Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Goethe, os "novos" e os "velhos" de Altino Flores. Florianópolis: s/n, 1949. GoetheAltino Flores
“...movimento algum deu jamais no Brasil tantos poetas (surgiam até aos magotes, três, quatro, cinco, pelas cidadezinhas do interior, subscrevendo cadernos desenxabidos de poemas) como o Modernismo. Foi um movimento prenhe de poetas exíguos e numerosos tal qual a prole dos pequenos animais.”
— Jorge de Lima
“O modernismo intencional gorou...”
— Alceu Amoroso Lima

A CARLOS DA COSTA PEREIRA

Há mais de trinta e três anos, trocamos, pela vez primeira, um amigável aperto de mão, na velha cidade de São Francisco do Sul.

Foi isso por uma fina tarde de junho de 1916.

Desde então, essa amizade — grande árvore sagrada — abriu sobre as nossas vidas uma sombra meditativa, cheia de recolhimento e compreensão.

Deixemos que a árvore cumpra naturalmente o seu ciclo vital.

Envelheçamos com ela, recordando as vozes de todos os pássaros que lhe sonorizaram a ramaria.

A.F.

Uma das maiores leviandades da crítica é considerar os grandes homens — os gênios — criaturas fenomenais, cujo aparecimento e floração independem de fatores propícios de natureza vária. “Duas coisas — diz Henrique Joly na Psychologie des Grands Hommes (p. 6-7) — duas coisas há que estudar no grande homem: como ele se faz, e o que ele é. Ambos esses problemas se conjugam e ambos dependem da psicologia comparada. Com efeito, por mais original que seja o grande homem, está ligado à humanidade e a todos quantos a representam com ele. O seu gênio se acrescenta ao que ele tem de comum com todos e ao que tem de comum com alguns. Com esse acréscimo, avulta e distingue-se; mas, ainda assim, permanece ligado a todos. Se doutra forma fora, o grande homem seria um milagre ou um monstro. Os monstros mesmos têm leis; pois é clássico hoje em dia que os fenômenos patológicos se prendem de certa maneira às leis da fisiologia geral... O grande homem, por mais extraordinário que seja, não pode ser separado dos seus antepassados, nem dos seus contemporâneos, nem dos seus sucessores, nem dos seus mestres, nem dos seus discípulos, nem dos seus amigos, nem dos seus inimigos. Não é com os outros homens, com os outros artistas, com os outros sábios que o comparamos, para declarar que é igual a estes e superior àqueles?”

O próprio Goethe, cujo bicentenário de nascimento há pouco se comemorou, disse numa das suas conversações com Eckermann: “Fala-se sempre de originalidade; mas, que quer dizer isso? Logo que nascemos, começa o mundo a atuar sobre nós e assim prossegue até a nossa morte. E, além disso, que poderemos chamar nosso, verdadeiramente, a não ser a energia, a força, o querer? Se eu pudesse especificar o que devo aos grandes antepassados e contemporâneos, não ficaria muito que referir como sendo meu ”.

Por falar em Goethe, lembramo-nos de que, mui recentemente, se procurou estabelecer cotejo entre o Brasil de hoje e a Alemanha dos primórdios do século XVIII, declarando-a tão atrasada, que até então só havia registrado, no plano lítero-cultural, o débil aparecimento de Klopstock, Wieland e Herder. Os termos do paralelo, a nosso ver, são inadequados. Trata-se de duas nacionalidades distintas, cada qual com a sua própria índole, situadas em meios, diferentes e em épocas distanciadas entre si duzentos anos. Além disso, nem Klopstock, Wieland e Herder são estrelas de pálido brilho, nem foram somente os únicos astros que constelaram os anais das letras germânicas até então.

Insinuar semelhante conceito seria fazer tábua rasa de todo um passado de vários séculos de tradições orais ou escritas, através de ricos veios folclóricos e literários, com lances às vezes menos brilhantes, é verdade, mas sempre animados da vivacidade ascencional indispensável para caracterizar uma cultura.

Sem questionar sobre a possível ou provável existência de textos mais antigos do que os fragmentos do Hildebrantslied (sec. VIII), quanta prova de vitalidade não se encontra no sentimento da raça germânica, nos dez séculos contados dali até ao advento dos três escritores acima referidos! Ter-se-á esquecido a renascença poética do XIII século? Há quem ignore os Nibelungen? Acaso não existiram os poemas cavalheirescos de Henrique de Valdeck, Gottfried de Estrasburgo, Wolfram de Eschenbach, etc.? E os poemas religiosos, didáticos e satíricos? E a fecundidade da poesia lírica, sob a inspiração de Dietmar de Ast, Kurenberg, Henrique de Morungen, Reimar o Velho, Gualtério de Vogelweid? E as lendas dos Minnesinger e de Tannhäusert? E o teatro popular, colorido de religiosidade para poder, assim, introduzir-se nas cerimônias litúrgicas medievais? E as crônicas rimadas de Jans Enikel? Se na Idade Média decai a poesia cavalheiresca, não se enflora, por outro lado, a poesia heroica? Não se revitaliza o lirismo nos versos de Reimar de Zweiter e de Frauenlob? Poderemos esquecer os, “Mestres Cantores”? E como não lembrar as poesias sentenciosas de Pedro Suchenwirt, as fábulas de Ulrich Boner e os poemas alegóricos de Conrado de Ammenhauen? Deixaremos de assinalar os primeiros empregos da prosa nas homílias, nas crônicas de Limburgo, nos romances, nas traduções do latim, do francês e do italiano? Por que silenciar acerca da oposição entre o espírito germânico e a cultura latina, donde decorreu a Reforma e desta, por sua vez, em virtude dos excessos duma exegese estreita, o retardamento da esperada nova renascença literária? Apesar disso, quem negará a grandeza dessa figura máscula de orador, poeta, tradutor e músico que foi Martinho Lutero, cujo talento suscitou uma floração de poetas religiosos como Lázaro Spengler, Paulo Speratus, Paulo Eber e outros? Não merecerá especialíssimo relevo a obra de Hans Sachs, tão fundamente atravessada por fecunda seiva nacionalista? Quem não assinalará os teatralismos polemísticos, digamos assim, de Martinho Rinckart, de Nicolau Manuel, etc.? Não seria injustiça deixar de lado Jaques Ayer e Henrique Júlio, Duque de Brunsvique, os quais, apesar das insuficiências, foram os primeiros que, muitos anos antes de Lessing e Goethe preconizarem o estudo e imitação do teatro inglês, compuseram comédias de tão marcadas analogias com as comédias shakespeareanas? Não foi, de fato, notável, o Mogunciano (João Fischart), um dos homens mais ilustrados do seu tempo, famoso pelos seus poemas satíricos, pela recomposição da lenda de Till Eulenspiegel, pela tradução parcial de Gargantua, etc., etc.? Embora considerados de projeção secundária, deverão desprezar-se os poetas burlescos Gaspar Scheidt e De Rollenhagen, os contistas Wickram e João Pauli, e o fabulista Burkard Waldis? Dentre os cronistas do século XVII, não merecem particular menção Aventinus, Sebastião Franck, Egídio Tschudi, nos quais já se vislumbra certa tendência à crítica histórica? Sem embargo da intercorrência crepuscular do século XVII — em que se cindiu a nacionalidade pelas lutas dos imperadores e dos príncipes — não se viu brotarem numerosas academias e sociedades literárias, que, ora seguindo, ora combatendo a influência francesa, produziram tão variados frutos, como, por exemplo, a aproximação entre a nobreza e os homens de letras? Deveremos porventura esquecer Opitz, Fleming, e Gryphius? Na poesia religiosa desse período não se deveriam mencionar Paulo Gerhardt, o Padre Frederico Spee, o Padre João Scheffler, K. de Rosenroth e Q. Kuhlmann, queimado vivo em Moscou em 1689? Acaso não merece estudo a obra esquisita de Daniel Gaspar de Lohenstein? Quem sabe se J. G. Günther não viria a ser o maior poeta silesiano, se a morte o não arrebatasse em plena mocidade? Por que desdenhar os moralistas ou satíricos Laurenberg, Moscherosch, Schupp e Abraão a Santa Clara, tão admirados por Schiller? Ao ciclo do romance picaresco de Lazarillo de Tormes, Guzman d’ Alfarache e Gil Blas não poderemos agregar honrosamente o Aventuroso Simplicissimus, de Grimmelshausen? Quando se verificou a reação contra a “escola silesiana”, não se viu surgirem os epigramas de Wernike, as sátiras de Canitz e, sobretudo, as comédias de Cr. Weise, nas quais Lessing rastreou “uma centelha de Shakespeare”; bem como os versos de Brockes, que foi dos primeiros alemães a estudar e imitar com êxito os autores ingleses? Citando Gottsched como “o último representante do gosto francês”, não teremos necessidade de aludir a Gellert, a Zachariae, a Rabener e, principalmente, a Cr. F. Weise, de quem já se disse ter sido ele que, por se haver identificado tanto com o teatro inglês, abriu caminho à crítica do mesmo Lessing contra a influência francesa?

Não bastarão, acaso, esses nomes e esses fatos para mostrar o desenvolvimento da literatura em terras germânicas antes do advento de Klopstock, Wieland e Herder, ao contrário do que se poderia pensar diante da asserção já aludida? Cremos que sim — e que farte! No entanto, citaremos mais algumas figuras de valor.

Frederico de Hagedorn, por exemplo, um dos grandes admiradores de Pope e La Fontaine, e a quem Wieland considerava “o mais limado dos poetas alemães”, avulta como autor de versos harmoniosos, sendo que muitas das suas canções foram logo postas em música e porventura se ouvem ainda hoje na boca do povo.

Alberto de Haller, homem cultíssimo, prejudicou um tanto os seus poemas com a rebusca do estilo, mas não poucas vezes atingiu uma precisão de imagens bastante notável, tendo sido, por sua vez, um dos escritores germânicos que visitaram a Inglaterra, donde regressou proclamando os benefícios que a viagem lhe proporcionara.

Evaldo de Kleist, “soldado por dever e sem entusiasmo”, ferido mortalmente e desvalijado pelos cossacos na batalha de Kunersdorf, foi poeta de muita sensibilidade, embora de sóbrio estilo, a quem se deve o poema da Primavera, traduzido por três vezes para o francês, respectivamente, por Huber, por N. Beguelin e por A. Sarrazin.

Gleim, que tão benéfica influência pessoal exerceu sobre os escritores jovens do seu tempo, aos quais protegia e orientava mais como amigo do que como mestre, escreveu cânticos guerreiros e, principalmente, delicadas fábulas e agudos epigramas.

João-Pedro Uz não foi só magistrado impecável, mas também lírico imaginoso, notabilizando-se, ademais, por haver posto em versos felizes os princípios da teodiceia leibnitziana.

