicado em fins do século passado. Este fora expressamente declarado pelo seu autor um romance "simbolista"; mas todos os experts estão acordes em afirmar que, do ponto de vista do Simbolismo, não passou de malograãa tentativa estética. Não posso recordar e reproduzir integralmente a resposta de Graça Aranha, que foi longa e recheada de termos de sentido filosófico, tais como signo, sinal, significação, criatividade, subjetivismo, símbolos extrínsecos, símbolos intrínsecos e não sei que mais, concluindo por dizer que, 'segundo aquele pressuposto" (?) podia-se considerar Canaã um romance "simbolista", se bem que ele ao escrevê-lo, não pensara em amoldá-lo a nenhuma "escola" definida.

Falou-se também de literatura francesa, da qual ousadamente me confessei grande admirador, trocando-se referências elogiosas ou restrições críticas a certos escritores antigos e modernos. Quanto a estes, demonstrava Graça Aranha ilimitada admiração. Perguntou-me se eu conhecia alguma coisa de Pierre Mac Oriam; ante a minha resposta negativa, disse: - Pois vou dar-Ihe um livrinho dele.

Afastou a manta de lã que lhe cobria as pernas, ergueu- se e foi ao seu quarto, donde voltou com uma brochurinha de capa amarela; La Bête Conquérante, edição de 1920 da Librairie Stock, de Paris, e em cujo anterrosto pusera ele a seguinte dedicatória: A Altino Flores, pela arte moderna, com muita esperança. GRAÇA ARANHA. Florianópolis 26 de janeiro de 1924.

Não é a interessante e original novelinha uma obra-prima; porém, com a sua maneira irônica, mordente, faz-nos lembrar o espírito de Voltaire. Mandei encaderná-la em inteiriça capa de couro e até hoje (passados quase cinquenta anos!) em minha livraria carinhosamente a conservo. Há pouco tempo, o Professor Celestino Sachet, operoso Reitor da UDESC, teve oportunidade de folheá-lo, em minha casa.

Estávamos em janeiro de 1924. A 19 de janeiro, pronunciaria Graça Aranha a celebérrima conferência sobre O Espírito Moderno, na Academia Brasileira de Letras, da qual, finalmente, se desligaria, por carta dirigida, em 18 de outubro do mesmo ano, ao respectivo Presidente, usando estas incisivas expressões; "A Academia quer persistir na sua posição eclética e antiquada, nefasta à literatura brasileira. Recusa-se a tornar-se um organismo útil e ativo, um fator do moderno sentimento nacional, seu representante, seu guia. A Academia Brasileira morreu para mim, como também não existe para o pensamento e para a vida atual do Brasil".

A História tem, às vezes, irônicas surpresas. Pelo "morra a Academia!", proferido às barbas dos seus confrades, na revolucionária conferência sobre O Espírito Moderno, foi Graça Aranha, ao terminar, carregado triunfalmente aos ombros dos "modernistas" aDr.ede arregimentados para ouvir o estoiro da bomba. Muitos anos, porém, não se havia escoado, e já alguns dos seus mais fogosos aplaudidores faziam tudo quanto deles se exigisse para conseguirem alojar-se no bojo do Cadáver imputrescível. E lá finalmente entraram - fardados, bordados, agaloados, de espada à cinta e bicorne de almirante de opereta - embolsando o velho Jeton em moderníssimos cruzeiros.

(O Estado 21/06/1973, p. 4)

DEPOIMENTO SOBRE ATUAÇÃO EM O ESTADO

Nos quase dois decênios em que dirigi O Estado, fiz quanto pude para o não jungir servilmente a nenhum Governo, nem o atrelar a nenhum Partido. As notícias acerca de atividades administrativas ou partidárias sempre se revestiam da maior isenção e objetividade possíveis, fugindo às louvaminhas amenistas e às explosões politiqueiras. Foi por vezes o jornal levado a polêmicas ardentes, nas quais, por acaso, a sátira pôde ser ferina; mas não chafurdou jamais no lamaçal do insulto e da calúnia. Tudo quanto publicasse podia ser provado.

Nos tempos do "getulismo" tivemos censores policiais dentro da própria Redação. Não se podia sequer pedir o conserto de uma ponte ou os reparos de uma estrada, porque isso... "era contra o Governo." Mas o nosso excelente redator Gustavo Neves manteve uma coluna de comentários cotidianos, pela qual, com habilidade extrema, com ares de quem não quer nada, conseguia exprimir em semitom aquilo que era proibido expressar com democrática franqueza.

Eram deveras apreciados esses comentários. O inesquecível Frei Evaristo Schürmann confessou-me, muito à puridade, que os recortava e colava em folhas de almaço, para colecioná-los. Ele sabia ler nas entrelinhas...

Recebíamos visitas apreciadas e cativantes.

O Padre Luterbeck, jesuíta, professor do Ginásio Catarinense, aparecia por lá frequentemente. Alto, sem chapéu, com a sua batina preta escrupulosamente escovada, portando sempre uma pasta com jornais, entrava sem pedir licença, pois já se havia familiarizado com todos da casa. Tinha cabelos de um loiro-mate, largos olhos azuis, nariz bem talhado e boca donde as palavras brotavam com as puras e espontâneas inflexões dos sentimentos. Era um homem de vasta ilustração, simples e franco.

Durante a Segunda Grande Guerra, O Estado tinha contratado o recebimento de notícias da United Press (de que eu era aqui correspondente), captadas, em onda curta, na própria Redação, por Dorival da Silva Lino. Certo dia, noticiou-se que os "aviões-mosquitos" da RAF haviam bombardeado certa cidade alemã. O Pe. Luterbeck achava-se na Redação quando a notícia chegou. Mostrei-lha. Ele empalideceu e apenas disse: — E a cidade onde nasci.

Depois, como se falasse consigo, em voz baixa: — E a nossa casa? Terá sido destruída pelas bombas?

Nunca me disse ele que informações por acaso teria recebião a respeito do acontecimento.

Dos amigos que comigo, nO Estado trabalharam, guardo as mais gratas lembranças. Ali não havia chefe nem subordinados. O ambiente era de construtiva camaradagem.

Gustavo Neves por três vezes labutou ao meu lado. Sabia dizer as coisas mais temerárias (numa época de "censura", está visto) com sutileza e finura. Pelo calculado tom caseiro das suas frases quase ninguém percebia o agudo estilete que nelas vinha envolvido. E com que facilidade enchia ele quatro, seis, oito linguados, quase sem emendas, numa letra de mediano talhe, em linhas muito separadas e claras!

Tito Carvalho era mais incisivo na sua adjetivação. Com caprichada caligrafia, redondinha e graciosa, bordava ele as suas frases, onde se percebia a preocupação do termo próprio, estilizado em harmonia e colorido. Lutou, suou, brilhou no Jornalismo: porém, era acima de tudo, — para usar uma expressão de Fialho de Almeida, que ele tanto apreciava, — "um doente da Beleza."

José Dinis gostava de tratar de assuntos do grand monde social e elegante e fazia-o numa letrinha desenhada como de imprensa, à maneira de Coelho Neto, de quem era fervoroso admirador.

Osvaldo Melo não tinha distinções caligráficas; a sua escrita era despretensiosa e folgada. Importava-lhe pouco a perfeição da frase. O que lhe saía da pena vinha-lhe espontaneamente do fundo da alma.

Mal e pessimamente comparado, a memória humana é como uma espécie de saco, aonde vão caindo e acumulando- se as impressivas lembranças do acontecido. Às vezes, porém, sucede que a sacola, por muito velha, se rompe, indo-se perdendo assim muitas lembranças ao longo do caminho.

Dentre as que ainda me restam, algumas escolhi — as quais aqui deixo como ressonâncias de um Passado que somente pela miraculosa poesia da Saudade continua a viver.

O Estado, 14/11/1972

MENSAGEM AO JORNALISTA MOÇO

Entra você a trabalhar numa empresa jornalística. Essa decisão lhe veio por vocação ou por necessidade, como simples meio de vida?

Seja qual for a razão, procure compenetrar-se de uma coisa essencial: o cumprimento do dever com pontualidade e retidão.

Trave com os seus companheiros de trabalho os mais afetuosos laços de confiante camaradagem. Evite entrechoques de opiniões puramente pessoais. Busque a harmonia fecunda entre os que trabalham juntos.

Siga a orientação do jornal como se fosse norteado pelo ponteiro de uma bússola, embora lhe pareça que a orientação se desviou do rimo indicado. Se perceber que o desvio foi calculado e intencional, não retenha a coragem de manifestar ao direto da empresa a sua surpresa ou desprazer. Dependerá de você continuar a trabalhar sob um comando que vacila ou se transvia.

Ao redigir a notícia sobre um fato mais ou menos importante, procure apoiar-se nos pormenores mais seguros, repudiando aspectos que lhe parecerem duvidosos. É pela verdade com que você narrar o acontecimento que se fortificará o amor à verdade sobre as coisas, os homens e os fatos a que tiver de referir-se em sua narrativa.

Quando, com o passar do tempo e galgadas todas as posições subalternas, lhe confiarem a tarefa de escrever os ainda famosos "artigos de fundo", ponha de lado as suas convicções ou os seus preconceitos pessoais, para poder escrever com superior independência, raciocinando sem pretensões de "filósofo político", considerando, isto sim, que vai dar ao público ledor uma lição de civismo acerca do momento que se atravessar.

Aí estará dignamente servindo à Pátria, que necessita de ordem, pacificação e trabalho para atingir os seus altos destinos.

Um conselho a mais: não desdenhe a gramática e o dicionário, pois são as fontes onde se encontra a ferramenta para o seu trabalho específico. Escrever mal e confusamente é pecado que não se perdoa a jornalista que se preze. Aliás, o idioma de um país é a espinha dorsal da sua cultura.

Para finalizar, meu amigo, coloque acima de tudo o sagrado culto da verdade. Mentir ao povo é o mesmo que pôr veneno no prato de quem pede que lhe matemos a fome. A mentira é a amara dos desonestos e dos covardes.

Poderia ter-lhe dito mais; porém, o que aí fica é bastante: é o esboço de um roteiro.

São palavras de um homem que muito em breve estará completando 90 anos e a quem a longevidade desgastou e as enfermidades, entre dores, afligem; mas soube guardar sempre o amor à Verdade, à Justiça e à Liberdade.

O Estado, 20/10/1983 - pronunciamento feito por ocasião das comemorações do sesquicentenário da Imprensa Catarinense, em 1981.

O PADRE CANTIGAS

UMA GRANDE FIGURA DA PEQUENA PROVÍNCIA

(Palestra feita no Instituto, em sessão de 28 de julho de 1938)

Das palestras há cinco anos passados realizadas no Instituto, por um grupo de sócios, situa-se a de Altino Flores entre as que se destacaram pelo estilo e pela pureza da linguagem, pela graça e pelas observações críticas, e, também, entre as que mais agradaram à assistência. Fez ele, embora em largos traços, o retrato de uma figura que, nem por pertencer a Igreja, deixou de imiscuir-se na vida política de sua terra, numa afirmação do espírito do tempo, que permitia, sem desdouro, tais manifestações por parte do clero secular, como deixaram acentuados os padres liberais já uma vez estudados por Viriato Correia, que lhes enalteceu o ardor e a dedicação pela causa sagrada da pátria.

Pena é que Altino Flores, entregue à vida atribulada de imprensa, não consiga tempo e vagar para oferecer-nos mais amiudamente estudos como o que realizou em torno do nosso Arcipreste Paiva.

Do Arcipreste Paiva desejo falar-vos.

Não transiuzem nestas linhas veleidades históricas, no rigoroso sentido da palavra. Sei muito bem onde deve ficar o critério do historiador e até onde pode ir o instinto divinitório e fantasista. Desejaria que se me reservasse uma brecha entre essas duas atitudes, por onde pudesse esgueirar-me, sem diminuições de minha parte, nem enfado ou irritação para os ouvintes.

Da vida do Arcipreste Paiva tomei alguns episódios frisantes, à luz de uma narrativa corrente, entressachada de comentários oportunos, esperando que eles ponham em relevo alguns traços desse caráter - único na vida social da antiga Desterro, e cuja psicologia está a merecer detida análise.

Sou ainda dos que creem no valor dos pormenores biográficos, de natureza moral, para a perfeita compreensão de uma figura histórica. Não basta encaixilhá-la na hirta moldura da cronologia e rodeá-la dos atos que praticou ou das funções que exerceu. Urge considerar as reações e influências que exerceram sobre seu temperamento e sobre seu caráter: seus pais, irmãos e outros parentes, seus amigos e inimigos, o meio em que viveu, que preferências teve, como odiou, amou, lutou e sofreu, como traduziu, em forma de palavras ou de atos, a elaboração de seu pensamento e de sua vontade sob aquelas influências e reações.

Isso vai um pouco além do que rigorosamente se denomina "método histórico"; mas é "processo" de que resultaram obras como Os Filhos de D. João I, Vida de Nunálvares e O Infante D. Henrique, que pecam, talvez, por não corresponderem ao conceito "histórico" geralmente estabelecido, porém visualizam Dramas agudos de sentimentos e interesses suscitam energias para as decisões históricas e fazem considerar a vida dos povos e dos indivíduos antes como um tecido de problemas morais, do que uma resultante de forças inconscientes e irremissíveis. Tal "método" ou "processo" está definido no qualificativo com que Menendez y Pelayo brindou a Oliveira Martins gran artista historico.

Bem longe de mim está a pretensão de seguir a pegada do historiador luso e librar-me às alturas por onde esvoejou seu talento. Minhas fracas forças não sonham bravuras de gigante. Citando grande exemplo, não o tomo por modelo, senão por escusa de minha rudimentaríssima tentativa.

O p. Paiva, localizado em seu meio e em seu tempo, avulta com as linhas mais expressivas de uma grande figura provinciana. A tradição, eletrizada por panegíristas de maior ou menor talento, habituou-se a considerá-lo o "Bossuet catarinense". Não lhe discutirei os méritos oratórios para averiguar até que ponto é justa a comparação da "águia de Meaux" com o Arcipreste da Ilha dos Patos. Apenas me deterei, por momentos, nalgumas de suas mais expressivas manifestações de humanidade. As sombras contribuem para dar relevo à pintura.

A propósito de Saint-Simon, disse um historiador e crítico: Há em nós duas partes: uma, que percebemos do mundo, outra, que trazemos ao mundo; uma, que é adquirida, outra, que é inata; uma, que nos vem das circunstâncias, outra, que nos vem da natureza".

Eu consideraria, apenas, em Oliveira e Paiva a parte que ele recebeu do mundo, a parte adquirida, a parte que lhe adveio das circunstâncias. Não seria diminuí-lo, creio. De resto, homem inteligente, que encarou a vida ao mesmo tempo como uma batalha e como um espetáculo digno de ser apreciado e, mesmo, representado, acredito que ele, se vivo fosse e soubesse do meu intento, me diria como disse Cromwell ao sentar-se diante de Cooper que se preparava para pintar-lhe o retrato:

 –  Pinte-me tal como sou, com verrugas e tudo.

O 21 de junho de 1856 foi um sábado deveras festivo para os habitantes de São José. A localidade assumira foros de cidade e seus habitantes comemoravam jubilosamente o fato. Na praça, bandeiras multicores palpitavam ao soprar do vento. Ao centro, em tope altaneiro, o pavilhão nacional se desfraldava glorioso.

Às 11 horas, foi a solene sessão da Câmara Municipal, para posse e juramento a um dos cidadãos a quem cabia, na forma da respectiva lei, formar o número de nove vereadores para, com os que já existiam, exercerem as funções municipais.

Mal se consumara a eleição, começou a circular o boato de que o vigário da paróquia de São José, p. Macário César da Alexanária e Sousa, até então tido na conta de "prudente e atencioso", ou fosse por ciúme ou por birra política (porque naquela época todos os manejos partidários eram lícitos...), tinha recusado anuir a que o p. Joaquim Gomes de Oliveira e Paiva, vigário da capital, que havia sido oficialmente convidado para recitar uma prática na igreja, no ato ad missa e Te-Deum pela inauguração da nova cidade penetrasse no templo para se desincumbir da honrosa tarefa.

A atoarda exprimia fato real. O p. Macário não transigia nos seus propósitos. O p. Paiva, lá mesmo, dirigiu-se um ofício pedindo permissão para fazer sua prédica. Respondeu-lhe sem tardança o p. Macário dizendo que não lhe cederia o direito de estola para aquele fim. Já, então, o caso assumia visos de escândalo, originando toda casta de comentários.

Buscando solução para o conflito, tão pessoal quanto inesperado, o juiz de direito da comarca, Dr.. João José de Andrade Pinto, foi a casa do vigário de São José, e de tais argumentos se valeu que conseguiu dissuadi-lo do chocante propósito; e o p. Macário cedeu-lhe a chave do púlpito para ser entregue ao p. Paiva. Mas este, ferido em seus melinDr.es mais justos, não quis aceitar a permissão que oficialmente lhe fora recusada, e que, só por empenho de terceiros e após tanto vexame, lhe era conferida.

A ilustre Câmara Municipal estava deveras atarantada. A ordem e esplendor, que esperava para sua grande festa, eram assim desmanchados pela rusga personalíssima entre duas preclaras figuras da igreja catarinense. Certamente, a culpa não cabia ao p. Paiva, que viera da capital, a convite, com sua oração burilada, e confiante na generosidade do povo josefense.

Reunidos, o vereadores deliberaram efetuar, mesmo no Paço da Câmara, o solene ato da inauguração da cidade, e, riscando do programa das festas do Te Deum, oficiaram ao p. Paiva, convidando-o a fazer no dito Paço o seu discurso.

Assim aconteceu. O ato inaugural foi às 13 horas. A sala de sessão regurgitava. Em lugares de destaque se assentaram o juiz de direito, o juiz municipal e o promotor público, autoridades civis e policiais, algumas patentes da Guarda Nacional e outras pessoas notáveis daquela cidade e do Desterro.

Convinha, porém, dar satisfação ao público pelo fato de a solenidade se realizar no Paço da Câmara e não na Igreja, como era de praxe. Deu-a o presidente da Câmara, Francisco da Silva Ramos. O ambiente respirava gravidade, O p. Paiva ergueu- se e disse, afinal, sua oração - que devia ter sido aplaudida, como eram todos os frutos de sua eloquência.

Com permissão da mesa, discursaram ainda o juiz municipal Francisco Honorato Cidade e Franc de Paulicéia Marques de Carvalho.

Calorosos vivas foram erguidos a suas Majestades Imperiais e sua Augusta Família, à Constituição do Império, à Assembléia Provincial e ao povo josefense, enquanto aos céus subiam, espocando festivas, girandolas de foguetes.

Logo a seguir, começou a circular a notícia de que o p. Macário tinha resolvido rezar na igreja matriz o Te Deum que os vereadores haviam riscado do programa das festas. E, de fato, o rezou; porém a Câmara não compareceu e a função teve pequena assistência de povo.

Quando caiu a noite, centenas de lanternas se acenderam, pontilhando de luz as frontarias das casas da nova cidade.

No teatrinho particular houve espetáculo de gala, que se iniciou por um monólogo recitado por Davi do Amaral e Silva, e após o qual se descerrou o retrato do imperador, ouvindo-se, entre palmas e vivas, o hino nacional executado pela banda da cidade, sob a regência de Alberto Rickler, tendo havido, mesmo, alguns cidadãos que, no acume do entusiasmo, lhe entoaram a letra.

Franc de Paulicéia leu um soneto em que enaltecia o povo de São José, sendo ruidosamente aplaudido.

Foi então que a segunda parte do serão teatral começou. Foram representadas O Monge da Serra d'Ossa, com um bailado, e a farsa As Impugnações.

Dentre os que mais se esforçaram por que os festejos daquele dia se revestissem do máximo esplendor, a crônica não olvidou Manoel Pinto de Lemos, Francisco da Silva Ramos e Davi do Amaral e Silva; porém não revela que o p. Paiva tivesse permanecido na cidade até o apagar das memoráveis luminárias e houvesse feito as pazes com o teimoso p. Macário.

II

Pouco menos de dois anos depois do incidente ocorrido em São José, esteve novamente em conflito o p. Paiva com outro colega, desta vez com o p. Joaquim Elói de Medeiros, seu coadjutor na matriz do Desterro.

A população da capital devia ter sido surpreendida pelas linhas publicadas por Justus no Argos da Província de Santa Catarina, em 28 de março de 1858, e com as quais o autor, pretextando "destruir qualquer juízo desfavorável ou injusto" a respeito do p. Paiva, explicava, circunstanciadamente, o motivo por que deixara este de embarcar para Porto Alegre, a 19 daquele mês, no vapor Imperador, quando já estava de mala pronta e passagem no bolso da batina.

Era o rastilho da pólvora que explodiria entre os dois respeitáveis sacerdotes pelas colunas daquele periódico e pelas do Santelmo e do Cruzeiro-do-Sul, envolvendo com sua fumaraça até o afilhado do p. Paiva, Manoel Bernardino Augusto Varela, que lhe dedicava particular afeição.

Em junho de 1859, seu amigo e conterrâneo Dr.. Capistrano lhe escrevera de Porto Alegre uma carta, convidando-o, em nome do presidente da Província do Rio Grande, para ocupar o cargo de diretor do "Liceu D. Afonso", daquela capital. O p. Paiva aceitou o convite e a 11 do mesmo mês lhe fora passado o respectivo diploma. Tendo, pois, de partir para a capital gaúcha, deixou as funções de vigário do Desterro a cargo do p. Elói, seu coadjutor, que recebera a competente provisão do bispo diocesano, em setembro. Entre os dois sacerdotes ficara estabelecido, por carta, que os emolumentos paroquiais seriam irmãmente repartidos, embora o p. Paiva ausente.

Quando este voltou, em férias, ao Desterro, em 1858, veio o p. Elói a saber que a côngrua que o p. Paiva recebia fora elevada ao dobro, e entendeu que eie, assim beneficiado, poderia bem conceder-lhe vantagens maiores que as que lhe estava concedendo como coadjutor. E, na antevéspera do dia em que o p. reitor do "Liceu D. Afonso" devia partir para reocupar seu posto, em Porto Alegre, escreveu-lhe a seguinte carta: "limo. am. e Rev. Sr. Padre Paiva. Como esteja próxima a partida de V.S. para Porto Alegre, e não tendo ocasião oportuna para falar-lhe, vou fazê-lo por meio desta. Tendo-me V. Rema. Feito a honra de escolher-me para seu Coadjutor, e entregue sua Igreja durante sua ausência pelo contrato a que assenti, vim ao conhecimento do serviço e rendimento dela: hoje, porém, estando V.S. a regressar e não me senão possível continuar com o mesmo conato, vou propor a seguinte emenda, senão-lhe conveniente. À vista do serviço que há constantemente, obriguei-me de hoje em diante a entregar a metade dos rendimentos dos batizados, casamentos e enterros feitos na Igreja, e a metade dos mesmos atos fora da Igreja, como se nela fossem feitos, dispensando V. S. a parte dos mais atos, visto que o pequeno rendimento que tenho não me é suficiente. Isto proponho, senão possível, ficando V. S. na certeza de que, mesmo quando não possamos combinar, sempre me terá disposto ao seu serviço. Cabe-me, portanto, desde já, agradecer-lhe a confiança que em mim depositou, e esperar sua resposta para deliberar o governo do - De V. S. - Atso. Vor. e Obr°. am,°, e colega. Padre Joaquim Elói de Medeiros. S. C. 17 de março de 1858".