João-Nicolau Goetz foi um anacreôntico puro, cujos versos se distinguem pela elegância e sonoridade.

Ramler, que deixou odes, fábulas, canções, etc., soube cultivar com amor a língua do seu país, procurando adoçar a prosódia, trabalhando o estilo com galhardia e conhecendo bem as questões literárias da época, ao ponto de ser consultado a respeito pelo próprio Lessing, que nesse assunto, como é sabido, foi autoridade ímpar.

João-Jorge Jacobi, cuja biografia escrita por Ithner o dá como homem de grande coração e espírito de fino quilate, acreditava poder apropriar à poesia virtualidades de influxo moral, não sendo, porém, despidas de mérito muitas das suas epístolas em verso, cantatas, fábulas, etc.

E assim vemos chegar o momento em que, após uma evolução laboriosa e nem sempre isenta de espírito imitativo, surgem aquelas altas figuras que se chamaram Klopstock, Wieland e Herder, juntamente com Winckelmann, Lessing, Kant, Schiller e todos os seus ilustres caudatários — a qualquer dos quais pode a crítica fazer estas ou aquelas restrições, mas cujo aparecimento no tablado das letras não foi de nenhum modo um fato de medíocre repercussão na história da literatura alemã, como alguém ingenuamente avançou, por ocasião do bicentenário do nascimento de Goethe.

Inculcou-se, outrossim, naquela oportunidade, que “os jovens alemães estavam saturados com a literatura francesa.” Engano. Não a juventude, mas, sim, o povo alemão é que afinal se enfastiara da influência francesa. O texto do próprio Goethe, invocado para apoiar aquele conceito, claramente o indica: “O que eu acabo de dizer sobre a literatura e os literatos franceses não é senão o resumo da voz do povo, que ressoava sem cessar em nossos ouvidos”(Memórias — tradução brasileira — v. I, p. 245).

Sem dúvida, Goethe se esforçou imenso para dar caráter alemão à literatura da sua gente. Mas, antes dele, o cultíssimo Lessing (para só falar neste) havia soltado o grito de reação contra o “gosto francês.”

Por muito tempo alimentou o autor de Fausto a pretensão de falar e escrever impecavelmente a língua francesa. Por ter lido Montaigne, Amyot e Rabelais, entre os antigos, Corneille, Racine e Molière, entre os clássicos, Voltaire e Rousseau, entre os modernos, supunha-se capaz de manter conversação elegante e correta com qualquer Francês letrado. No entanto, mesmo os homens do povo ousavam cortar-lhe a palavra para lhe emendar os frequentes deslizes. Isso acabou por irritá-lo, fazendo-o renunciar à língua francesa e voltar com mais amor à língua do seu país (Memórias, v. I, 242). Tais sentimentos, já os havia Herder também provado antes, ao regressar da sua viagem à França, cuja literatura e cuja sociedade aborreceu por decrépitas, mantendo apenas entusiásticas ressalvas à polidez gaulesa, conforme o certifica Haym; e nos seus Fragmentos incisivamente frisara que “língua e pensamento são tão inseparáveis como o corpo e a alma”, e que “o verdadeiro poeta deve escrever na sua língua materna.”

Não se tratava de reacionarismo pirrônico. Era atitude justa. Quando Voltaire foi parasitar na corte berlinense, de lá escreveu à Mad. Denis: “A língua que menos se fala na corte é o alemão.” E, em carta ao Marquês de Thibouville, dizia: “Aqui, estou na França. Só se fala a nossa língua. O alemão fica para os soldados e os cavalos; só se precisa dele em viagem.”

O movimento literário conhecido por Sturm und Drang — de que tanto se falou recentemente e cujo inspirador parece ter sido o autor da Messíada — revestiu-se de características individualistas bem pronunciadas. Os que nele participaram crismavam-se a si mesmos de gênios originais. Não consideravam prestantes as regras nem os modelos. A marca do verdadeiro poeta tinha de ser a originalidade — na vida e na obra. A imitação do estrangeiro era pecado irremissível; consequentemente, nada mais lógico que o repúdio à influência francesa entrasse no programa de ação.

Entretanto, ilusão é supor tenham sido os jovens poetas que, por si sós e em prazo fixo, renovaram, da base ao cume, a literatura alemã. Haviam já os dois últimos séculos adubado o terreno para a seara fecunda. Em todas as literaturas ocorrem semelhantes movimentos, em períodos mais ou menos afastados, apresentando três frases: preparação, fastígio e declínio (ou transformação). Pioneiros dos grandes renascimentos são os escritores geniais, legítimos desveladores dos novos caminhos do pensamento. Já um crítico ponderou que Corneille, Shakespeare, Ésquilo, escrevendo, não pensavam em fundar uma literatura. À sua passagem ficaram rastros de luz.

Não se diga, pois, tenha sido o Sturm und Drang uma linha rígida traçada pelos jovens escritores entre a velha e a nova literatura alemã. Vem a talho de foice aquilo de Francisco Sarcey: “Recordo-me de que uma coisa que mais me admirava, na minha infância, era que em dia de temporal a gente não se achasse nunca no limite exato onde acabava a chuva. O meu sonho era vir a ter um ombro molhado e outro seco. Só mais tarde é que, refletindo, percebi a impertinência do meu desejo. As coisas não começam nem acabam nunca num repente nítido e preciso”(apud Júlio Lemaître: Les Contemporains, série II, p. 244-245).

O que grandemente favoreceu a renovação das letras germânicas foram as vitoriosas campanhas de Frederico II na Guerra dos Sete Anos. Nisso não há paradoxo. Já Herder observara que “todas as coisas são, no mundo, o que podem ser segundo as circunstâncias de tempo e de lugar. Nada é isolado, nada é arbitrário. A história é, assim, uma sequência de relações, um encadeamento em que tudo depende de tudo, e nada é absolutamente sacrificado”.

Referindo-se à vitória obtida por Frederico II contra os Franceses, em Rosbach, escreveu Macaulay: “A vitória de Rosbach foi menos honrosa, do ponto de vista militar, do que a de Leuthen; as forças contrárias eram constituídas por um exército desorganizado, sob o comando de um general incapaz; mas o efeito moral que produziu foi imenso. Todos os anteriores triunfos de Frederico haviam sido contra Alemães e não podiam excitar o orgulho nacional entre o povo alemão. Não era possível que um Hesseano ou um Hanoveriano sentissem entusiasmo patriótico ao saber que Pomeranos haviam chacinado Morávios, ou que bandeiras saxônias, capturadas, haviam sido expostas nas igrejas de Berlim. Com efeito, apesar de a reputação militar dos Alemães estar nessa ocasião altamente cotada perante o mundo, não se podiam eles orgulhar de nenhuma grande vitória exclusivamente deles, em conjunto, como Azincourt ou Bannockburn. A maior parte dos seus triunfos tinha sido de uns contra os outros; e os seus feitos mais esplêndidos contra estrangeiros, haviam-nos eles conseguido sob o comando de Eugênio, que era, também, estrangeiro. Por isso, a notícia da batalha de Rosbach agitara o sangue de toda a grande população desde os Alpes até ao Báltico e desde os limites da Curlândia à Lorena. A Vestefália e a Baixa Saxônia haviam sido inundadas por imensa hoste de estrangeiros, cuja fala ininteligível e cujas maneiras licenciosas haviam provocado os mais fortes sentimentos de desgosto e ódio. Mas aquela grande hoste fora posta em fuga por pequeno bando de guerreiros alemães, conduzidos por um príncipe de sangue alemão pelo lado do pai e da mãe, e distinguido pelos cabelos louros e claros olhos azuis da Alemanha. Nunca, desde a dissolução do império de Carlos Magno, ganhara a raça teutônica uma batalha assim contra os Franceses. A notícia da vitória suscitou geral explosão de alegria e orgulho em toda a família que falava os vários dialetos da antiga língua de Armínio. Começou a fama de Frederico a suprir de certo modo a falta de um governo comum e de uma capital comum; tornou-se o ponto de convergência de todos os verdadeiros Alemães, assunto de congratulações tanto para o Bávaro como para o Vestefaliano, assim para os cidadãos de Francoforte como para os de Nuremberga. Tornava-se evidente, pela primeira vez, que os Alemães eram na verdade uma grande nação; pela primeira vez se patenteava aquele espírito patriótico que, em 1813, realizou a libertação da Europa Central... E nem os efeitos produzidos por tão célebre vitória foram somente políticos. Os grandes mestres da poesia e da eloquência alemãs são concordes em que, apesar de o grande Rei não prezar e quase não compreender a sua língua natal, de reputar a França o único centro do gosto e da filosofia, contudo, sem se aperceber, contribuiu para emancipar o gênio dos seus concidadãos do jugo estrangeiro; e que, com o fato de derrotar Soubise, estava despertando, embora sem o querer, o espírito que em breve começaria a contestar a precedência literária de Boileau e de Voltaire” (Ensaios históricos — trad. bras. — v. II, p. 236-238).

A. Bossert, tão copioso em pormenores relativos à evolução das letras alemãs, por seu turno ensina: “A Prússia, ou aquilo que mais tarde deveria assim chamar-se, tornara-se, entre as mãos do Grande-Eleitor [Frederico Guilherme], um dos principais Estados da Alemanha; seu bisneto, Frederico II, elevou-a ao nível de potência europeia. A Guerra dos Sete Anos popularizou o nome de Frederico II, não somente pelo heroísmo que ele demonstrara, mas também porque se passou a ver nele o representante da causa nacional. Os exércitos que a Áustria pusera em campo desde dois séculos eram em grande parte compostos de estrangeiros, comandados quase sempre por chefes italianos e espanhóis. Porém, agora, tornara-se possível celebrar vitórias alcançadas por general alemão, com tropas alemãs; e a gente vira esse general resistir, em seis campanhas sucessivas, às forças combinadas de três Estados, cada um dos quais, só por si, parecia bastante para o aniquilar. A longa humilhação da Guerra dos Trinta Anos estava acabada. Todos os povos de raça germânica, fosse qual fosse a forma de governo sob o qual se achassem, orgulharam-se com os triunfos de Frederico e, associando-se à glória dele, tiveram pela vez primeira o vago sentimento da sua unidade. O entusiasmo despertado pela Guerra dos Sete Anos secundou o surto da literatura alemã... Só temos que surpreender-nos com o que há de contraditório no papel desse Rei, a partir do qual os seus compatriotas começam a contar uma nova era no desenvolvimento da vida nacional, quando ele, no entanto, só amava e admirava o que fosse estrangeiro. Tanto é certo que são as circunstâncias que dão o verdadeiro alcance às ações dos homens, e que as figuras dos grandes capitães, como as dos grandes inovadores, precisam, para se completarem, daquele elemento imponderável que lhes agrega a imaginação popular... Frederico II não soubera ser justo para com os seus contemporâneos; mas estes foram justos para com ele, proclamando entusiasticamente a parte que tinha tomado na emancipação da Alemanha. Os críticos continuaram a obra que o guerreiro diplomata havia começado. O período chamado Sturm und Drang, que coisa é senão uma Guerra dos Sete Anos na literatura? Despertara Frederico II o espírito que ia levantar a questão da superioridade literária das nações vizinhas; e, no dia em que a Alemanha se viu dotada, por sua vez, duma literatura original, toda a gente perdoou ao grande Rei o haver amado demais a Voltaire, pois que tinha sido, sem o sentir e sem o querer, o aliado de Lessing e o precursor de Goethe” (Hist. de la Litt. allemande, edição de 1913, passim).