O p. Paiva não concordou, conforme lhe declarou em carta. Mais outras missivas se reciprocaram os dois sacerdotes, acabando o p. Elói, no dia 17, por escrever ao vigário da matriz do Desterro: "A vista de quanto tenho expendido e das respostas por V. Rema. dadas, interpretando em mau sentido minha ideia, sou forçado a declarar a V. Rema, que amanhã ao meio-dia pode mandar tomar conta de sua Igreja, de cujo cargo fico desonerado dessa hora em diante".

Não havia outro sacerdote a quem o p. Paiva pudesse trasladar as funções de coadjutor. O p. Livramento, convidado, respondeu-lhe, em carta, que "com tanta brevidade não era possível ser provido, em consequência de estar ligado a outros compromissos para os quais seria necessário algum tempo para concluí-los: e, além disso, seria necessário que lhe fizesse um partido e lhe garantisse a sua estabilidade futura". E repetia: "Com tanta brevidade não é possível resolver-me, visto eu não saber quais sejam as conveniências que posso ter".

O p. Paiva, conclui-se, não oferecia grandes benefícios ao p. Livramento... A paróquia ficaria, assim, sem vigário, nem coadjutor. Como a semana santa vinha perto e ele não queria abrir mão do que ganhava, resolveu não embarcar no Imperador, no dia 18, esperando, mais dia menos dia, regularizar a situação. A explicação formulada por Justus, a que aludi, trouxe a público o sério conflito até então circunscrito a uma correspondência particular.

Desnecessário é dizer que o p. Elói replicou, ríspido, e, dias depois, tornou à carga, porque outro tanto fizera seu contendor; mas, dessa vez, para declarar, afinal, que não mais responderia "a qualquer escrita sobre essa questão".

Nessa última resposta havia referência a Bernardino Varela, o qual se apressou a repeli-la, pelo Correio do Sul, cuja redação, porém, lhe não deu agasalho, tendo ele de recorrer ao Argos, já em fins de abril. Dizia, dirigindo-se ao ex-coadjutor: "... rogo ao meu Rev. Amigo que não se incomode com o receio de que eu me comprometa: agradeço-lhe muito o seu cuidado, mas não é provável que uma questão de padres, por causa de dinheiro, possa influir no conceito, de que felizmente gozo".

No decorrer da refrega, o Santelmo, editorado por José Joaquim Lopes (que também era proprietário do Argos), e de que o p. Paiva passava por ser redator, estampou na seção "Revista Semanal" uma croniqueta sobre as passadas festas da Semana Santa, aludindo a certos sacerdotes que se desinteressaram das solenidades, "uns, para darem um passeio à corte" e outros para só irem à igreja, "de casaca, gravata e colarinho em pé", ao invés de lá estarem "de batina, sobrepeliz e volta".

Na última parte, à capucha, ia uma frechada ao p. Elói. Este percebeu o alcance da frase. O p. Paiva não trepidou em reafirmar que "a anedota de Domingo de Passos e Semana Santa" era mesmo com ele, que, desprezando o convite, que lhe fora feito pelo festeiro, Manoel Antônio Caminha, somente lá comparecera "casacalmente".

E o incidente morria, pouco depois, com a aparente vitória do p. Paiva. Na realidade, o que se apurava de tudo isso é que a circunspecção, de que se deviam revestir os dois ilustres sacerdotes, estava deploravelrmente conculcada, em benefício, talvez dos inimigos da Religião.

O ambiente provinciano, acanhado e saturado de intrigas, era propício a esses entrechoques de personalismos exacerbados.

A política, sempre eivada de malquerenças e rixas deprimentes, trazia os espíritos em permanente estado de guerra. Os adversários iam com a mesma facilidade do apelido apropositado ao insulto penetrante e à calúnia encarvoadora. Homens reconhecidamente sensatos e discretos, de repente, surgiam arremangados e espumejantes pelas colunas dos jornais - e isso devia ser prato que à província não desgostaria. Não se vive impunemente num ambiente dessa natureza.

Político por gosto, o p. Paiva teve de sofrer os percalços desse esporte. Em 1849, já, quando vigário colado da paróquia e São José, sentiu contra si o guante do governo da província, então em mãos de Antônio Pereira Pinto, a tal ponto que, para não ser menosprezado no exercício do vicariato, renunciou, em 24 de setembro daquele ano, ao seu benefício paroquial, porque uma portaria governamental o tinha exonerado de toda e qualquer ingerência na administração das obras da matriz josefense. Onze anos mais tarde, não se conformando com a orientação do Partido Progressista, rompe com ele, pública e espetacularmente.

Era natural que seus ardores partidários lhe valessem sátiras venenosas como as que, de quando em quando, o zargunchavam. Ficou célebre o tremendíssimo soneto, cujas estrofes derradeiras apenas cito para mostrar o tom dos pasquins da época:

...fraco no saber, forte na intriga,

Vulcão de asneiras, peçonhenta lava,

Vomita, impura, o asno de uma figa!

Não adivinhas? -É de raça brava,

É o Cantiguinhas, filho do Cantigas,

Que de tal pai tal filho se esperava.

Padre Cantigas, ou simplesmente Cantiguinhas era o apelido, herdado de seu pai, Manoel de Oliveira Gomes, que fora solicitador de capelas e resíduos.

Ainda em 1860, a apresentação de seu nome à deputação valeu-lhe uma saraivada de picuinhas.

É de crer que sua atividade política se contivesse, dentro de mais decentes medidas, depois que, em 2 de maio de 1863, por provisão do prelado do Rio de Janeiro, fora nomeado visitador na província. Como se sabe, o visitador gozava das honras de Diocesano e das atribuições que eram especialmente conferidas, tais como: administração do crisma, disponsa do impedimentos matrimoniais do 2o a 4o grau do consanguinidade e afinidade, dispensas nos casamentos mistos, exames dos livros paroquiais, inspeção sobre o clero, etc.

Diga-se de passagem, que a última visita fora efetuada na comarca do Desterro em 1811, pelo p. Agostinho José Mendes dos Reis, sendo, portanto, o p. Paiva "o segundo catarinense honrado com tal nomeação".

A dignidade que pusera no desempenho da complexa incumbência granjeou-lhe em seguida a nomeação para arcipreste da província de Santa Catarina, por provisão do bispo diocesano, de 8 de janeiro de 1864.

Mas, o gosto da política estava-lhe na massa do sangue. Em 1864, deputado provincial, exercia ele na Assembleia o cargo de 10 Secretário. Acusado de se ter empenhado para que no orçamento se incluíssem as quantias de 300$000 por côngrua do arcipreste, ele próprio, e 300$000 para côngrua do coadjutor da paróquia do Desterro, da qual também era ele o vigário, teve de vir a público defender-se e, até, chamar à responsabilidade, mediante exibição de autógrafos do impressor do Despertador, José Joaquirm Lopes, cujo filho dirigia o referido periódico.

Era, como se vê, mais uma questão para lhe pôr em cheque a gravidade das funções sacerdotais, porque, afinal, era nelas que tudo isso refletia.

Episódio quase anedótico foi o que por esse tempo ocorreu. O Despertador, que sempre lhe fazia fosquinhas, escreveu que as minguadas rendas da província, escalavradas pela prorrogação dos trabalhos legislativos, estavam sendo inda mais oneradas com as garrafas de limonada gasosa que o p. Paiva bebia durante a sessão. A piada não foi perdoada. Do que aconteceu, por causa disso, o jornal publicou o seguinte: "Muito enraivecido ficou o virtuoso Sr. 10 secretário da Assembleia provincial por ver mencionada, no número anterior desta folha, entre as extraordinárias despesas que hão de infalivelmente pesar sobre as escassas rendas da província, por motivo da prorrogação dos trabalhos legislativos, a de 3 ou 4 dúzias de garrafas de limonada gasosa, e no seu furor teve o destampatório de mandar dizer pelo porteiro da casa que essa bebida corria por sua conta e não saía dos dinheiros do expediente. Agradecemos a declaração e a transmitimos aos leitores desta folha para que fiquem certos de que Sua Reveretíssima bebe gasosa por sua conta e risco".

Eram, certamente, esses escorregos que fizeram o cel. José Bonifácio Caldeira de Andrade, em suas Memórias, chamar-lhe: "o célebre Padre Paiva, ilustrado e de pouco juízo".

Nada obstante, era grande o número de seus admiradores. Quando em janeiro de 1869 na cidade se espalhou a notícia de que ele havia enfermado gravemente, sua residência se encheu de amigos, prontos a dar-lhe assistência. Aquele varão ativo e audaz, que começara seus estudos no Seminário de São José, do Rio de Janeiro, graças às bondosas informações do respectivo reitor, monsenhor Soledade, e à benevolência do vigário capitular, monsenhor Vidigal, contanto apenas com o auxílio mensal de 2$000 que lhe davam seus irmãos e 3$200 recebidos de um amigo caridoso cujo nome a crônica não conservou, aquele sacerdote que, através de vicissitudes de todo gênero, chegara a empunhar a vara do arciprestado da província, condecorado com a insígnia das ordens de Cristo e da Rosa, estava agora, ali, jugulado pela dor, - tolhido de paralisia e asfixiado por uma infiltração serosa.

Vendo que a morte se aproximava, fez ele seu testamento nuncupativo a seu afilhado Bernardino Varela. Não será desinteressante conhecer quais foram suas últimas vontades. Declarava ele querer "que seu anel de Vigário fosse remetido ao seu Prelado, o exelentíssimo e reverentíssimo Bispo Diocesano, que, esperava, se dignaria aceitá-lo como a lutuosa, que lhe deixava; que o seu relógio e corrente deixava ao seu compadre Marcelino Francisco da Costa; que a seus afilhados Raimundo, filho menor do mesmo Marcelino, Manoel, filho de Jacinto Francisco da Costa, Hortêncio, filho de seu falecido irmão Manoel, e Amélia, filha de sua dileta irmã Maria, queria que se desse, como lembrança de sua parte, alguns livros de instrução moral e religiosa, próprios de suas idades. Pediu à Irmandade da Misericórdia, desta capital, "que dos seus prédios mais pequenos prestasse um a sua mãe, para ela habitar enquanto vivesse"; e que, sendo irmão da Confraria de São Pedro, do Rio de Janeiro, "pedia a seu amigo Antônio Costa Timóteo que pusesse em dia os seus anuais, a fim de se lhe fazerem os sufrágios a que tinha direito", "Declarou também que, além dos amigos que possuía nesta província, entre os quais se contavam os que se achavam então presentes (p. Manoel Coelho da Gama à Eça, Carlos Duarte Silva, Manoel Bernardino Augusto Varela, Marcelino Francisco da Costa, etc.), outros contava na Corte, como fossem: Antônio da Costa Timóteo, o visconde de Inhaúma, o monsenhor capitular Freitas e Albuquerque, o comendador Manoel Dias da Cruz, o padre Ferreira, reitor do Seminário de São José, e outros que o referido Timóteo conhecia". Atentas as circunstâncias em que deixava sua família, "recomendava-a a todos os seus amigos, tanto desta província como da Corte e outros lugares" e "confiava que fariam a bem dela quanto pudessem, especialmente aqueles que eram seus credores". "Declarou, outrossim, que, ao dar-se o seu passamento, queria que seu cadáver fosse lavado com algum desinfetante, depois vestido e paramentado com alva e casula, como em ato de celebrar Missa, mas sem levar Cálice (se alguém se lembrasse disso), pois era grande profanação juntar objeto sagrado à matéria corrupta - e assim conduzido para a encomendação à Igreja Paroquial, onde, conforme fosse a hora do seu falecimento, queria que se celebrassem Missas de corpo presente e houvesse um ofício, que esperava de seus colegas, devendo ser então seu corpo colocado em uma urna simples, no meio da Igreja, e que essa urna devia ser baixa, de sorte que todos os assistentes pudessem vê-lo e deitar-lhe água benta; depois seria conduzido à Igreja da Venerável Ordem Terceira de S. Francisco, de que era irmão, e, feita a respectiva encomendação, deveria ser sepultado no cemitério dos pobres da Caridade ou no da referida Ordem, devendo-se fazer tudo com singeleza e sem ostentação; que, depois de três anos se lhe exumassem os restos mortais, os quais, juntos com os de seu pai (que existiam em uma urna na sacristia da Matriz), deveriam ser de novo inumados com a mesma urna no Cemitério público, para cujo fim se compraria o terreno preciso, escrevendo-se sobre a sepultura seu nome, e por baixo deste, as palavras: Ave-Maria. Fez igualmente declarações sobre seus escritos, recomendando que seu Compêndio de Filosofia, ainda por terminar, bem como suas poesias sagradas e profanas (algumas das quais profanas deveriam ser queimadas), fossem entregues a seu cunhado, Paulicéia Marques, a fim de as completar, coligir e dá-las ao prelo; e que o manuscrito de seu Dicionário Topográfico Histórico e Estatístico da província fosse entregue a seu amigo Bernardino Varela, para que o fizesse publicar na Corte do Rio de Janeiro, por meio de ações ou assinaturas, ou como fosse mais conveniente, etc."

Daí a pouco, a voz que aconselhara e combatera, que pregara e discutira e até se fizera ouvir diante do Imperador para

saudá-lo quando de sua passagem por esta capital, aquela bela e sonora voz que fora o clarim do púlpito catarinense, para sempre emudecia. Era pouco mais da meia-noite de 29 de janeiro de 1869.

Revista do instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, II Fase, Ano de 1943 -2o semestre, p.91-103

FICCIONANDO

UM CORAÇÃO SOBRE UMA FOLHA AZUL

Ao poeta paranaense Adolfo Werneck

Da minha viagem ao sul do Estado trago recordações mil - e uma relíquia adoravelmente preciosa: uma carta de uma amiga a outra.

Só as amizades explicam as confidências como as que naquela vasta folha azul se reuniram numa letra nervosa e lesta, muito fina, muito quebrada, traindo os arremessos da mão que grafara tão lindas e apaixonadas frases.

Vinha eu dum passeio ao Mar Grosso e trazia a cabeça cheia das grandes coisas que me as ondas narraram: histórias de naufrágios, de viagens de núpcias em iates de milionários, de amores de tristões no fundo escuro do oceano... Vinha, e eis senão quando meus olhos caem sobre um retângulo de papel azul, emaranhado entre as ervas do caminho.

Apanhei-o. Era uma sobrecarta fechada. Nenhum endereço. Devia abrir? Não. Pu-la entre as páginas de Lês Cortèges qui sont passés, com tenções de a entregar à redação de qualquer dos jornais da Laguna. O interessado iria procurar.

Mas, ao chegar à cidade, já me havia esquecido a carta; e como nunca mais abri o livro de Jacques d’Adeiswãrd, também nunca mais me lembrou o achado.

Agora, porém, sacudindo o pó da minha estante, encontrei Lês Cortèges entre uns volumes de Dumas Filho e Dickens.

la gozar-me da leitura dos harmoniosos versos de Les Trésors Ensevelis... Abri o livro...

A l'âge ou l'on espere, à l'âge ou l'on adore

Confusement em soi quelque rêve enchanteur.

J'ai cru, sauvage amour, que j'appelais encore

Convenir ton parfum tout entier dans mon coeur!

………………………………………………….

Or, tu vins dans l'aurore et tu vins dans les fleurs

M'offrir de ton breuvage en me disant: oublie!

Et j'ai bu lentement l'amour jusqu'à la lie.

Comme um poison divin dont lentement je meurs!

E foi quando voltava a página que surgiu, deslizou, caiu ao chão o retângulo de papel azul - achado, havia um ano, entre as ervinhas do caminho que vai da Laguna ao Mar Grosso...

Uma revoada de lembranças boas tatalaram as asas no meu espírito. Depois, a curiosidade começou a segredar-me incitamentos, a fazer-me cócegas... Porque não abria eu a sobrecarta? Quem a teria perdido? Que haveria dentro dela? Uma sobrecarta?! Abre-se tão facilmente! Basta pica com a unha um dos ângulos, faz-se um ligeiro movimento, assim, mais outro e...

Não havia mais remédio. Estava aberta, e meus olhos cobiçosos devoraram todas aquelas vibrações dum coração apaixonado, reduzidas a uma caligrafia nervosa, lesta, fina, quebrada, e a encher todas as quatro faces da larga folha azul.

Dizia:

"Minha adorada I....

Não faz três dias que te escrevi a última cara e já me sinto impelida a comunicar-me de novo contigo. Por quê? E eu sei? Esta carta será para mim como um respiradoiro aberto de repente na parede dum quarto onde alguém estivesse a asfixiar. Sim, é um desabafo. O meu coração está como um fruto em plena sazão. É tu, minha boa amiga, que vais saboreá-lo. Saboreá-lo? Não!

A sua polpa ressumbra fel. Adoça-lhe, porém, o amargor com a tua indiferença ou a tua ironia. Que importa! Eu preciso desabafar, já te disse.

Escuta. Tu sabes o que é o amor?

É a atração de duas almas, dirás, como o diria Mantegazza, em cuja leitura me iniciaste, e como o diriam todos os platônicos, a começar pelos poetas. Mas eu não explico o amor com definições, e sim com fatos. O amor é isto que te vou contar.

Uma tarde (vai por três meses), passeando aqui ao longo da praia, fui apresentada por teu irmão a R. Longo tempo andamos à orilha do mar. Comigo ia papai e mais três amiguinhas. Palestrou-se de tudo. As gaivotas boleavam os seus claros voos por cima das nossas cabeças, elevavam-se ao céu enuveado daquela taráe áe verão, ãepois desciam céleres, quase a primo, rasando a alva e crespa cabeleira áas onâas. Não sei como, o fato é que R. e eu nos distanciamos do grupo, atrasando-nos alguns passos. Ele trajava paletó azul-marinho, calça de flanela creme e cinta de metal donde pendia uma correntinha de oiro com o seu monograma. Caminhava a meu lado, e os seus sapatos brancos, de sola de borracha, deixavam marcas nítidas na areia. Como eu estivesse da banda donde soprava o vento, a minha saia de linho branco, às vezes, batia-lhe a perna direita. Isso me fazia corar e afastar-me dele; e ele então me olhava por sob a aba do boné de casemira cinzenta, mas com um olhar que ao mesmo tempo me pungia e deliciava. Dir-se-ia que me ralhava e me pedia perdão. Ralhar por quê? Perdão por quê? Contou-me miudamente as suas impressões do Rio. Donde tinha vindo há pouco, falou-me da grande paixão que alimentava pelas viagens aventurosas, confessou que não havia de morrer sem ainda subir sozinho ao cume ardente do Etna, ou realizar o sonho de Júlio Verne numa viagem derredor da Terra, não em oitenta dias, mas em cinquenta, em trinta... E ele ria num riso claro e cantante. As gaivotas guaiavam no ar.

Ah! minha amiga! Como desejei então que aquele passeio à ola do oceano não acabasse mais! R. continuou a embriagar-me com as suas palavras. Eram frases simples, mas trespassadas de um não sei como lhe chame de fugitiva emoção e a cuja fluência a minha pobre alma desfalecia como uma onda refluxo.

Afinal, a noite correu o seu pesado véu sobre o plúmbeo horizonte e soltou o negrume dos seus cabelos por cima das serras longínquas. O nosso grupo dispersou-se. Recolhi a casa com papai, a casa que tu sabes, onde sempre veraneamos à beira do mar: um chalé todo branco sobre peDr.as bronzeadas, à base do morro que encobre a cidade.

Não pude cerrar os olhos toda a noite. O rouco bramir do oceano abalava a escuridão, lá ora, e o nordeste silvava nas frinchas das portas e janelas. Todos esses rumores, que de outras feitas eram como cantares, que me embalavam o sono, naquela noite tinham a maléfica virtude de me não deixar dormir. Através dos uivos do mar e os silvos do vento, parece que me vinham restos das frases de R., e eu lhe revia mentalmente o vigoroso e insinuante perfil que me sorria e olhava de soslaio por baixo da aba do seu boné cinzento... Que noite, minha Clara! Que noite!

Antemanhã, levantei-me. As brumas da véspera havia dispersado. No largo e limpo horizonte um sol arruivado erguia-se, manchando de oiro as moles curvas das ondas. A matutina brisa calmou-me. Saí a passear ao longo da praia, sozinha. Depois, sentei-me a uma peDr.a a seguir com os olhos embevecidos a gloriosa ascensão do sol. Estive ali muito tempo. Lembra-me que quando ia tornar a casa, vi descerem do caminho da cidade teu irmão e R. A praia já tinha despertado. Vultos moviam-se ao longe.

Eles gabaram o meu maDr.ugar, afiançando que toda a cidade ainda dormia. Perguntei-lhes o que faziam eles também na praia, àquela hora. Entreolharam-se, sorriram, e por fim me disse teu irmão:

 –  O R. queria vê-la... queria despedir-se... Parte hoje para a Capital...

 –  Por terra?

 –  Por mar. O Mayrlnk vai tentar a saída às 10 horas.

 –  Que resolução foi essa? - indaguei lentamente, dirigindo-me-a R.

Mostrou-me um telegrama em que o chamavam, a negócios, a Florianópolis. Ao devolver-lho, os nossos dedos tocaram- se. Teu irmão, curvado, ajeitava o laço do sapato de lona: ao erguer-se, quase que nos apanhou a apertarmo-nos as mãos... Papai já vinha ao nosso encontro quando não os levei ao chalé, onde lhes servi, eu mesma, um cafezinho quente e perfumoso.

Como fizesse sombra dum lado da casa, levei para lá algumas cadeiras. R. seguiu-me. Teu irmão e papai içaram na sala a questionar de política, parece-me. R. acendeu um cigarro, soprou uma baforada que o vento logo desfez. Depois, como se seguisse o curso de algum pensamento, murmurou vagamente:

 –  Eu não esperava que me chamassem tão depressa...

Não me veio que dizer-lhe. Os nossos olhares encontraram-se.

 –  Eu queria tanto reproduzir aquele passeio de ontem, e agora...

 –  Vai partir - terminei.

 –  Vou partir - repetiu.

Nesse instante, no iluminado horizonte as silhuetas de dois vapores fundiram-se... cruzaram-se... e continuaram as suas opostas derrotas. Apontei-lhe aquele encontro, que ele apenas qualificou de interessante. Como são os homens! O que ele qualificou de interessante, para mim era uma coincidência. E vais saber por quê. De fato, no mesmo dia, R. partiu para aí. Passada uma semana, recebi dele uma carta, não digo amorosa, mas amigável; um mês após, um postal; tempos depois, um simples cartão de visita, reiterando "os seus respeitos"; e agora... agora uma participação de casamento, numa folha rósea e caracteres góticos!

Vai ser de outra.