Henrique Heine, que escreveu os dois volumes Da Alemanha com o fito declarado de revelar aos Franceses o que era a sua pátria, pelo menos naqueles setores “sobre os quais Mad. de Staël espalhara tantos erros em França”, não deu importância particular ao Sturm und Drang.

Nesse curioso movimento das letras alemãs, como se sabe, dois elementos predominavam, pelo menos em intenção: o Gênio e a Natureza; um elemento subjetivo e, outro, objetivo. Proscreviam-se as regras técnicas e os preceitos do gosto. Se se encarecia o estudo de Shakespeare, era tão somente por ele ser o mais profundo “intérprete” da Natureza. Mas isso era coisa muito vaga. Bossert observa: “Desconhecido era o terreno em que se pisava. Se alguns escritores — os que efetivamente tinham gênio — avultaram e a si mesmos se esclareceram, os outros ficaram imersos no vazio das suas teorias”.

Coisa, aliás, para notar é que Sturm und Drang se chamava o drama de Klinger, representado a 2 de julho de 1777 em Francoforte sobre o Meno, mas cujo título primitivo e bem característico fora A Confusão (Der Wirrwarr). O próprio autor, sectário da “liberdade absoluta do poeta”, acabou sendo um dos canhestros imitadores de Shakespeare; e, por uma questão de temperamento, não conseguiu “elevar-se a uma cultura serena e sólida” — conforme o assevera Bossert —, tornando-se-lhe apenas possível “tomar de assalto” a posição que veio a ocupar na sociedade.

Já disse alguém que “todos os poetas daquele tempo ensaiavam-se em tratar assuntos que, em seguida, foram tratados de modo definitivo por Goethe”. Por exemplo, Lenz, doente do “mal de Werther”, estranha espécie de intrigante por prazer artístico, sabendo apenas “traçar pormenores e pintar cenas soltas”, e de quem o autor de Fausto diz noutro passo das Memórias: “passou como um meteoro pelo céu da literatura e subitamente desapareceu sem deixar vestígios”. De Wagner conhecemos a deslealdade cometida para com Goethe, que tanto o estimava. Demos a este a palavra: “Ele era muito ligado a mim. Como eu não fazia mistério dos meus projetos, confiei-lhe, como a outros, o plano do meu Fausto e, sobretudo, a catástrofe de Margarida. Apropriou-se ele do assunto e aproveitou-o numa tragédia intitulada O Infanticídio. Era a primeira vez que assim me espoliavam...”(Memórias, v. I, p. 284). Mas a tragédia foi interditada e, para voltar à cena “diante de pessoas decentes”, refundiu-a embalde o irmão de Lessing. Quanto a Frederico Müller, que começara, como escritor, a imitar Shakespeare, sem grande fôlego, acabou, como pintor, a imitar com a mesma insuficiência Miguel Ângelo, em Roma...

Em suma, conforme sintetiza o arguto A. Bossert, o Sturm und Drang dera origem a uma “escola cheia de ardor generoso, mas à qual faltava a primeira condição da grande arte: a madureza do gênio e a plena posse de si”. Batida pelas rajadas da “confusão”, fazendo praça da “ignorância voluntária das regras mais elementares da arte”, descambava em “completo desconcerto de opiniões e doutrinas”, “atropelando tudo e despendendo metade das energias em pura perda”. “Falta de precisão e justeza, de medida e de harmonia, tal é o caráter geral da escola. Em poesia, esquece que a forma é um limite necessário e que sem forma não existe arte; em moral e em filosofia, liberta-se do constrangimento dos sistemas para resvalar na vacuidade do sentimento puro. Foi preciso viesse Kant para corrigir os excessos, para subtrair tanto a arte como a moral ao capricho individual e para mostrar que o homem não é a humanidade”. “Goethe e Schiller escaparam da tormenta a que tinham sido por um instante arrastados, e, mesmo na sua fogosa juventude, ainda são grandes. Mas outros escritores não mudaram nunca, ou mudaram pouco, verdadeiras vítimas da revolução que tinham ajudado a fazer ” — não falando naquela“mocidade cheia de energias”, que, entusiasmada com a agitação intelectual do momento, mas sem adequada preparação, atirava-se ao cultivo das letras, supondo ingenuamente que bastava agitar-se, bulhar e baralhar, para dar nascimento a uma literatura rica de originalidade, da mesma forma que a mosca da fábula, esvoaçando e zumbindo por cima dos cavalos, picando ora um, ora outro, pousando no nariz do boleeiro ou na lança do carro, acreditava ter sido ela quem a levara traquitana ao alto da ladeira...

Não censuremos, porém, os jovens literatos, do mesmo modo que Saint-Marc Girardin não censurava a mosca de La Fontaine, da qual dizia: — Est-ce qu’elle fait beaucoup de mal cette mouche du coche? Non, et cela lui fait tant de plaisir! Il y a une foule de ces petites vanités inoffensives dans le monde...

Repulsando a crônica obediência aos cânones literários da França, os escritores germânicos denunciavam assim as secretas forças múltiplas que os impeliam e que, dentro em breve, iriam animar a nacionalidade alemã. Contudo, não se infira que o repúdio tenha sido completo, por absoluto negativismo.

Lessing, o teórico dessa francofobia literária, embora se mostrando excessivamente rigoroso para com Corneille, Racine e Voltaire, não ousou negar o gênio de Molière. Herder, ao regressar, enfarado, da França, guardou simpática lembrança de Montesquieu. O próprio Goethe, como se verifica pelas Conversações com Eckermann, entremostra haver emendado a mão no julgamento de muitos autores franceses. É fácil prová-lo.

Em 12-5-1825, dizia ele de Molière: “É tão grande, que nos espantamos cada vez que o tornamos a ler. É um homem que se basta a si próprio; as suas peças atingem o trágico; são compreensíveis, mas ninguém tem a coragem de imitá-las... Todos os anos leio algumas peças de Molière, da mesma forma que costumo olhar de tempos a tempos gravuras dos grandes mestres italianos. Nós, homens medíocres, não somos capazes de conservar no nosso íntimo a grandeza de tais coisas; temos, por isso, de vez em quando, de voltar a elas para renovar em nós a impressão original”.

Em 4-1-1827, acerca de Vítor Hugo, exprimiu-se assim: “É um dos mais poderosos talentos... Pode comparar-se a Manzoni. É muito objetivo e parece-me realmente tão importante como Lamartine e De La Vigne...” Havendo Eckermann ponderado que apreciava a poesia francesa por “não abandonar nunca o campo seguro da realidade”, Goethe respondeu: “Isso decorre de os poetas franceses terem conhecimentos científicos; pelo contrário, os tontos dos Alemães pensam que perderiam o talento se procurassem ter conhecimentos, como se o talento não se alimentasse de conhecimento e só por meio dele conseguisse utilizar a sua potência... Os muitos poetas jovens que hoje versejam não são verdadeiros talentos...”

Em 21-1-1827, conversando sobre as novas poesias de Delfina Gay — mais tarde, Mad. de Girardin —, declarou: “Os Franceses trabalham e vale a pena acompanharmos o que fazem. Dedico-me com afã a conseguir obter uma ideia do estado da literatura francesa contemporânea e, se o conseguir, gostaria de escrever sobre o assunto”. E, como Eckermann indagasse da sua opinião acerca de Béranger e de Mérimée, respondeu: “A esses, considero-os exceções. São talentos altos que dispõem de elementos próprios e suficientes para se manterem livres do desconcerto do nosso tempo.”

Em 29-1-1827, tornando a falar em Béranger, disse que as canções dele “eram perfeitas e deviam considerar-se como o que há melhor no gênero.”

Em 16-12-1828, opinando mais uma vez acerca de Voltaire, confessou: “Verdadeiramente, tudo quanto tão alto talento escreve é bom.”

Em 21-3-1831, conversando sobre Paulo-Luís Courier, disse: “Courier tem grande talento natural, que, em certos aspectos, se assemelha ao de Byron assim como ao de Beaumarchais e de Diderot. De Byron, tem a facilidade de utilizar todas as coisas que lhe podem servir de argumento; de Beaumarchais, a habilidade de homem do foro; de Diderot, a dialética. Além disso, é tão engenhoso como não é possível ser mais.”

A perturbante Baronesa de Stein, que o médico Zimmermann descrevia em carta a Lavater como senhora de “grandes olhos negros, voz doce e carnação italiana como os seus cabelos”, pedira muita vez a Goethe lhe fosse ler o que mais interessante encontrasse. Com esse fim, levou-lhe o poeta obras francesas, tais como as Époques de la Nature de Buffon, o Tableau de Paris de L. Sebastião Mercier, as Confessions, os Entretiens botaniques e a Correspondance de J. J. Rousseau, as Mémoires de Voltaire, a Histoire de la Philosophie des Indes do Abade Raynal, etc. E em 1799 traduzia ainda para o Teatro de Weimar a tragédia Mahomet, de Voltaire.

Conclui-se de tudo isso que o autor de Werther fez bem, como tantos outros escritores da sua época, em procurar emancipar a literatura germânica do fascínio da França; mas não incorreu na descompassada tolice de negar o mérito dos grandes autores franceses.

Se, do mesmo passo, conseguiu escapar à vertigem do Sturm und Drang, foi porque, naturalmente, a sua educação e, mais que tudo, a clareza do seu gênio lhe haviam feito compreender que as exaltações do individualismo extremado nem sempre colhem na esfera da arte e da cultura.

O desejo da perfeição consciente por duas vezes o levara a destruir, ainda jovem, as suas primeiras produções literárias: em Lípsia, aos quinze anos, e em Francoforte, aos vinte anos. De certo, no fundo do seu espírito, germinava já a ideia, segundo a qual, o que faz o artista criador, na observação de H. Loiseau, é “o sentimento das proporções, da medida, do necessário”(L’Évolution morale de Goethe, p. 270); e como o alvo supremo da sua vida viesse a ser a cultura do eu, “já na época em que escrevera Goetz von Berlichingen e Werther e meditava o Prometeu, fora obrigado a reconhecer a necessidade da medida e a virtude da lei”, o que não era senão “o respeito hereditário, a precisão instintiva da decência” (Loiseau, obra cit., p. 770 e p. 774).