Ela deve ter encantos que eu não tinha, há de ser boa e bela; há de amá-lo muito... Muito? Mentira! Não o amará mais do que eu! Julgas tu, minha I., que me envergonho de confessá-lo? Não, não e não! Amo-o profundamente, profundamente! Desde o momento em que o Destino nos pôs face a face, um minuto sequer não deixei de pensar nele, de o sentir cada vez mais do meu corpo com trazê-lo tão poderosamente ligado ao meu espírito. E, afinal, que houve de mais entre nós a não ser uma palestra à beira do oceano e um aperto de mão? Mais nada.

Ela não lhe dará nunca os tesoiros da alma, que para ele eu reservava; os meus beijos o embriagariam, as minhas mãos fundir-se-iam em carícias ao alisarem-lhe os cabelos! No entanto, essa outra vai possuí-lo, chamar-lhe-á seu, passeará pelo seu braço, deitará a cabeça sobre o seu ombro e ele lhe beijará, sofregamente talvez, os olhos, a boca, os seios... Eu é que sou a esbulhada, querida I.... Essa felicidade era para mim!...

★ ★ ★

Acabo de reler o que escrevi.

Tive ímpetos de rasgar essa confissão. Ninguém me perdoaria haver lançado no papel tamanho horror... Reconheço-

o,sim, mas é precisamente por isso que já não inutilizo esta carta. Ela te dirá sem rebuços o estado do meu coração, que sangra de dor no seu amor desamparado!

Tu, só tu, minha amiga, poderás indicar-me um meio de expungirda lembrança os sangrentos vestígios dessa paixão. Mas, como? Quem logrará impedir que sopre o vento, e brilhe o sol, e as águas procurem os declives para fluir?

Nunca pensei, minha querida, que se pudesse desencadear numa alma um tufão como o que agita a minha... Sinto que ela, á doida, é estorcegada por essa paixão - tal qual uma árvore é retorcida, fustigada, desfolhada pelo tagamte da ventania.

Como esta, são quase sempre irônicas as obras do Destino. Na derradeira manhã em que nos falamos, apontei a R., no horizonte aureolado de luz, as silhuetas de dois navios que, esbatidos na distância e na fuligem do mar, se cruzaram, se afastaram, se sumiram.,.

 –  Interessante! Murmurou R.

Mas que coincidência!

Como aqueles dois navios, as nossas almas - a de R. e a minha - um dia se encontraram no mar da vida. A dele chegou ao remansoso e almejado porto; a minha vai desarvorada, ao sabor da vaga e à mercê do vento, olhando o negro horizonte tempestuoso onde, por certo, se espedaçará entre os parcéis das inconsoláveis desditas...

Como eu odeio a outro. E como o adoro!

Ah! tens, a sangrar sem remédio, o coração da tua

C.

O Dia 13/04/1916

EVANGELHOS BÁRBAROS

(Da "Carteira íntima” de Cesário Braz)

Ama, ama como se abdicasses toda a energia egoísta que constitui o distintivo da tua personalidade.

Faze do meu amor uma como esmola de apóstolo - de forma que a tua razão não tente perscrutar o arrebatamento dos teus sentidos. Aniquila-te para que sejas grande.

O amor verdadeiro é o sacrifício da própria individualidade em troca da exaltação do egoísmo de outrem.

Por isso já se disse que "amar" é entregar-se, Entrega-te, pois. Deixa que os paivos procurem o enfartamento na continuação monótona da desmedida bestialidade. Pensa, antes de tudo, que mais vale dar um beijo do que recebê-lo. E há beijos que são tesoiros. Logo, se beijas bem, é porque espalhas tesoiros, é porque és rico. Dando, crias devedores. E sempre, sobretudo em amor, convém ser credor. O amor não é a satisfação dos empolgadores arremessos do egoísmo; é a esmola altruística do prazer, dada com desprendimento dos corações dedicados. Por isso, não busques saber se a mulher te ama. Basta crê-lo. Indagar o que há de sinceridade num beijo é querer saber o que há de verdade num dogma. A sinceridade no amor é como a divindade no dogma; duvidar de uma ou de outra é já meio passo andado para descrer delas.

Que importa que a mulher te engane, se possuis a enraizada, a visceral convicção de que ela deve, mesmo superficialmente, vibrar de paixão entre teus braços? Se o amor fosse todo de certeza, não teria esse sabor indescritível, que têm as coisas meio incompreendidas.

Convence-te de que és amado, cerra os olhos a toda investigação sobre a origem dos beijos, que te derem, e não prestes nunca ouvidos às vozes surdas que, de longe em longe, sobem do fundo do nosso ser, sussurrando insinuantemente suspeitas torvas...

Ama com absoluta fé na sinceridade dos baços que te apertarem. Só assim não provarás do fel que está - como borra amarga em vinho velho - no fundo de toda paixão.

Pensa. Pensa, porém, com a frialdade dos analistas superiores, através de cujas lucubrações brilha essa luz irradiante e sem calor, que é a alma das auroras boreais dos grandes Espíritos. Não te apaixones por esta ou aquela criação do cérebro humano. Compreende que sobre toda ação humana - pensar ou labutar - paira sempre a fatalidade de um fim supremo: a inutilidade. Se é que, para a vida, tens necessidade de um consolo, cria um Deus, inventa uma estética, goza com eles a hora a existência que teus pais te deram por via dum minuto de amor... Depois? Depois morre calmo, olhando a natureza impassível e confiando na transfiguração do teu corpo em luz, em papoulas, em som, em perfume, em lama...

Que importa a forma de que te vais vestir, se continuarás a girar nas artérias da Terra, continuamente, para sempre? Quem me dirá que nas pétalas das rosas, que estão sobre a minha mesa, não anda um pouco de sangue duma mulher, já morta, que amei e de quem quase não me recordo? Quem me dirá que nas pétalas dessas flores não anda um pouco da maciez da sua pele? Quem me dirá que naqueles espinhos não anda um pouco das mentiras em que me ela enredou?

Sente. Afina, porém, a sensação e o sentimento, busca espiritualizar as impressões que pelos cinco sentidos receberes, como se quisesses fazer delas emoções quintessenciadas. A vontade é tudo. Arquimedes dizia que, se lhe dessem um ponto de apoio, suspenderia a terra. E, tratando-se de ti, não poderás ser uma vez superior na vida? Que te imporá que a farândula soez dos apagados seres sem timbre d'individualidade própria espalhe derredor de ti o casquinar das suas chocarrices? Cruza sobre o peito os braços, encara-a de frente e quando ela se apropinquar demais - cospe-lhe em cima.

Concentra-te, portanto, como esses iniciados, que recoihidamente vivem nos remotos rincões da índia misteriosa. Pela confluência das nossas forças mentais sobre um dado objetivo, tornamo-nos, a pouco e pouco, senhores da nossa vontade. Cada conquista que fizeres nessa peleja mais assegurará a certeza da tua vitória. Vamos, exclama: quero! - e caminha.

Apieda-te. Sim, tem piedade dos que amaram e foram burlados, dos que têm fome e sede de justiça; dos que tiritam aos algores das invernias implacáveis, sem colmo nem farrapo; das noivas que perderam os noivos sem provar da ambrosia nupcial; dos que recostam as cabeças na rudeza das calçadas para, um momento, sonhar a delícia de um doce leito para sempre perdido ou nunca alcançado; e, se és artista, se pensas e sentes diferente da baça multidão dos parvos e dos obtusos - compadece-te, sobretudo, dos que te vão no encalço, os focinhos rasando a poeira, que pisas, a sonegar as pérolas, que, depois de um arrojado mergulho às remotas profundidades da tua alma tempestuosa, trouxeste à tona da publicidade e vais nababescamente desparzindo vida fora.

E então vencerás.

O Dia 04/05/1916

GIRAR...

(Sem pretensões à crônica)

Fazer o curso do jardim Oliveira Belo é uma tendência por assim dizer visceral dos florianopolitanos.

Parece que, desde que se fez o jardim - e isso há quantos decênios? - a nossa população só o aproveita para girovagar pelas aléias, ao som festivo duma filarmônica. As criancinhas de seis anos, ao tartamudear os seus primeiros grunhidos humanos, parecem já manifestar o desejo de ir ao Oliveira Belo; até as grandes matronas vetustas, a que o tempo emprestou uma como atitude gótica de catedrais medievais, querem a todo transe, nos seus últimos meses de vida, libar a delícia dos derradeiros passeios - enquanto a música faz ouvir a Cavalleria Rusticana.

É ali que o filho-família vai ensaiar as suas primeiras e inocentes abordagens amorosas, roçando com uma insistência inócua os bracinhos das rapariguitas de doze anos, em cujos olhares já quem não for tolo visiona as precoces claridades dos futuros incênáios da paixão...

Peço licença aos catões de casaca, para externar estas observações. Previno que não estou a deitar imoralidades. Negar que no fundo de cada menina há uma mulher adulta é afirmar a inexistência duma fera no coração de cada homem. Lembrem- se dos versos de Guerra Junqueiro:

Trazemos dentro em nós hediondos animais:

As pombas da luxúria, as rábidas panteras

E vampiros, répteis, e sonhos e chacais.

Brilhantes como a luz, tenazes como as heras.

Será um defeito da nossa época, em que se relega a educação para locelo das coisas inúteis? Nas maneiras infantis das meninas de hoje não há quem não descubra a pimenta da afetação.

Todas elas quase se alindam em casa por suas próprias mãos, postam-se minutos e minutos diante do espelho a ensaiar gestos, a estudar atitudes, a descobrir ineditismos de olhar, a dar cor às faces por meio de beliscões, enfim, a requintar-se em graças com a intenção de preparar-se um lugar entre as viripotentes. Pais e mães permitem esses arremedos e dizem-se uns para os outros:

 –  A Bibi é muito engraçadinha!

E é. Tanto que os rapazelhos, que começam a viciar-se nos cigarros reles, também lhes acham graça e, como encontram facilidade e estrada rasa para as suas ingênuas audácias, lhes passam bilhetinhos invitando-as a rendez-vous no Oliveira Belo.

Toca a música. Senhoritas de braços dados giram continuamente, giram incansavelmente, numa ronda que me irrita, que me entontece, que me alucina. Dir-se-ia acharem-se propelidas por mãos invisíveis, ou cumprindo um castigo nunca imaginado no Inferno dantesco. Umas movem-se nesta direção, outras em direção contrária. Há esbarradas, risos, repreensões.

 –  Estúpido! Você não enxerga?

 –  Desculpe-me, senhorita...

 –  Qual desculpa! Qual nada!

 –  Mas, senhorita...

 –  Vá bugiar!

As aparências iludem. Nem ele se desculpa deveras, nem ela está zangada: o encontrão foi propositado. Os senhores por certo conhecem aquele fenômeno que em eletricidade se chama atração...

Como há dias não há uma boa chuvarada ou uma farta molúria que refresque a terra, a poeira tolda o ar, macula o gramado, cuja as folhas das árvores entope-nos o nariz, apega-se-nos à pele, dá-nos comichões irritantes. Mas as senhorinhas não na sentem; aspiram-na a largos haustos, como se se deliciassem no ar puro duma maDr.ugada salutífera. Como o curso não se suspende, elas suam e tressuam; os namorados também se diluem em suor, mas esforçam-se por não perder a linha. Todavia são risíveis, com as faces congestionadas e os sapatos brancos de pó.

Geralmente os pais, as mães, avós tomam assento nos bancos estendidos ao longo das aleas. Quando se curvam um pouco para adiante a gente pode ler por cima dos seus ombros, no espaldar, dos bancos, anúncios em letra de palmo: Salão Brasil... Casparina, Tônico Ideal - Bebam Salutarls, etc.

Num desses bancos sentara-se um rotundo cavalheiro, de óculos azuis, e que pelos modos com que mirava a multidão, parecia ter ali pelo menos cinco filhas casadoiras. O calor abafadiço da tarde obrigara-o a tirar o chapéu de coco; a sua careca luzia, rósea e polida. No entanto, por detrás dele, no respaldar, se entendia em letras deste tamanho:

"Woll cura a calvície".