Escreveu-se também, por ocasião das recentes comemorações goetheanas, que a época atual, considerada através do prisma psicológico, pode-se aproximar muito bem da época de Werther — pretendendo-se, com isso, justificar a atitude moral dos jovens beletristas de hoje. Outra ligeirice, não há dúvida; pois impossível nos parece formular paralelo entre as duas épocas. Na Alemanha de então, reinava o mais exaltado sentimentalismo, envenenado por amargo “desgosto da vida”, oriundo, em grande parte, da literatura dominante, carregada de melancolia, como os versos de Young, de Gray, do falso Ossian, etc. O próprio Shakespeare, cuja obra exprime o tumulto da vida, insuflava, apenas, no coração da mocidade alemã, os resíduos da sua “filosofia de renúncia e desespero” — na frase de W. Durant.

“Extraviados por semelhantes leituras, agitados por paixões impossíveis de satisfazer, impossibilitados de se distinguirem por brilhantes ações e reduzidos a limitar as suas esperanças à monotonia brutal da vida burguesa, nada mais restava aos moços senão concluir que podiam apelar para a liberdade de se desfazer da vida, logo que a considerassem insuportável. Tão generalizada estava essa maneira de pensar, que, quando Werther apareceu, logo encontrou eco em toda parte, e o seu efeito não podia deixar de ser desagradável, já que descrevia claramente as secretas tendências do espírito doentio da mocidade”(Goethe: Memórias, v. I, p. 276-277). Compraz-se Goethe em mencionar diversas formas de suicídio, e acrescenta que a ideia de matar-se, também, por algum tempo o atormentou.

Ouçamo-lo: “Eu próprio fui atingido por essa doença; sei, pois, melhor do que ninguém, quanto se sofre e que esforços têm a gente de fazer para curar-se” (Memórias, v. I, p. 272). Pouco depois, diz: “Possuía eu um belo punhal, que todas as noites depositava à minha cabeceira, e que, por diversas vezes, antes de soprar a candeia, tentei cravar no peito; não conseguindo fazê-lo, acabei rindo de mim mesmo e, varrendo do cérebro todos os sonhos hipocondríacos, prometi, de mim comigo, continuar a viver” (obra cit., p. 278)...

E todos sabemos que viveu larga e triunfante vida.

Cerca de onze anos estivera envolvido nas teias da política, na rotina da administração e nos enervamentos da vida cortesã e social de Weimar. Subitamente, em 1786... decide ausentar-se de Weimar em viagem à Itália... Dois anos permanece nesse país de sol, de luz, de paisagens, de monumentos veneráveis, de ruínas eloquentes, de museus incomparáveis, de numerosos testemunhos de belezas artísticas que o gênio italiano havia ressuscitado ou criado através dos magníficos esplendores da Renascença; nutre-se do culto proveitoso da Antiguidade; reflete e medita sob a fascinação e o respeito que lhe infundem tantas obras de arte de inspiração grega. Quando regressa a Weimar, Goethe é já outro homem. O fogoso e ardente Stürmer und Dränger, o individualista revoltado que gritava contra as convenções sociais, contra as regras da disciplina literária, expandindo-se em efusões líricas de um sentimentalismo exaltado, sustentando não haver outra fonte inspiradora que não a alma de cada um, proclamando, enfim, a completa liberdade do gênio nas criações artísticas cede lugar ao prosador e ao poeta que descreverá e cantará as virtudes eternas do homem nobre e bom, se inspirará nos conjuntos universais e sociais. A anterior religião do Eu converter-se-á na religião do universo e do homem no universo. Um ideal novo de pureza de humanidade, de ordem e de harmonia norteará a sua produção literária subsequente... Desde então, enceta rigorosa campanha contra a literatura dos adversários, contra os românticos das novas gerações, sobretudo. Em dado momento, encontra-se no mesmo campo com Schiller, em cuja mentalidade também se realiza transformação idêntica. Os dois fogosos ex-Stürmers associam-se no mesmo objetivo... Agora, Goethe rejeita o arbitrário, a fantasia, o capricho individual, toda e qualquer tendência. Preconiza o respeito escrupuloso das leis que regem o pensamento e a forma... Nas suas famosas conversações com Eckermann,... desabafa com acrimônia: “Os nossos poetas escrevem como se fossem doentes e como se o mundo inteiro fosse um hospital. Todos falam dos sofrimentos, das misérias da terra... e excitam os leitores a sentirem-se, a declararem-se descontentes” (Alberto Xavier: Camilo romântico, p. 118-120).

Após a epidemia de suicídios desencadeada pela morbidez dramática de Werther e principalmente após a dispersão dos companheiros de Klinger — autor da peça Sturm und Drang — com a partida deste para a Rússia, onde foi ser leitor do Grão-Duque Paulo, entrara a suavizar-se o movimento da “nova literatura”, a qual, daí a poucos anos, assumiria ritmos menos agitados, mais consentâneos à idiossincrasia da mentalidade germânica.

A guapa juventude de hoje — pelo menos a geração que aos nossos olhos se entusiasma nos primeiros ensaios literários — não se nos antoja roída pela tenebrosa melancolia ossiânica e, muito menos, inclinada a imitar o gesto trágico de Wertker. Em geral, aprecia o futebol, não desama os bailes, frequenta os cinemas e, como é público e notório, ainda dispõe de vagares para o cultivo das letras e “experiências” teatrais, e para servir de eco aos preconícios da pintura e da escultura “modernistas” que por aí se ouvem. Quem com tal programa enche os dias, de certo não se melancoliza e, ainda menos, pensa em estourar os miolos com uma bala.

Somente por esnobismo poderá essa juventude declarar-se afetada pelas consequências psicológicas da guerra. No entanto, assevera padecer delas mais do que ninguém, como, “mais do que ninguém”, garante sentir “a insegurança do momento”...

Sempre ouvimos dizer — e nisso com firmeza acreditávamos — que são os velhos que maior experiência têm da vida. (Certamente, uma das verdades à La Palice...) Porque a vida é dura! A correnteza dos anos, a revezes cortados de transes os mais infaustos, forçosamente lhes serviu de lição. Coração e cérebro estão, assim, longamente preparados para sentir e repensar os diversos estádios da existência, confrontando-os entre si e deles extraindo, ao menos, uma filosofia de uso caseiro. Não sabemos se isso é felicidade ou desgraça. Sabemos apenas que à juventude não é possível afirmar a “segurança” ou “insegurança” de nenhum “momento” do mundo, pois lhe falece a experiência que só a longa vida proporciona.

Os pseudos “recalques” dos “novos” ou “novíssimos” são meras convenções. Hoje em dia é o freudismo emblema de bom tom e, para certos autores, justificativa de cariz científico aos mananciais de literatice obscena — em que também muitos moços se enlambuzam — e, comparados com a qual, os antigos romances realistas ficam sendo trivialíssimos livros de prêmios para colégios de meninas.

Qualificando-se a si mesmos de “novos”, “novíssimos” ou “modernos”, não quiseram apenas os jovens beletristas distinguir-se pela idade, mas, também, inculcar habilidosamente o divórcio que os separa da geração anterior — pelas teorias, pela técnica, pelos processos artísticos... Para eles, são “velhos” os elementos dessa geração. Redunda isso, por consequência, num intuitivo capitis deminutio. É, de feito, a velhice, a mais lastimosa das enfermidades. Sendo, quase sempre, sofrimento, é, além disso, muitas vezes, caricatura. Falamos da velhice do homem. Na natureza e nas coisas materiais, assume ela, geralmente, uma feição compassiva e poética — para o nosso egoísmo estético.

Diga-se, porém, que no mundo do espírito a vetustez nem sempre é sinal de rápida decadência. Poetas, pintores, romancistas, filósofos, músicos, arquitetos, cientistas, etc. têm continuado com o cérebro vivaz e fecundo até quase os seus últimos dias. Dentre os maiores, lembremos alguns, por exemplo: Milton, Goethe, Gualtério Scott, Cooper, Crabb, Ticiano, Rosmini, Miguel Ângelo, Händel, Palissot, Metastásio, Wordsworth, Krilov (o La Fontaine russo), Galileu, W. Kirby, Fontenelle, Richardson, Poussin, Sterne, Bossuet, Daniel Defoe, Vondel (o poeta racional da Holanda), Voltaire, Cervantes, Vítor Hugo, Machado de Assis, Rui Barbosa, etc.

Batidíssima coisa é a questão do “novo” e do “velho” em literatura. Um dos seus aspectos, talvez, não se nos depara já no fino diálogo De Oratore, de Cícero, escrito em 55 a. C.? E, mesmo, quatrocentos anos antes, quando Ésquilo, não podendo suportar os triunfos de Sófocles, abandona Atenas e vai morrer na Sicília, não nos estará mostrando o recuo do “velho” glorioso ante as investidas da “nova” técnica, para ser, afinal, vingado pela posteridade, que veio a aplaudi-lo com delírio, como que reagindo às “novidades perturbadoras” de Eurípedes?

Através dos séculos, o falso gosto, a moda, as manias, as preferências parciais ou coletivas e também as iniciativas geniais vêm produzindo em todas as literaturas essas ressacas mais ou menos violentas, depois das quais, os estragos se remedeiam, aproveitando-se na reconstrução a que se verificou ser, não apenas novo — pois que novidade nem sempre quer dizer beleza —, mas o que resultou legítima e fecundamente original e progressivo. Disse muito bem Humberto de Campos: “A paixão literária, em todos os tempos, e entre todos os povos, manifesta-se com intermitências. O gráfico da vida mental... é, por toda parte, uma série de oscilações, de quedas, ou de ascenções, como os da vida sanitária dos grandes núcleos humanos”(Antologia da Acad. Bras. de Letras, prefácio, p. XI).

Seria possível ao Brasil refugir semelhantes fenômenos? Claro que não. Disso é prova o caso da semana modernista de 1922. “A Semana da Arte Moderna — escreve A. L. Nobre de Melo - inaugurada na terra bandeirante precisamente em 1922, foi a deflagração da ofensiva contra o passado, o ponto de ruptura com a tradição, o começo de uma insubordinação sistemática aos velhos cânones, importados dos centros culturais da Europa. Repudiava-se tudo o que não significasse moderno e tudo o que não fosse nosso. Estávamos como que possuídos de um autêntico delírio nativista, que subvertia a ordem estética e tentava transformar a melancólica realidade brasileira no centro de gravitação do pensamento universal. Foi a época do pau-brasileirismo de Oswald de Andrade e do verde-amarelismo de Cassiano Ricardo. A vitória do movimento modernista, apesar dos desvios iniciais e da resistência organizada por parte da gerontocracia reacionária ainda dominante, foi consequência da nossa insatisfação social sem limites e traduziu o esforço coletivo de uma geração, honestamente empenhada na procura de um caminho... Tudo não teria passado talvez de uma “inocente estudantada” — como diria Elói Pontes, no seu pitoresco linguajar —, se não estivesse à frente do movimento, encorajando-o com a autoridade do seu prestígio, a figura dinâmica, extremamente sedutora e envolvente do romancista de Canaã” (Mundos mágicos, p. 134 e 136). Apesar de várias incoerências, esse trecho, nos seus lineamentos gerais, define com relativa fidelidade o acontecido.