Eu lastimei então a inutilidade dos anúncios.

O Olho

ENTERRO

As paredes estão desadornadas de quadros: e como o sol das quatro horas reverbera, cintila, chameja nas viDr.aças, foram cerradas as folhas das janelas. Mas uma réstia de luz, sorrateiramente escapulida por uma frincha traidora, risca o assoalho com uma sarja de ouro, sobe vertical pelos veludos da essa, acende fagulhas nos embutidos do esquife, risca um arco indefinido sobre o ventre abaulado do cadáver.

Parece que era pai o morto, porque no quarto em frente uma mulher de cabelos revoltos, os olhos pisados, uiva de dor,

pedindo também a morte, com os punhos crispados por cima da cabeça. Três criancinhas choramingam ao pé da cadeira em que ela - a mãe, com certeza - se contorce angustiada.

Algumas mulheres, com lágrimas trêmulas nas pálpebras, vão-lhe dizendo:

 –  Então, minha filha! Paciência... Havia de ser; Deus sabe que faz...

Mas a mulher não ouve, e o grito ainda mais pungente lhe sai do peito, quando o seu olhar cai sobre o morto que lá está ao meio da sala, resupino, as mãos encruzadas no peito, muito pálido, olhos fechados, uma grande mosca inquieta na comissura dos lábios entreabertos.

Quatro velas, já quase a acabar-se - duas aos pés e duas á cabeceira - ardem frouxamente com um cheiro forte de cera, que se mistura ao perfume das grandes coroas de rosas e manjericões poisadas sobre cadeiras. Há soluços abafados em lenços; as palavras são trocadas a meia voz, como si se receasse despertar alguém.

Das árvores do jaráinzito ao lado vem o canto áspero, metálico, das cigarras.

Os convidados vão chegando, apertados nas suas andainas pretas, o ar muito compungião. Os mais deles ficam à rua, à sombra do prédio fronteiriço; alguns, jogando longe os cigarros, entram, aproximam-se da essa, sacodem o hissope por cima do cadáver, tornam a sair, pé ante pé...

Anuncia-se o padre. Entra.

É um frade alemão, enorme e rubicundo, acolitado por um rapazinho pálido e de largos olhos pretos.

O sacerdote saúda os presentes com um recolhido baixar de pálpebras. E não se demora, já abre o seu livro, já cicia uns rápidos latins, já esparge água benta com grandes gestos...

 –  Requiem aeternarr dona ei, domine!

O rapazito:

 –  Et lux perpetua iuceat ei!

A mulher, no quarto, geme lamentações cortantes.

Um dos pequenitos veio postar-se ao pé do padre e, de dedinho na boca, a outra mão para trás das costas, contempla embevecido as fitinhas azuis, roxas, vermelhas, que pendem do livro santo.

 –  Requiescat in pace!

 –  Amen!

Mas já um mulatão enorme desencosta da parede e ergue às mãos a tampa do esquife para coloca-la no devido encaixe; e é quando a mulher salta do quarto com o arremesso duma leoa para fora da jaula. A dor da despedida suprema transfigura-a.

Não há mãos que a sustenham; e ela debruça-se sobre o cadáver, beijando-lhe os olhos, as faces, a boca, gritando que não o levem! Que não o levem! Conseguem alfim despegá-la da borda do esquife.

São trazidas as crianças para que beijem o papai. A menor delas, atemorizada, volta o rosto não quer, chora... Algum parente depõe na testa do morto um beijo rápido e sai estrangulado de soluços.

Depois do último adeus a tampa cai com um som cavo e o martelo bate impassível, em pancadas certeiras, isócronas; o mulatão sobreprega-lhe as coroas, distendendo as fitas roxas onde se leem adeuses em grandes letras de ouro. Já seis homens suspendem o féretro e o levam, a passos incertos - o que lhe dá uma oscilação de onda.

A mulher, alucinada, pragueja, amaldiçoa a Deus, e, por fim, exausta e como morta, tomba para trás, inteiriçada. Trazem éter, dão-lho a cheirar.

Ela entreabre os olhos, estende o braço, murmura:

 –  Onde estão os meus filhos?...

E por onde passa o enterro, todos se descobrem, nascem curiosidades e comentários.

 –  Quem é o morto?

 –  Deixa família?

 –  Era bom homemI

 –  Afinal, felizes dos que morrem!

De longe em longe uma parada em que se revezam os que carregam o esquife.

Chegam afinal ao Cemitério, donde se abrange um panorama imenso e luminoso. As duas baías resplendem ao sol da tarde.

No canal o nordeste zebra de branco as águas empoladas.

Caminham. Montículos de terra cobrem mortos pobres, sem nome, apenas com um número a uma estaca de ceDr.o; mausoléus de mármore guardam a carcassas ricas; há sepulturas que são canteiros cercadinhos de grades azuis, verdes, brancas, amarelas, através das quais se estendem galhos de roseiras floridas, palmas de Santa Rita, manjericões, perpétuas, cravos mais rubros que brasas...

O coveiro, ao fundo dum caminhozinho estreito, chama, e o lutuoso préstito para lá se envereda. O vento arranca dos ciprestes um choro lento e contínuo. Pousam em terra o morto. Lesto e prático, o coveiro passa as cordas às alças do caixão. Quatro homens seguram-nas de rijo, vão baixando... baixando... baixando... O féretro bate no fundo da cova com um ruído de trovão longínquo.

A pá do cal passa de mão em mão, alguns esfarelam torrões de barro para dentro da cova, sussurrando:

 –  A terra te seja leve!

Então, como quem cumpriu um dever humanitário, todos se dispersam, consoladamente, acendendo cigarros, parando à sombra das árvores, olhando as duas baías que rebrilham ao sol da tarde, ou alguma embarcação que veleja distante, indecisa, para as bandas de São Miguel...

O sol, cor de lacre, já vai no ocaso. E ciprestes, batidos pelo vento, não descontinuam seu magoado choro...

Anuário Barriga-Verde 1920, p, 71 - 72

À MARGEM DO TEMPO

Altino

23 - 7 - 917

O dia, hoje, está vestido de azul. O mar é azul, os montes, ao longe, são azuis, e o céu é de porcelana azul.

Mas a cor azul é ilusão. O azul do céu não é senão ar adensado; o azul dos montes é o verde visto a distância; a água do mar é azul porque nela se reflete o azul ilusório do céu; do contrário seria verde ou, em pequena porção, cristalinamente clara. O azul, na natureza, mente.

A minha cor é a branca. Branca é a inocência, branco é o perado, branca é a neve, branca é a geada, branco é o lírio, branco é o leite correndo em rios no país de Canaã, branco é o marfim incrustado nas portas do templo de Salomão, branca é a luz alta e fina das estrelas, branca é a claridade da aurora, branco é o luar, branca é a via-láctea, branco é o papel em que estou apologizando a cor branca, branco é o primeiro beijo porque é puro, branco é o derradeiro suspiro dos que atravessam ilibadamente a vida e imergem nesse oceano sem praias que é a morte.

Oh! eu adoro a cor branca! Demais, é uma cor pacífica e infeliz, a única, talvez, que tenha uma inimiga: a cor preta! Pacífica, infeliz e sem intenção. Todas as outras são vaidosas, querem realçar-se, distinguir-se, afinal, têm intenção. A cor branca pede só que não bulam consigo: deseja continuar a ser branca para ser pura.

E como eu respeito a pureza e a inocência, devo amar a sua cor simbólica: a cor branca.

MAR GROSSO

(impressões da Laguna)

São vinte minutos da cidade ao Mar Grosso. Esse passeio solitário e soberbo várias vezes o fiz, com o vagar e a volúpia de quem convalesce duma larga enfermidade.

Ainda ontem lá fui. Era de tarde e um sol rico, dum ouro carregado, dava às franças do arvoredo tons aloirados. Havia fartas sombras aqui e além, sob os ramos das canemas, pessegueiros e laranjeiras marginais. De longe em longe as ramagens eram tão copadas que formavam dosséis sobre o caminho e a custo se podia entrever nos claros do seu entrelaçamento retalhos do céu azul. Folhas secas caíam, farfalhando.

Súbito, num torcicolo do caminho, desvendei lá em baixo o mar grosso e comecei a descer para as dunas.

O nordeste lufava áspero, quebrando o mar em vagalhões arquejantes, que se enrolavam de bojo enfunado, cresciam, grimpavam com íris de espumas na crista e se precipitavam com fragor de batalha sobre a areia clara da praia, estendendo até longe o seu lençol alvinitente.

A praia é uma curva suave, muito aberta, tendo à direito o molhe, reto e longo, com o seu esqueleto do traves negras, parecendo que fecha a barra, onde a ondulação da vaga, mesmo de longe, se torna mais visível: para adiante, é o pendor do morro do signal, semeado de peDr.as e tendo à ponta, lançada pelo mar dentro, uma laje cor de ferro, contra a qual os vagalhões do largo se esfarelam numa pulverização de espumas que vibra à luz e vai ao sabor do vento como névoa de inverno.

À extrema esquerda, são rochedos vermelhos em cujas fendas, eriçados, vegetam miseravelmente cardo e sarçais. Nas grandes arrebentações salpicos da maresia borrifam as folhas espatuladas e espinhosas das jurubebas, erguidas com desassombro nas arestas soltas entre as fendas brutas. E às vezes, nas arestas escarpadas do granito cabritinhos com saltos elétricos fazem maravilhas de acrobacia, pendidos quase a prumo sobre o mar que rebenta lá em baixo.

Tão vasta é a praia, duma ponta à outra e da orla do oceano às faldas verdes do monte, que, mesmo com o mar ao pé, nos faz lembrar a árida desolação do Saara.

De longe em longo a branca e faiscante monotonia das areias é que brada por tufos que sarça e tojo, dum verde doentio, tostado das soalheiras inclementes.

Mais perto dos morros do que do mar estão os cômoros, revoltamente enovelados e que o vento ora alisa, ora desfaz, de modo que no ar anda sempre uma sutil molinha de poeira, que vara a costura das roupas e adere à pele. É doce e é enfadonho caminhar sobre a maciez desse areal.

Por vezes, no ar azul, aves marinhas passam, em voos boleados: ora gaivotas cor de algodão virgem, ora patos bravos dum tom de cobre.

Quando tornei à cidade, morria o sol para além dos montes, enquanto o mar, na sua cólera solene, atroava os ares.

Na linha morta do horizonte, esfumada em neblina, fugia a silhueta longíngua dum vapor.

(Laguna, 28 - 2 - 1915.)

Anuário Barriga-Verde 1920, p. 94

INVERNO

Pelo amanhecer, nenhum pio de ave fere o silêncio dos bosques, nem das frondes bem cuidadas dos jardins. São manhãs caladas, recolhidas, como se surgisse, de trás dos morros, nas pontinhas dos pés...

No levante - ao invés dos amanheceres estivais, que é quando o céu se enche de escorrências de sangue fumegante - uma claridade metálica e argentina suavemente se dilui no azul esbatido em escumilhas de neblinas...

O áspero frio castiga-nos por havermos deixado a cama, irrita-nos a pele dando-lhe arroxeamentos de pisaduras. E o sol, com a preguiça e o vagar dum Mandarim fleumático, galga os morros, deita para cá o seu olhar bonacheirão, contempla enternecido os fumos evolados das chaminés e desfaz no relvedo os cristais das geadas.

E, todo o dia, passa a luz a lavar a seda azul das alturas por onde não voam mais as andorinhas. Algumas, raras árvores estão despidas de folhas; outras estão a desnudar-se; mas as mais delas se conservam álacres, garrindo num triunfo de esgalhos verdejantes. As laranjas pendem das ramagens espinhosas, quais tentadores pomos de ouro - e as rosas riem como na Primavera.

Ao entardecer, descem sobre a terra, com a melancolia do "ângelus", as brisas agrestes que nos emperram as juntas, exigem capotões, luvas - e uma boa fogueira alegre e crepitante.

O poente vai tomando sucessivos cambiantes - do ouro aquarela ao maDr.epérola, do maDr.epérola ao cinza, do cinza ao azul escuro e, finalmente, ao negro só próprio dos céus hibernais.

Surgem as chamas longínquas das estrelas. Como elas tremem, incertas! Que frio deve fazer lá em cima!

A Semana, 13 de junho de 1915

RAPAZES E RAPARIGAS

(Pontos nos ii)

A mocidade catarinense, a falar verdade, é em geral tola; e, se eu fosse menos ignorante do que sou, poderia com facilidade filiar essa sua tolice a uma crassa e hedionda falta de cultura intelectual, cujas consequências estão aí a patentear-se cada dia, cada hora, cada instante, nas palestras dos cafés e nos saraus dos clubes, onde assuntos de ocasião são ventilados com chateza invulgar e espantosa.

Além desta lastimável estreiteza de vistas - frincha por onde se escapam denunciadores os fumos que lhe obscurecem a inteligência - tal mocidade carece de vocabulário próprio, técnico, adequado às impressões que de momento, no correr da conversação, surgem e exigem ser manifestadas.

Por exemplo, o Arnaldo, anteontem, para me citar não sei que estrambóticos sucessos da Laguna, ejaculou estas oscas virulências:

"Pois, quando o bicho (o vapor em que ele ia) atracou, a canalha (os populares curiosos) saltou pra dentro e eu só fiquei vendo, pasmado, a... como se diz?... a... o tumulto que eles faziam, gargalhando de alegria em redor: da... do... daquele negócio... daquela abertura onde se armazena a carga (ele queria dizer: porão, escotilha)..." E assim por davante - frases entrecortadas de aquela coisa, aquele negócio, ou de reticências, de suspensões mnemónicas, terminados em: como se diz?... Um pavor!

O mesmo acontece com as senhoritas do nosso escol. Eu já evito de falar-lhes, para não me desprazer com ouvir de boquinhas tão lindas frases tão tortas!

Se por acaso, lhes cio algum autor, elas dão-me com o Alencar ou o Machado pelos narizes; se aludo à Carmen, de Bizet, elas põem as mãos palmas com palmas e ciciam: "E a Zuieima, de Freyeslebenl? O senhor já viu que valsa linda?"

Certa feita estive a pique de dizer a uma delas - suavíssima criatura de dezoito anos, olhos mais finos que esmeraldas e cabelos mais fulvos que o sol de estio: - "Ora, senhorita, leia-me Paulo de Kock e cante-me o Chegadinho faz faz!II"

Referindo eu as belezas da Cidade e as Serras, quando proferi o nome de Eça de Queiroz, recebi de outra esta apóstrofe lançada com o repelão de quem vê mandinga: - "O papai não quer que entrem cá e, casa os romances desse homem!..."

Às vezes perco a linha. Foi o que aí sucedeu: encalistrei. Mas, logo depois, agarrando o sangue frio pela gola, indaguei:

– Por que, senhorita?

Ela vacilou, procurando com o olhar maluco uma resposta no chão, na coberta do piano adormecido a um canto...

– Ele lá sabe!...

Sim, o pai dela sabia, e eu também, porque tenho na minha estante O Primo Basílio.

Mas se essa senhorita soubesse o que era uma obra de Arte, o que é o colorido de que se serve o Artista para dar às suas criações a luz forte da Vida, se essa adorável burguesinha, polida por educação mais espiritual, viesse a discernir o imoral, o obsceno, o imundo, da "Realidade vista através dum temperamento" – certo exigiria do pai os motivos da sua proibição, leria as páginas eceanas, e não teríamos - vocês talvez não creiam - uma mulher a mais no número das que sabem conservar as graças da feminilidade mesmo depois duma longíssima viagem pelos descampados do Realismo.

O que faz perigar a candura de tua filha, ó burguês prudentíssimo não é o Primo Basíllo, mas sim teu sobrinho, primo dela, quando, estando ela a tocar e ele encostado por trás do piano, se aproveita da tua distração para voltar da página à partitura.

Albino ROZAS

A Semana, 27 de junho de 1915:

CASAMENTOS CA DA TERRA

As terras são como as pessoas: não há uma que se iguale a outra. As dissemelhanças ressaltam, nítidas, incontestáveis. O deleite de analisar-lhes as diversas formas de viver - os seus característicos - é que levava o espiritual Fradique a viajar, arrasando-o de ao pé de Chambray club-man para junto dos zulos de Wreyheid...

Ora, Florianópolis tem cá os seus distintivos. Temos, por exemplo, as nossas baías cercadas de montanhas de um anil carregado, um céu d'encantar - "crepúsculos alucinantes" - como lhes chama Diniz Júnior cuja alma sabe tão perfeitamente compreender e definir a conexão entre certos estados psípuicos e as expansões da Natureza, sempre rica de amavios e galas inéditas; temos também o vento sul, áspero e inclemente como um bárbaro das Invasões, e o pinturesco arrabalde da Toca, com o casario empilhado em cima de um monturo, águas podres e fezes rebalsadas no declive dos quintalejos... Temos, além disso, tipos inconfundíveis, mórbidos, às vezes, de uma morbidez satânica, eivada das piores achas patológicas, e, às vezes, suavemente detraqués, prestando-se a mais não poder para um engraçado estudo à Lorrain e à João do Rio. Virtudes e vícios - todas as grandes ações, luminosas como céu de verão, e todas as falsidades imensas, torvas e violentas como tempestades... Não nos falta o garoto, por quem Fialho d'Almeida sempre teve uma esquisita admiração. Mas o nosso garoto é manso, respeitador da Polícia e das vidraças alheias: e, pequeno nos seus doze anos, é já um grande e um forte para ir furando a vida às cotoveladas e aos assobios...

E temos ainda... vocês sabem o quê?

Os casamentos.

Um dia, as gazetas lançam às turbas ávidas de novidade o pregão pitoresco do "enlace do distinto cavalheiro e nosso amigo senhor Boacentura Grosso com a gentilíssima demoiselle Sabina Mudo Saevola. Ao jovem par antecipamos, com muitos cumprimentos, os nossos mais ardentes votos de felicidade”.

Então o leitor pespega na própria testa (e que desaforo se fosse na alheia!) uma palmada seca:

– Diabos ia-me esquecendo! Quero ver isso de perto...

E, berrando para a varanda, onde a mulher vai sonolentamente reparando umas piugas ultra-usadas:

– Ó bichinha! É hoje que a Sabina casa!

– É sempre com o Grosso?

Com quem havia de ser? Se queres ir até a CateDr.al, apronta-se. Estão quase a pingar as seis e meia, e às sete, com certeza, eles estão lá!

A mulher calça os sapatos com rodelas de borracha nos saltos, muda o saiote e enverga uma mantilha de coloração neutra; as filhas dão uns toques de pente ao cabelo, enrolam ao pescoço écharpes mais leves que espumas, enquanto o senhor, já de chapéu na cabeça dentro de casa, ainda passa a escova no paletó, com autoridade. Agora é a mulher quem se apressa:

– Anda, homem, que levas um século!...

E é ele quem responde:

– Espera um pouco! A Catedral não foge!

E a hoste abala, a marche-marche, as écharpes a esvoaçar como signas guerreiras. Chegam. O templo está cheio e sonoro como uma colmeia. Entram, tresmalham-se, confundem-se, no seio da multidão rumorosa. Fala-se alto como numa feira. Há risos. A luz expande-se das lâmpadas elétricas, quebra-se na abóbada, cai a prumo sobre a massa curiosa e hílare. Uns cães vadios, entrados de roldão com a turba, são postos na rua a ponta-pés e vão a ganir sob galhofas irreverentes. A um grosso rodar de carros lá fora, a multiádo já abre alas dentro do Templo. São os noivos que chegam. O burburinho sobe ao auge. No coro uma voz entoa a Ave-Maria nupcial - longa, lenta e triste como um Réquiem... A noiva caminha perturbada, com a mesma comoção que deve assaltar as atrizes nas estreias de grande reclamo, e o seu véu, de uma leveza de nuvem, envolve-a toda, docemente...

Mas a cerimônia acaba. O sacerdote felicita os nubentes. Apertos de mão, abraços, parabéns em voz baixa. As meninas que levaram as almofadas e a que levou as alianças numa salva de cristal sorriem.

Por toda a nave do Templo, até a porta, mesmo no adro à claridade das estrelas, o povoléu comenta quase aos gritos o vestido da noiva, o peitilho reluzente do noivo, o simbólico ramalhete de flores de laranjeira, a ostentação domingueira das testemunhas e alguém observa, com escrúpulo, que o Dr. Haute-Gomme, de casaca, não se pejou de vir de gravata azul-celeste.

O tumulto recrudesce. Os casadinhos saem. A multidão, burburinhando, reabre alas. Cotoveladas. Pescoços estendidos na ânsia de ver. Dichotes e trocadilhos. Duas mulheres da relé mutuam insultos a meia-voz, Alguém silva um pssst! Repreensivo. Mas ninguém atende: o cortejo vai saindo, e o marulhar do vozerio, crescendo, retumba sob a sonora abóbada. A turba despeja-se no adro, escorre pelas escadarias. E o templo fica vazio, com as lâmpadas a rebrilhar inutilmente, os santos imóveis nas peanhas dos altares - indiferentes às misérias da Terra e aos casamentos...

Anuário do Estado de Santa Catarina 1917, p.43-46

Terra (Revista) p. 57-58

OS BAILES

(Pontos nos ii)

Uma destas noites fui a um baile. Francamente, o baile é um gênero de diversão que não me agrada muito. Em todo caso, sempre é um centro para onde confluem caracteres diversos, dignos de serem observados, desde o esnobe intolerável ao desembargador austero, peado de ventre e de conceito; desde o pianista rogado, ao polquista sutil, afável, insexual e ao valsista espadaúdo, brutal, espécie de sátiro de salão. Há outros que não dançam e se deixam ficar pelos ângulos da sala, nos desvãos das janelas, acoitados nas cortinas das portas à espera dum flirt exasperante, hora sobre todas sublime de ir para mesa. Há moços que fazem prego - expressão imprópria, errônea, algo indecente, mas assim mesmo consagrada. Há também as mais.... ditas, cocando com furor os modos al zabuzodos das outras raparigas, mais felizes, que ainda não tomaram fôlego.

Tudo isto observo, graças a certos conselhos abismado em Flaubert.

E, como não danço nem flirto,sobra-me tempo para armazenar essas observações, das quais me sirvo quando preciso e bem entendo.

Mas essa vaidosa curiosidade, requintada por tanta mineira, não valeu a estranha apreciação que estes ouvidos escutaram ao meu cãozinho.

Voltava eu do baile quando não, ao entrar em casa, ele se pôs a saltar derredor de mim, lambendo-me as mãos, ganindo baixo de alegria. Eu estava aborrecido e com sono. Dei-lhe um pontapé. E que sucedeu?

Vocês talvez vão dizer que é mentira... O bichinho voltou-se muito humilde e com a voz mais humana deste mundo, exclamou:

– "Obrigado!"

Caramba! Um cão a faiar! Confesso que minha primeira impressão foi de terror. Mas tendo mão do meu espanto e procurando verificar se fora mesmo o cão quem me falara aquela palavra de agradecimento, estalei os dedos, chamando:

Joli! Joli!