Muita gente fala na atitude de Graça Aranha, que rompeu estrondosamente com a Academia Brasileira de Letras, para se alistar, aos cinquenta e quatro anos de idade, entre os rapazes modernistas (ou futuristas); mas raros são os que aludem à resposta que lhe deu Medeiros e Albuquerque, então na presidência da Academia, através do discurso pronunciado em sessão de 21 de junho de 1924 (Ver: Homens e coisas da Acad. Bras., por Medeiros e Albuquerque). Não resistiremos ao desejo de transcrever os seguintes tópicos: “Onde está, entre os nossos [acadêmicos] uma orientação unilateral em tal ou qual direção? Não consigo descobri-la... Ninguém dirá que a Academia que acolheu Emílio de Menezes seja uma corporação fechada ao espírito mais revolucionário. É difícil achar quarenta homens de letras com orientações mais contrastadas e antagônicas que as nossas. No entanto, é natural que, como corporação, a Academia não se faça pioneira de novidades. Uma academia é um núcleo de consagrados. A consagração não vem na mocidade. A Academia Brasileira, reconhecendo isso, só agiria mal se procurasse impedir o desenvolvimento da literatura nacional em qualquer direção. Essa é, porém, uma falta que não lhe pode ser imputada. As academias são normalmente, na média dos que as compõem, a representação da mais alta mentalidade da geração anterior àquela em cuja época estão vivendo. Elas são o último degrau atingido até certo momento. Que outros subam mais alto, tanto melhor! É o que esta Academia espera, é pelo que trabalha. Subam os moços; nós aqui estamos para lhes mostrar, não o máximo, mas o mínimo a que podem atingir. O nosso confrade Graça Aranha é um estranho chefe de renovação literária. Pede-nos que nos renovemos, mas não nos dá o exemplo. É regra, velha regra — que talvez por isso mesmo seja “passadista” — que os chefes de movimentos literários digam o que querem e dêem a amostra disso nos seus trabalhos. Vítor Hugo fez o prefácio de Cromwell, Maupassant fez o prefácio de Pierre et Jean, Marinetti fez o prefácio dos Poeti futuristi. Lê-se a notícia da orientação nova e tem-se imediatamente noção do que ela é. Mas o Sr. Graça Aranha nos diz: “Renovem-se! Sejam futuristas! Sejam nacionalistas!”. Dá-nos alguns conselhos que nós — eu, pelo menos — não entendemos: “o futuro da arte é o objetivismo dinâmico”! De nada disso, entretanto, nos fornece nenhum exemplo. Seu primeiro livro, Canaã, é nitidamente antibrasileiro. Seu segundo livro, Malazarte, é baseado no folclore — e folclore é sempre essencialmente uma estratificação do passado. Seu terceiro livro achou meio de incluir a ideia da confederação luso-brasileira. Portugal, esse Portugal que o Sr. Graça Aranha proclama moribundo, ele o queria ligar ao Brasil, amarrando-nos, portanto, ao que ele — ele e não eu — acha que é um cadáver. Seu último trabalho é tudo quanto há de mais passadista: a biografia e a correspondência de dois escritores: Machado de Assis e Joaquim Nabuco. O Sr. Graça Aranha, no meio das suas violentas contradições, me lembra aquele poeta que, protestando contra a ereção da estátua a Casimiro Delavigne, achava que há mortos que seria preciso matar: Il est des morts, qu’il faut qu’on tue. Mas alguém lhe replicou que os mortos que ele matava continuavam a passar muito bem: Les morts que vous tuez, se portent assez bien. Os mortos que o Sr. Graça Aranha vai matando — Portugal e a Academia — vão bem, muito obrigado... Chefe que prega sem dar o exemplo, o nosso ilustre confrade podia ao menos dizer com clareza o que deseja... O nosso colega nos fala, porém, citando muito Platão, um cavalheiro que viveu há 2.271 anos, no “objetivismo dinâmico”. Simples palavras, puro psitacismo. Mas o chefe singular, que não soube dar nos seus escritos uma amostra do que desejava, citou ao menos onze modelos do que lhe parece a orientação moderna. Caso singular: desses onze, dois já protestaram contra a sua inclusão na lista; cinco são premiados da Academia! Estranha Academia, esta, que se opõe ao progresso e anima os que são apontados como mais progressistas! Entre os nomes enumerados pelo nosso colega só há um parentesco: é que as respectivas certidões de idade oscilam entre vinte e poucos e quarenta e poucos anos. Mais nada. Um deles, grande poeta que a Academia premiou por um belo livro de versos, publicou depois disso alguma coisa cubista, futurista, dadaísta? Não. Publicou um volume de canções gregas, imitação do que se fazia há mais de 2.000 anos! Que estupendo futurismo! No fundo, todas essas declamações são simplesmente pueris. A arte se fez para dar emoções aos que a apreciam. As emoções fundamentais da natureza humana variam com extraordinária lentidão; são mais ou menos hoje o que eram há 4 ou 5.000 anos. Para suscitar essas emoções, os homens de letras empregam durante certo tempo alguns processos. No fim de um dado prazo, esses processos, já gastos, já sabidos, já excessivamente conhecidos, não produzem mais efeito algum. É preciso renová-los. Olham-se as mesmas coisas, de ângulos diferentes. Para isso, entretanto, se fabricam teorias complicadas. Ontem, o romance devia notar todos os pormenores que cercavam os personagens. Havia enumerações longas e minuciosas. Era o Naturalismo. Veio depois o romance psicológico, que já não fazia caso algum da ambiência. O que os escritores nos descreviam era tudo o que se passava no espírito dos seus personagens: não só as suas palavras, como os seus pensamentos, as suas intenções, as suas tentativas de intenção... Depois veio o romance simbolista... Depois virão outros... Para quê? Sempre para o mesmo fim: modas transitórias que renovam apenas os processos para despertar emoções sempre idênticas. Os teoristas da estética sentem sempre uma profunda indignação, quando alguém lhes diz que as suas solenes doutrinas são apenas modas. Cada um julga ter apanhado afinal o definitivo, o absoluto.”

Até aí, alguns dos agudos, justíssimos conceitos do peregrino espírito que foi Medeiros e Albuquerque.

Na religião do “modernismo” foi Mário de Andrade o apóstolo mais indefesso e de maior prestígio. Há vinte e sete anos aparecera ele a pregar no populosíssimo deserto da Paulicéia. Data daí a “renovação” a jato contínuo; e, até hoje, tudo quanto se faz em matéria de modernidade, é posto sob a sua venerável proteção. Porém, havemos de convir que uma ideia ou uma corrente de ideias novas, lançada há mais de um quarto de século, já deve estar um tanto faisandée... Receamos que a renovação não venha a prolongar-se mais do que a famosa querelle des Anciens et des Modernes... Mas, essa, tinha o direito de se alongar, pois tudo era lento no tempo dos Perrault e das diligências. Hoje, encanecem as novidades com pasmosa rapidez.

Aliás, parece que já se começa a encerrar a escrita do Sturm und Drang verde-amarelo. O ensaísta Nobre de Melo diz (obra cit., p. 139): “Hoje em dia... não tem mais cabimento qualquer discussão sobre o valor do movimento modernista e sua significação no campo da nossa produtividade artística e literária. Aquilo fora, evidentemente, um reflexo das lutas políticas que convulsionaram a nação, a partir de 1922...” O grifo é nosso.

Não somos dos que porventura neguem a cultura e o talento de Mário de Andrade; porém, acreditamos piamente que os excessos a que se atirou, por delirante fome de originalidade — tão grande que até faz pensar em cabotinismo —, estão-lhe pondo em xeque a sinceridade renovadora.

O premeditado desleixo da sua escrita é o oposto da tensão requintada de Euclides da Cunha. É indisfarçavelmente um processo artificial, significando esse adjetivo “o contrário do natural entendido no sentido ordinário; ...o desejo doentio de não se assemelhar aos outros, de nada fazer como eles; a rebusca da distinção a qualquer preço” (J. Lemaitre: obra citada, série I, p. 332).

Ramalho Ortigão era autoridade bastante para nos falar de estilo na arte de escrever. Essa arte, definiu-a ele, em conceitos magistrais, cristalizando o ideal de todos que se servem da pena para ou pela beleza: “A arte de escrever baseia-se na faculdade de expor o assunto (uma ideia, um princípio, um fato) por tantos aspectos diferentes quantos aqueles por que ele pode ser considerado. Adquirida essa faculdade, que só uma vasta cultura intelectual desdobra e amplia, a técnica do escritor de arte, a sua poética, a sua retórica, a sua ciência do estilo, resume-se unicamente em selecionar. O seu lavor consiste em determinar, lúcida e nitidamente, por meio de todos os processos de que é suscetível a modelação deste barro que se chama a palavra — pelo corte do período, pelo ritmo da frase, pela propriedade do nome, pela acepção do verbo, pela rigorosa exatidão do qualificativo — de entre todos os inumeráveis pontos de vista em que pode ser considerada a coisa escrita, aquele em que nenhum outro escritor a considerara ainda. Só a isto se chama na arte criar, só a isto se chama em literatura escrever.”

O autor do Baile das quatro Artes fez questão fechada de não considerar desse jeito a palavra escrita. Suponho que no Brasil nunca ninguém concebeu prosa mais deliberadamente irregular, mais calculadamente incorreta do que a sua. Em consequência, é verdadeiramente confrangedora a impressão que se tem ao ler-lhe as crônicas de literatura e arte, onde se nos deparam ideias flamantes e sugestões de vivo interesse estético envoltas em grosseiros solecismos e desqualificados plebeísmos.

Dizem-nos que por vezes várias, no tempo da ditadura, foi ele chamado ao Ministério da Educação para ser ouvido em assuntos da esfera cultural; e também realizou, no salão de conferências da Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores, em 30 de abril de 1942, uma palestra sobre O Movimento modernista.

Incoerências piramidais, desnorteantes! Um governo que legisla sobre instrução pública — organizando e fiscalizando os programas para o ensino do vernáculo, estatuindo normas de concursos para o preenchimento dos cargos públicos, em cujas provas exige, não apenas o conhecimento do idioma vigente e florente nas páginas dos grandes mestres, mas até a decifração de verdadeiros quebra-cabeças gramaticais ardilosamente engenhados pelos filólogos do DASP, não perdoando sequer os mais simples descuidos ortográficos — cai no dessiso de solicitar palpites a um escritor que, de caso pensado, fazendo do sambenito gala, trilhava, atropelava, achamboava os mais respeitáveis princípios da língua pátria, a qual, no dizer de Ramalho Ortigão, é “O PRIMEIRO DE TODOS OS ELEMENTOS DE UMA NACIONALIDADE”.

Na aula inaugural, dada sobre o tema: O artista e o artesão, no curso de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal, e nas demais composições enfeixadas no volume O baile das quatro Artes, encontramos, por exemplo, o seguinte:

Depois, só comigo, me pus pensamenteando...

Pelo menos,... o vemos entregar os pontos diante das fugas de Bach...

Se observe desde já quanto se falava então em fantasia...

Me referirei a isso mais tarde...

Se deixe ao ouvinte o cuidado de se orientar...”.

Nesta inflação... em que a personalidade do artista passa adiante da funcionalidade da obra...

Me seja permitida aqui uma nota...

Uma sociedade... onde... ninguém não se entendia muito bem...

... não foi possível continuar o duelo, os dois artistas se desmilinguindo em pleno choro”.

... o pintor está impregnado da coisa nacional...

São amostras respigadas ao acaso. Em geral, são desescritos desse modo os seus livros.

João Leda, analisando a estranha maneira da novela Macunaíma observa, depois de citar determinada passagem dela: “O que se palpa no trecho de Mário de Andrade é o esforço considerável para tecer uma linguagem artificial com vozes de vária procedência, catando-as com pachorra e alinhando-as no período, mas não conseguindo, ainda assim, senão nucleá-lo, fundamentalmente, com palavras de bom cunho português. Falhou-lhe o intento até naquilo que, supondo talvez peculiar ao falar brasileiro, é, no entanto, da prática vulgar lusitana, como a locução que nem e as reduções pra e pro do uso vulgar português e sancionadas até na língua literária hodierna por Fialho de Almeida, que não escrevia de outro modo. E se queremos ter mais clara ideia do artificialismo linguístico de Mário de Andrade, que, pensando em português, abria porfiosa luta consigo mesmo para expressar-se numa linguagem hostil ao seu sentimento artístico, é só lê-lo noutras passagens de Macunaíma, onde ele trai evidentemente os propósitos preestabelecidos...”(A quimera da língua brasileira, p. 76).

Fatalmente, as audácias dos chefes “modernistas” tinham de influenciar os que, dotados de idêntica cerebração, se animassem a segui-los nas veredas da novidade, atraídos, sobretudo, pelas aparências do ideal renovador. Não se indagou de que, na realidade, precisava o Brasil, em matéria cultural, para sair da estagnação — real ou imaginária — em que jazia. O primeiro preconceito de que os inovadores se deixaram iscar foi o bota-abaixo da língua literariamente usada até então, e que eles qualificavam — como ainda hoje fazem alguns retardatários — de “acadêmica”.

Negando legitimidade ao conteúdo estético de todos os estilos até então reconhecidos como tais nas belas-letras brasileiras, chegaram os “modernistas” a atingir, com os seus abracadábricos excessos, a própria estrutura, os princípios normativos do idioma. Incapazes — esta é a verdade! — de criar cada qual o seu estilo, que se impusesse originalmente pelas combinações do relevo, da luminosidade, do colorido e da harmonia, apto, portanto, a traduzir as emoções inéditas ou as ideias renovadoras que porventura lhe fosforeassem no cérebro, muitos deles acharam mais fácil forçar a celebridade com as extravagâncias já nossas conhecidas.

Como a espécie humana em geral está pronta para tirar proveito de tudo o que acontece — pois à quelque chose malheur est bon —, vimos decorrer do movimento “modernista” alguns resultados concretos que já hoje se incorporam no lastro da nossa evolução.

Negá-lo seria revelar má fé. No entanto, podemos conjeturar também — que sucosos frutos não nos teria propiciado a rebelião intelectual de 1922, se se houvesse operado com uma feição menos anárquica, mais sensata, banhada daquela fecunda reflexão que só a serena Beleza sabe inspirar!...

A imitação fácil se inclina sempre para o lado mau. Nessas condições, vemos alguns teimosos prolongadores desse “modernismo” já meio safado a copiar ainda e justamente o que ele estadeava de mais desconchavado, há vinte e sete anos. Alguns dos seus aspectos abstrusos têm-se, na verdade, diferenciado, num ou noutro sentido. Essencialmente, porém, o fenômeno continua a desfavorecer o apuro do sentimento estético mais consentâneo à dignidade do escritor que se preze. E nisso não anda nenhuma razão lógica, nenhum pessimismo lógico. Parece, antes, um barbarismo lúcido, por calculado e impassível.

Indagai de certos beletristas “novos” ou “novíssimos” em que se baseiam para adotar essa concepção de arte que se ufana de inverter ou subverter de golpe todas as normas estéticas que a humanidade vinha entesourando através da árdua ascenção dos anos, em correspondência com os sucessivos estádios de civilização, — e deles ouvireis que o artista é de todo independente e o seu ideal é, tão só, expressar a sua “mensagem pessoal”.

Seria isso ponto incontroverso, se os senhores artistas mensageiros não se agrupassem logo, como fazem, em capelinhas herméticas, aparentados pela mesma inclinação ao anômalo e ao extravagante, de tal modo assemelhando-se entre si, que um poderia subscrever a obra do outro sem que se desmentissem ou confundissem as suas personalidades. Porque é fatal: desde que se irmanam em confraria fechada, nivelam-se, copiam-se, despersonalizam-se. Se, pois, um vale o outro pelas mesmas convicções estéticas, pela observância dos mesmos postulados artísticos, pelos mesmos processos e pelos mesmos fins, — a que se reduzirá a pretensa “mensagem pessoal”?... Mensagem com tal caráter, só a poderia transmitir o artista que, orgulhoso e solitário, se mantivesse fora de círculos ou grupos definidos por qualquer rótulo mais ou menos ilusório, e soubesse ser verdadeiramente pessoal pelo culto do belo, o amor da justiça e a religião da sinceridade. Agrupamento é disciplina; disciplina é nivelamento.

Incontestável é que, para muitos, “modernismo” não passa de simples questão formal externa. Poliram-se ou coloriram-se superfícies... E de que modo!

O Classicismo, o Romantismo, o Naturalismo, o Parnasianismo foram também fórmulas estéticas, cujos princípios e cujos lineamentos característicos podem, entretanto, ser definidos e analisados com inteira precisão. O Simbolismo, tão legítimo como qualquer outra escola ou corrente literária, abriu caminho, porém, a toda uma série de ismos os mais extremados e dispersivos, por isso mesmo que se incorporavam nas hostes da revolta franca: o Romanismo, o Naturismo (Intimismo ou Jammismo), o Humanismo, o Integralismo (de Adolfo Lacuzón), o Unanimismo, o Dadaísmo, o Cubismo, o Supra-realismo e coisas ainda mais nebulosas como o “Dolorismo”, o “Letrismo”, etc., etc.

O autor de La poésie contemporaine escreveu (p. 208- 209):“Toda poesia é simbólica por natureza. Não exprime ela o mundo ou a alma por meio de um sinal? Não é a representação da ideia pela imagem, do pensamento pela forma, do sentimento pela sensação, da verdade pela beleza? Homero é o primeiro dos Simbolistas e com ele fizeram símbolos todos aqueles que, através das idades, conheceram as relações do mundo sensível com o mundo interior, comoveram-se com ele e dele se serviram para exteriorizar numa obra qualquer os movimentos da alma. Entretanto, em literatura (e menos aí do que em qualquer outra coisa) nada se imobiliza, e os nossos contemporâneos têm um modo de compreender as concordâncias harmoniosas do universo, que não é o da Idade Média, nem e do século XVII, nem o dos Românticos”. André Fontainas, por sua vez, insiste: “Através dos séculos, em toda a extensão da história literária, em todas as regiões do mundo onde floresceu a arte literária, os escritores merecem que os honremos com o título de simbolistas”(Mes souvenirs du Symbolisme, p. 25).

É por demais elástica essa generalização. Se justa fosse — e não apenas nominalmente — nenhum mérito particular teriam em denominar-se simbolistas os poetas que reagiram contra a estética parnasiana, porquanto, nesse caso, os poetas parnasianos também teriam sido... Simbolistas.

Mas, que é “símbolo”? Jorge Pellissier no-lo dirá: “Enquanto a comparação considera dois termos, conservando-os afastados um do outro, o símbolo associa esses dois termos intimamente ou, melhor dito, confunde-os. Quanto à alegoria, aproxima-se ainda menos do símbolo que da própria comparação ou da metáfora. À ideia concebida pelo espírito de maneira puramente abstrata, ela substitui uma imagem tirada do mundo exterior; em consequência, não passa de uma comparação ou metáfora sistematicamente prolongada. O símbolo é coisa inteiramente outra. Brota, sem reflexão nem análise, na alma simples que não distingue sequer entre as aparências materiais e a sua significação ideal. Sem dúvida, não possuem os poetas dos nossos dias essa simplicidade de alma; mas esforçam-se por tornar à candura primitiva e, por aí, reagem contra a poesia crítica e analítica dos parnasianos, contra a sua “filosofia” — consciente ou não — que é o positivismo. Enfim, o símbolo, muito menos preciso que a alegoria, é, pelo contrário, muito mais complexo, pois, sendo pouco rigorosas as semelhanças que exprime, estas se estendem, por isso mesmo, a mais objetos ligados em conjunto e unem mais significações diversas. Não procuremos nele nada lógico nem racional, pois não se refere senão ao sentimento, e reproduz o que o sentimento apresenta em si de indeterminado. Daí, serem os poetas simbolistas quase sempre obscuros. E isso deriva da sua própria concepção de poesia. Nada de poesia sem obscuridade”(Le Mouvement littéraire contemporain, p. 177-178).

Se no símbolo nada há lógico nem racional, que esperais resulte do Simbolismo senão uma poesia sem lógica e nada racional?... Como acreditar que dessa poesia decorra outra coisa que não obscuridade?... Até onde nos poderá comover uma poesia obscura?... Tais as perguntas que certamente fariam, na época do Simbolismo, todos quantos acreditavam que poesia não é esoterismo ou charada.