E o Joli, guardando distância, respondeu:

– "Como são os homens! Escoiceiam e depois... Enfim, que me quer?

Não, não era ilusão, porque eu, já curvado, palpava as formas reais do animalzinho; nem era embriaguez, porque não costumo exceder-me nos líquidos em que são fartos os nossos bailes. E ele continuou:

– "Agora você me acaricia. Faz bem e não fez mais do que o seu dever, Vem do baiie e evita as minhas festas. Nisso faz mal. Afinal de contas, que são os bailes?"

Já o caso me ia interessando. O meu primeiro espanto amainara. E, disposto a gozar o espetáculo jamais visto depois que o homem monopolizou o Verbo, tentei prolongá-lo:

– ” Mas, caro Joli, o baile é uma diversão como as outras..."

– "Engano! Puro engano! Nós os cães também podíamos ter não só clubes recreativos, como até institutos de dança. Todavia não queremos. E o colega sabe por quê?

A esse termo colega eu quis protestar. Mas no espírito me passou de relâmpago a verdade científica de que o homem é também um animal, apenas diferindo dos outros no requinte da malvadeza, da hipocrisia e da dúvida de vida que o atormenta. E concordei. Ele continuou:

– "Pois eu lhe digo: é que o baile é supinamente inestético e imoral. Ora vocês chamam a uns volteios à toa Arte. Impossível. Quando muito, o que pode haver neles é imoralidade. Pois é para os clubes de dança que os pais empurram as filhas casadoiras, cujas idades já dobraram a esquina dos vinte e cinco e vão fazendo delas uma espécie de titias floridas e catitas, com muito decote e não menos pó de arroz. Outros acham os bailes higiênicos... Por favor! Que higiene haverá numa descompassada série de volteios, quando, às duas da madrugada, o cavalheiro sua por todos os poros e a senhorita escancara bocejos hiantes por trás do leque lantejoilado? Como tudo isso é sublime! Quanta Arte e quanto sono! Os que não cochilam, abusam das raparigas..

– "Protesto!" murmurei com repulsa.

– "Pois eu detesto esse seu protesto, porque não procede. Haja vista os múltiplos dissabores e questiúncilas resultantes de certas valsas muito balançadas! Quando não é o irmão e o namorado da rapariga que se esmurram no fumadoiro do clube, é o pai da dita quem brande a bengala vingadoira. Não é? Você ainda protesta? Bem vê que o meu bom senso de cão não erra. E porque estouram os murros e vibra a bengala? Será por se dançar com a decência requerida num salão civilizado, num salão humano? Franqueza de cachorro: se nós fizéssemos bailes, joeiraríamos todos os pequeninos defeitos que desmoralizam as vossas festas de sociedade, começando pelo flirte acabando no tango. Por que é que nós, os cães, não flirtamos? E por que não dançamos? Unicamente porque o flirt e a dança são duas coisas desnecessárias ao verdadeiro amor, inutilidades concebidas por aqueles que ocupam o lugar de honra na jerarquia animal - para complicar estafantemente a simples obra do instinto. Em conclusão: visto que você deve estar cansado: os salões, mesmo os mais alumiados, são puros lugares de entrevista; e os bailes, mesmo os mais pudicos, não passam de..."

O meu cãozinho disse a palavra. Porém, vocês hão de perdoar que eu não na ponha aqui, em letra de forma. Seria uma ofensa aos que têm acompanhado a exposição caninamente catoniana de tais considerações, até este ponto.

Ele tinha razão. Mas eu, para provar o contrário, pespeguei- lhe um novo e tão formidável pontapé, que ele não tujiu nem ganiu: Rolou distante três passos, meteu a cauda no meio das pernas e foi enovelar-se a um canto, olhando-me com um olhar em que ainda vislumbrei mais esta verdade silenciosa:

– " Esta é a tua lógica, homem: o coice!'

Assinado Albino ROZAS

(de A Semana, 11/07/1915)

JOAQUIM DOS SANTOS

(Notas)

Encontrei-me com um originalíssimo tipo de homem, numa localidade do meio-dia catarinense.

A sua fisionomia era toda feita de linhas tortas: testa quadrada, não vasta, nariz grave, olhos pretos, miúdos, insistentes na sua desconfiada fixidez, barba e bigodes bem escanhoados, deixando perfeitamente cavadas as linhas que vão das asas do nariz à comissura dos lábios - que não se descerravam nem mesmo quando sorriam. O seu cabelo, rapado à escovinha, era duro e já pintalgado de branco, como se sobre a cabeça lhe houvessem assoprado uma pitada de cal. A estatura era neã, o andar pausado.

As palavras, ele as largava com usura, batendo bem todas as sílabas, como quem receia ter-se excedido... O que não impedia que, de longe em longe, se tornasse parlador, narrando anedotas picarescas, fazendo gestos que lhe sacudiam as abas do paletó e lhe descobriam, na cinta, a coronha dum belo Smith-Wesson.

Numa dessas feitas, veio a talho de foice dizermo-nos mutuamente quem éramos e a que andávamos por aqueles sítios. Tínhamos acabado de beber o cafezinho da ceia, que o estalajadeiro nos servira com umas bróas inesquecíveis, e, lá fora, na noite quieta, as árvores pasmavam para o luar.

Depois de alguma trela, ele indagou:

– A sua graça?

– Albino Rosas.

– Pois o Sr. Albino tem cá um criado no seu Joaquim dos Santos.

– Muito obrigado.

– É como eu lhe dizia: ando em cobrança do Dr.***. Da Capital. Conhece-o?

– Muito.

– Daqui sigo até Braço do Norte, pretendo ir às Minas e depois a Campos Novos e Curitibanos. A propósito: que me diz dos fanáticos?

Ele chegou mais para a minha a sua cadeira de palha de butiá, manifestando interesse. Que lhe havia eu de dizer? Não sabia nada...

Recuou a cadeira, fixou-me nos olhos e sobreveio longo silêncio, Súbito, ergueu-se dizendo que tinha que escrever ao Dr.***.

Fiquei-me ainda a contemplar a grande paz do arvoredo à luz aperolada do luar e a ouvir, pras bandas do quintalejo, o lacrimejar duma escondida fonte...

Albino Rosas

(in A Semana, 10 de maio de 1915)

OUTONO

Já pairam no ar as primeiras sinfonias outoniças. Os crepúsculos têm alaranjados de aquarela, cambiantes de violeta e cinza, com leves tons aperolados e indecisos...

Nas laranjeiras os frutos se avolumam para em breve transmutar o verde-negro da cor em ouro rico, Passam dias de chuva, tristes como tuberculosos; e passam dias de sol, alegres como ceifeiros no trabalho... O azul, por vezes, é puro, diáfano. Mas não há como as tardes. As tardes outonais...

Que solenidade quando o sol se recolhe, moroso, por entre cortinas aurifranjadas e rendões policromáticos! E, depois, as clarinadas rubras que ficam, incertas, palpitando no ar adormentado, invadido de mansinho por adensamentos violáceos e nostálgicos... Espontam as primeiras estrelas. O plenilúnio assoma de trás dos morros.

E é então que a saudade estende dentro de nós seus tentáculos rudes e voluntariosos...

Outono - quadra das folhas que caem e das lânguidas nostalgias...

(A Semana, 4 de abril de 1915, p. 1)

MORS... PAX...

(Nota: Foi escrita esta página, em 1915, para o Estado, que a publicou em o dia de finados. Para republicá-la agora, sujeitou-a o Autor a uma ligeira modificação, apenas material, porque só à forma se refere. No fundo há laivos de certo panteísmo filosófico do Autor, hoje, nem sequer a atenção lhe prende, podendo ele agora repetir com Gabriel Delanne? "Acreditamos firmemente que a imortalidade se acha diante de nós, e a imensidade dessa palavra nos ajuda a compreender que o tempo passado não é mais que uma quantidade infinitesimal em relação ao nosso futuro insondável. A terra é o ninho que havemos de abandonar quando tivermos feito aquisição de asas, ou, para falar sem metáfora, quando nos tivermos suficientemente libertado desses sudários terrestres que são os nossos instintos, vícios e más paixões").

No ar triste bailam toques fúnebres de sinos.

Por quem choram os bronzes nas torres das igrejas? Pelos mortos.

Choram pelo que morreu, contente de si e do mundo, rodeado dos seus, com a consciência pura como a luz - consciência por onde perpassaram os pensamentos bons como leves remigios de aves; choram pelos que se finaram em arquejos estrangulados, o nariz afilado, a boca hiante, os olhos escancelados e imóveis na aterradora perspectiva da Eternidade; choram pelo que se extinguiu aos vinte anos, com a alma apendoada de sonhos; choram pela noiva morta em plena boda e que, ainda de véu místico e coroa de flores, desceu rígida ao seio irônico da terra; choram pelo que, um dia, cansado das amarguras da vida e das mentiras humanas, varou o crânio com uma bala; choram pelo guilhotinado ou pelo náufrago, que, de ventre impado e órbitas sem olhos, ficou apodrecendo entre duas pedras, numa praia solitária, amortalhado na alva túnica das espumas...

Felizes dos mortos! Ainda têm quem os lamente! Ainda têm a voz lamentosa dos sinos! Felizes, sobretudo, porque descansam!

A luta aspérrima da vida, tão suadamente trabalhada, exaure-nos as energias. Que vontade é essa que imaginou o homem miserável, o compeliu ao mundo e lhe apontou a via dolorosa da vida, dizendo: vai?

E o homem caminha. O seu pasro é incerto e o seu destino ignorado. Todo dia o sol se levanta, com a mesma pompa e glória duma grande ressurreição, faz o seu giro de rei e descamba no ocaso, ensanguentando o céu, a paisagem, enchendo de saudade o dolorido coração humano. E o homem, pela janela da oficina, ou no convés dos navios, ou no campo, curvado sobre o arado, ou no gabinete de estudo, ou no leito de sofrimento, ou pelo espiráculo da enxovia - ergue os olhos pisados para o sol e geme:

– Quem pudera, como tu, morrer entre crepúsculos amarantinos e renascer entre auroras de prata, com os pássaros a musicalizar as frondes orvalhadas!

Mas o esforço redobra, o trabalho insano depaupera e o homem pensa:

– Afinal, para que renascer, se teria de reproduzir esta peleja, talvez com mais agrura, com mais angústia talvez? A ressurreição, assim, não seria um castigo? Quem sabe! Melhor é que recolhamos ao seio frio e implacável da Morte, onde o egoísmo, a inveja, o ódio, o esforço, a ambição, a dor, a alegria, a calúnia e o amor se acabam... Melhor é que nos entreguemos sem pena ao túmulo repelente, onde a Química nos espera para nos fazer subir pelas raízes, pelos troncos e ressurgir em flores e frutos...

Eis aí o que se temia: a ressurreição. Transforma-nos, mas dá-nos outra vida. As flores também se amam, também se amam os frutos. Quando de um mesmo ramo uma rosa é colhida, a outra se desfolha; um fruto cai quando o outro é apanhado... Por quê?

E o homem, que pensava ter na tumba a paz, vê que a agitação da vida se transmite à morte; o que ele suspeitava ser descanso não é senão uma disfarçada modalidade do movimento eterno. Será fogo para aquecer os regelados, água para lenir os sedentos, seiva para vitalizar roseiras, luz para aclarar as misérias da terra, verme para mergulhar nas podridões, sangue para acicatar a luxúria, lágrima para abrandar cóleras, suplicar perdões, prolongar falsidades...

Os toques fúnebres dos sinos sonorizam o ar melancolicamente.

Afirmarão eles que os mortos descansam?

Impossível!

O homem sente que, mesmo poro além da Morte, nunca lhe será dado alcançar a ventura inaudita, a volúpia sem par do repouso absoluto.</