Desde que o sentimento poético, para se expressar, houve de cingir-se ao mundo subjetivo, não pela força de espontânea inspiração, mas por um processo psicológico tão discutível como esse de “se esforçar por tornar à candura primitiva” — visto os poetas modernos terem perdido a “simplicidade de alma”, único estado que permitiria brotasse nela o símbolo “sem reflexão nem análise” —, o Simbolismo assumiu uma amplitude derramada, indiscernível e, por isso mesmo, perigosa, tão perigosa que, dentro de quinze anos, gerava, no seio da “escola”, as diferenciações mais acentuadas, descaracterizando-a e esgotando-a fatalmente. Cada poeta, por assim dizer, ante a pesquisa das “correspondências” e mesmo por força das liberdades ou licenças — de metro, rima, ritmo, vocabulário, sintaxe, etc. — que a nova poética vinha engendrando, criou para si uma noção particular de Simbolismo. Mallarmé não simbolizou, por exemplo, como Verlaine, nem este como qualquer outro simbolista. Esses “processos” fluidos, esses conceitos “múltiplos” do Simbolismo — conforme diz J. Hénin — é que “deram origem à corrente farta e mesclada da poesia moderna, a partir, talvez, do Romanismo de Moréas — a primeira reação perante as sutilezas musicais, abstratas, da refinada escola”.

Quando Ortega y Gasset (apud Guill. de Torre: Literaturas europeas de vanguardia, p. 16)proclama que “cada generación tiene su vocación propia, su histórica misión”, diz verdade, mas não verdade inteira...

Da mesma forma ensina deficientemente Fidelino de Figueiredo, quando nos diz que “geração é um conjunto de espíritos unidos por um sistema de ideais e valores, que encerra um juízo interpretativo do passado da sua gente e da sua espécie, uma visão do presente em que atuam e um plano de projeção para o futuro, isto é, todo um programa.”

Semelhante definição aplica-se melhor a “escola”, a “grupo”, a “círculo”, a “capelinha”...

As “gerações” — literárias, pois de literatura tratamos — não vão surgindo insuladas na correnteza do tempo; não são compartimentos estanques. Por mais que se proclamem, com vaidade, originais e independentes de quaisquer obrigações com o passado, o seu próprio aparecimento as desmente, por ser o resultado de um perene movimento de transição. É a progressiva elevação do nível cultural que condiciona a sucessiva ocorrência das gerações; e, reciprocamente, é o trabalho próprio de cada geração que mantém ou melhora aquele nível. Nunca se viu surgir uma floração literária capaz de assinalar concretamente o valor mental de uma geração, se, antes desta, já outra não houvesse regado o terreno com o suor do seu rosto.

Menos simplista que Ortega y Gasset ou Fidelino de Figueiredo, o crítico brasileiro Álvaro Lins, em artigo publicado no 2º número da revista luso-brasileira Atlântico, escreveu com brilhante agudeza: “Uma verdadeira geração será ao mesmo tempo tradicional e revolucionária; tradicionalista no sentido em que se aproveita do passado, revolucionária no sentido em que o ultrapassa. Mas aqui surge uma série de dificuldades: o que é uma geração? como reconhecer uma nova geração e como separá-la da que a antecedeu e da que a sucederá? Quantos anos devemos estabelecer como intervalo entre duas gerações?”

Não nos move o intento de responder a essas diversas perguntas. Desejamos, apenas, pôr em relevo a afirmativa inicial de que — cada geração “é, ao mesmo tempo, tradicional e revolucionária”. De fato. É revolucionária quanto às aspirações renovadoras, originais, que a animam; é tradicional por não poder dispensar as conquistas efetivas realizadas pela geração precedente e das quais, para avançar, se serve à guisa de ponte ou trampolim.

Do seu lado, Alceu Amoroso Lima observa com irrefragável exatidão: “O gênio literário autêntico usa da originalidade não isolada ou informe, mas em ligação com as qualidades literárias derivadas dos dois outros aspectos de toda vida humana, além da sua capacidade de iniciativa: a receptividade e a transmissibilidade. A originalidade só é um atributo valioso do espírito criador quando ligado ao espírito da tradição [...] ao espírito de inteligibilidade [...]. O espírito criador é inovação, na base do passado, isto é, em ligação com os homens e em união com os demais homens no espaço. O antipassadismo é tão errado como o passadismo”(Estética lit. — 1945 — p. 105).

A falta de compreensão desse conceito, por parte de tantos “novos” ou “novíssimos”, é que os tem emaranhado em fatais equívocos; pois não faltam temperamentos irrequietos, desvairados pela sede de originalidade mal entendida, que se arroguem o papel de messias de novas revelações, as quais, muitas vezes, não passam de fórmulas ou formas esquipáticas, rebarbativas e, por isso mesmo, de vã e fugaz duração. Se, acaso, conseguem inscrever-se na história literária, é, apenas — embora se não declare —, a título de curiosidade. Cremos não ser preciso invocar, a esta altura, como exemplos, o nome — aliás sobredourado de erudição — de Apollinaire com os seus Calligrammes (versos dispostos na intenção “desenhista” de sugerir a forma dos objetos a que se refere o poema), nem o do judeu convertido Max Jacó, o homem do Laboratoire central, onde a rebusca de sons batucados e associações vocálicas incisivas raia simplesmente no grotesco:

Beaumé-Dame! Notre DameBarège n’est pas Beaume-les-DamesPapa n’est pas làL’ipéca du rat n’est pas du chocolat.

Esse incrível tipo de inspiração é uma delícia para os que sentem comichões poéticas. Graças a ele, todo o mundo é poeta... É a mecânica da trivialidade.

Assim, basta surgir um evangelho qualquer de suposta “arte nova” para eletrizar uma legião de inteligências excitáveis, que se põem a praticá-lo e a tentar propagá-lo, como se, depois daquilo, nada mais houvesse a desejar e, ainda menos, realizar.

O pior é que a crítica diletante (tomando-se esse qualificativo no mais antipático sentido que acaso se lhe possa atribuir), sempre à espera de qualquer “acontecimento” literário sensacional e ruidoso, entra logo a explicar, comentar e inculcar a “novidade”, fingindo uma compreensão maternal e protetora supinamente atrevida. Graças a essa impostura, a extravagância se mantém algum tempo no cartaz — tempo esse tanto mais longo, quanto mais propício lhe for o nível cultural do meio em que se der o fato.

É o caso daquele país onde se operou há mais de um quarto de século certa revolução “modernista”, a qual, apesar de ter dado o que tinha — e o que não tinha... — ainda consegue, sobretudo por seus desvarios, fascinar jovens espíritos, que mais acertado andariam se procurassem conhecer as suas próprias forças, medir a agudeza dos seus próprios sentimentos e seguir os rumos ditados pela sua época, o seu meio e, sobretudo, os nobres destinos do ser humano, geralmente menosprezados e confundidos pelos sofistas e “aproveitadores” sociais, políticos e estéticos de após-guerra.

A preocupação de muitos jovens que se exercitam no manejo da pena — ou da typewriter — é impor-se como “novos”, atuais, “novíssimos”, da hora presente e, de todo em todo, “originais”. Já vimos que esse último qualificativo não tem caráter absoluto. Do culto da sinceridade é coisa de que só raros cuidam. Novidade a todo transe e a qualquer preço — eis o lema. Que se poderá esperar daí senão o convencionalismo mais insensato? Os que buscam o método como condição de trabalho reto, os que apuram a paciência no estudo do homem e da sociedade, do meio e do momento histórico, os que se revestem da humildade precisa para reconhecer que o escritor é um “artesão” e, portanto, necessita de prévia aprendizagem e treino especializado, antes de pensar em produzir obras-primas — esses, embora raros, existem e certamente serão os poucos escolhidos num céu a que muitos são os chamados...

A crítica oportunista ou calculista, porém, não discerne. Não lhe convém fazer a justa e útil tamisação. É mais suave, menos arriscado (e talvez rendoso...) gabar todas as iniciativas juvenis, a pretexto de que, pelo menos de algumas dessas tentativas, hão-de, afinal, brotar originalidades legítimas e perduráveis. Tem-se visto que tal expectativa pode ser baldada... É possível que, se a tempo fossem lealmente advertidos, certos talentos da feição incongruente das suas “experiências” literárias teriam evitado esterilizar-se na imitação de uma modernice sem base humana, e fugaz como todas as modas gritantes.

Crítica não é pedagogia, e tão pouco tem o poder de aumentar ou diminuir o valor de quem quer que seja. A sua ação, porém, exercida franca e sinceramente, é muita vez um oportuno raio de luz a desvendar perspectivas ignotas. As consciências bem intencionadas não repudiam esses clarões benéficos. Só a leviandade “autossuficiente” ateima em fechar os olhos e ouvidos às sugestões de autêntica beleza e, por isso — como observou Bossert a respeito de algumas figuras do Sturm und Drang —, permanece vítima dos desregramentos a que se entregou.

Mais por preguiça do que por incompetência, não faz a crítica brasileira restrições nenhumas ao “novíssimo modernismo”. Nunca se esbanjaram mais elogios a poetas e prosadores “novos” do que hoje. Tudo o que da pena lhes sai é louvado e festejado a mais não poder. Dir-se-ia que o Brasil, com os seus setenta por cento de analfabetos, virou chocadeira de gênios... O que não é lá muito de surpreender, se já se quer localizar em Cataguazes a capital (urbs prima... caput...) das letras brasileiras — com grandes ciúmes da Paulicéia desvairada...

Isso move ao riso; mas, também, dá que pensar. Quando alguns desses moços, dotados de real valor, atingirem a plenitude da sua personalidade literária, espantar-se-ão ao recordar as destampadas loas de que foram alvo as inexpertas tentativas da sua juventude. Voltando os olhos para o caminho percorrido, verão eles ao longe tantos companheiros tombados na confusão mais desoladora e infecunda, e culparão, decerto, com toda a justiça, a crítica de então, por não ter querido ser sincera nas suas apreciações.

Alceu Amoroso Lima — cujo nome vimos, algures, incluído num elenco dos “modernistas” de 1922 — anda, no momento, em matéria de crítica puramente literária, bastante arredio. Ao menos, não temos lido qualquer manifestação sua em prol do “modernismo” vigente. Acha-se voltado o seu altíssimo talento, de preferência, para outra esfera de lucubrações, onde vem pondo em relevo a força e a penetração do seu pensamento — dos mais altos do nosso tempo. A seriedade do seu espírito não lhe permitiria, já agora, acamaradar-se com os cavalheiros que praticam aquela espécie de crítica ligeira e complacente, incompatível com a gravidade de que se acham revestidos todos os problemas da nossa vida mental.

Se a época respira “insegurança”, reconheçamos, então, que aos homens de letras compete cooperar na restauração da “segurança” relativa — que é a mínima aspiração do homem — instituindo o culto da sinceridade e da verdade. Que as suas penas sejam outros tantos cinzéis com que hão de esculpir o monumento da nossa era em linhas as mais belas e serenas, e não alviões derrotistas votados ao solapamento daquele idealismo que assinalou sempre a superioridade do homem civilizado — sem embargo dos seus erros, das suas angústias e dos seus baldados sonhos! A criação, em arte, é um reflexo da Divindade. A crítica de Alceu Amoroso Lima não esqueceu isso. Muitos, porém, o esqueceram; e, daí, a relaxada condescendência reinante nos nossos meios literários, em face de tantas mediocridades obstinadas e petulantes.

Outros talentos preclaros também exercem a crítica no Brasil com irrefragáveis predicados de cultura e brilho. Sobremodo conhecidos são, para que os tenhamos de mencionar individualmente. A um deles — Álvaro Lins — nos referiremos em particular, para dizer que, segundo informou a revista curitibana Guaíra, retirou-se da atividade profissional; não se sabe se definitivamente. Ter-se-á desgostado com a maré montante do arrivismo em tão nobre setor das letras?... De Agripino Grieco — talvez a mais opulenta cultura literária da América Latina — somente diremos que poderia ser, nesta hora, o nosso maior crítico, se o não prejudicasse, de certo modo, o abuso do epigrama e a quase invencível tendência satírica do seu luminoso e inconfundível espírito.

Ainda outros há, que vivem a bater palmas a excentricidades de quando em quando abrolhadas no campo das letras. Assim procedendo, querem mostrar-se dotados do faro das “novidades” e em dia com o “moderno”; do contrário, poderiam ser tomados por desprevenidos, atrasados, rotineiros, “velhos”... Vê-se que o seu fim é — como dizem os Franceses — monter sur des échasses...

Incensar o novo, somente por ser novo, é parvoíce. Essa crítica apressada e vazia parece desconhecer o valor da tradição como “categoria moral” — no dizer de Rodó —, na vida das nacionalidades orgulhosas da sua evolução plena. Assim como a ferrenha rotina é mania grotesca, a embriaguez do “novo” é, também, com os seus excessos revolucionários, uma fantastiquice mórbida. Se é o homem de gênio que inova, ele nada destrói nem subverte com a cegueira fanática dos iconoclastas; no dizer de Antheaume e Dromard, “quando ele desdenha as regras conhecidas é porque observa outras menos factícias; quando zomba da lógica geralmente admitida, é que achou com a sua clarividência razões mais profundas e mais essenciais; quando quebra os padrões antiquados e os moldes gastos, constrói, com o mesmo gesto, novas formas”(Poésie et Folie, p. 436).

Lastimam sinceramente as inteligências delicadas que na maneira de Mário de Andrade não se revele por esse modo o seu plano de mudança para melhor. O “modernismo” pelo qual, ele, em virtude não só da sua cultura, mas da obstinação dos seus processos, ficou sendo o maior responsável, assumiu caricatural feição através dos vulgarismos de linguagem e os neologismos preconcebidamente forjados para distinguir a sua presa. Por isso, vemos muitas das suas páginas adquirir aspecto extravagante e bufo, deixando-nos sem saber se ele não tinha convicção do que dizia, ou se apenas nos queria meter os pés nas algibeiras.

Do ponto de vista estético, o seu exemplo foi, portanto, nocivo. O que desde então se produziu no Brasil, dentro da famigerada corrente “modernista”, veio quase sempre viciado, por sua causa, tanto na prosa como na poesia. Principalmente na poesia. Ainda hoje não poucos poetas tataranham com a maior delícia naquela falsa naturalidade, na chochice daquelas vulgaridades, sem que os senhores críticos lhes façam ver o ridículo dessas fáceis sensaborias.

“Lançou-se — escreveu recentemente João Gaspar Simões — lançou-se a poesia dos últimos dez anos numa espécie de devassidão do natural, que chegou a persuadir os poetas desse período que eram eles os primeiros a fazer versos não convencionais. Que o seu erro é irremediável, prova-se facilmente mostrando-lhes como as suas composições são convencionalmente não convencionais. Onde há convenção não pode haver verdadeira naturalidade”. Ainda: “Poesia e vulgaridade, eis coisas que nunca se deram bem”. E mais adiante: “...Os poetas brasileiros dos últimos anos resvalaram facilmente para a “naturalidade” vazia, para a “naturalidade” vulgar, para a “naturalidade” simples tradução à letra daquilo que em si mesmo é incompatível com qualquer espécie de literalismo: a poesia”.

Foge ao nosso propósito discutir aqui a evolução da poesia “modernista” do Brasil. Queremos apenas sublinhar uma feição cômica dessa poesia, apresentada como novidade: — a total, ou quase total ausência dos sinais de pontuação no corpo do poema. Tão pouco discutiremos se poderá chamar-se poema uma composição a que falte absolutamente a medida rítmica. A ideia de musicalidade (harmonia e melodia) sempre nos pareceu inseparável da ideia de verso. Desde que ao verso falece tal espírito, passa ele a ser um mero período ou uma simples frase em prosa. Não é a arrumação escalonada de pseudos versos no papel, que faz com que o pseudo poema vire realmente poema, pois há inúmeras composições desse feitio modernamente qualificadas de poéticas, que poderiam passar sem a mínima objeção à categoria de prosa formal, escrevendo-se-lhes aqueles pseudos versos a fio corrido. Aqui está uma amostra colhida nas páginas da revista Sul, de Florianópolis:

O sol ainda brilha.Os pássaros ainda cantam,As crianças ainda riem...Mas a massa passa curvada e enfraquecida, Arrastando dolentemente as correntes,Abafando o tédio e a revolta...As nuvens do poente ficam mais rubrasE alastram-se pelo céu,Como se quisessem queimar as estrelasQue em breve brilharão.

Escrevamos isso em linha seguida, e veremos se tal “poesia” não fica sendo “prosa” — e da pior qualidade:

O sol ainda brilha, os pássaros ainda cantam. As crianças ainda riem. Mas a massa passa curvada e enfraquecida, arrastando dolentemene as correntes, abafando o tédio e a revolta.

As nuvens do poente ficam mais rubras e alastram-se pelo céu, como se quisessem queimar as estrelas que em breve brilharão.

Temos de reconhecer que essa literatura “nova” ou “novíssima” é coisa curiosa; lembra certas fazendas de duas vistas, que não têm direito nem avesso: tanto servem assim, como assado. Dá-se-lhe um jeito, é verso; dá-se-lhe jeito contrário, é prosa. É como aquilo de Cruz Malpique: “um estilo-alforreca, que não é nem deixa de ser, antes pelo contrário”. Aos poetas dessa poesia bem se poderia aplicar o áureo epigrama desfechado por Agripino Grieco contra Gian Pietro Lucino: “Era doido pelo verso livre, fazendo-o livre demais ou fazendo, sem querer, apenas prosa, como o vetusto Mr. Jourdain”.

O mais engraçado é quando tal poesia, desejosa de atestar a sua “novidade”, a sua “atualidade”, o seu “modernismo”, atira com os sinais de pontuação às urtigas. Mantêm alguns ainda, pudibundamente, o ponto final. É que a completa nudez lhes repugna; daí, conservarem aquela folhinha de parra...

Seria truísmo demonstrar a utilidade do sistema ou arte de pontuar na escrita, e na música. Se quiserdes calcular o valor disso, cancelai a pontuação musical, ou, pelo menos, deslocai-a, em qualquer partitura. Vereis o que resta.

Nenhuma “originalidade”, porém, realizam os poetas novos, ou “novíssimos” com essa espécie de depilação dos seus poemas. É ato puramente imitativo. Os falangistas de quase todos os ismos poéticos do primeiro quartel deste século já faziam aquilo. Antes desses e em meio de outros, já havia tido igual procedimento o nebuloso Mallarmé, que “déconcertait par les tropes imprévus, les syllepses déroutantes, les incidentes qui n’en finissent plus, et bien d’autres choses encore” (Antheaume e Dromard, obra cit., p. 527). Este — digamo-lo em respeito à verdade — foi lógico na sua extravagância, pois aboliu até o ponto final. Senão, reparem, por exemplo, neste soneto esfingético, erguido à entrada da sua tradução dos poemas de Edgar Allan Poe:

LE TOMBEAU D'EDGAR POE

Tel qu’en Lui-même enfin l’éternité le changeLe Poète suscite avec un glaive nuSon siècle épouvanté de n’avoir pas connuQue la Mort triomphait dans cette voix étrangeEux comme un vil sursaut d’hydre ayant jadis l’angeDonner un sens plus pur aux mots de la tribuProclamèrent très haut le sortilège buDans le flot sans honneur de quelque noir mélangeDu sol et de la nue hostiles ô griefSi notre idée avec ne sculpte un bas-reliefDont la tombe de Poe éblouissante s’orneComme bloc ici-bas chu d’un désastre obscurQue ce granit du moins montre à jamais sa borneAux noirs vols du Blasphème épars dans le futur

Em assunto de “modernismo”, esses poetas “novíssimos” recuam ao mais remoto “passadismo”, visto que, suprimindo a pontuação, retrocedem aos tempos anteriores a Aristófanes de Bizâncio, que, como se sabe, passa por ser o inventor dela, duzentos anos antes da nossa era... Portanto, o que há de “original”, neles, não é a sua poesia, mas o estranho prazer de se fossilizarem, desse modo, sob a grossa estratificação dos séculos...

Consistirá nessas caprichosas superficialidades a excelência dos artistas “novos”? Propendemos a crê-lo. Pelo menos de alguns. Senão, falai-lhes do dever, que ao escritor assiste, de conhecer o seu idioma com segurança tamanha quanto possível, com um senso estético bastante para tirar dele os necessários efeitos de colorido, musicalidade e nitidez — qualidades, essas, sem as quais não é possível haver arte de escrever — e eles vos responderão que não precisam disso porque isso é “técnica acadêmica”, é “retórica inexpressiva”, bastando-lhes, para a sua prosa e a sua poesia, uma forma subadjetivada, “escorrida” e “enxuta”.

A prevalecer tal critério, teríamos arvorado em padrão de estilo literário o prosaísmo dos relatórios burocráticos. Geralmente, em matéria de parcimônia de adjetivação, escorrimento e enxugo, aquilo é o ideal. Os estimados e laboriosos Srs. Diretores de Repartições, sem o saber, estariam, assim, a produzir, com os seus relatórios de fim de ano, os mais puros monumentos das nossas letras...

Por mais que estimemos a inteligência dos jovens que sob o rótulo de “novos” ou “novíssimos”, assomam à rampa das letras de hoje com o tácito ou declarado desígnio de substituir vantajosamente aqueles que lhes abriram o caminho e a quem eles, por gratidão, chamam “velhos”; muito embora reconheçamos que merecem acatadas todas as iniciativas moças — exceto, é claro, a de cortar de maneira absoluta a corrente da tradição cultural, pois tão legítima é esta como a da evolução na ordem natural —, é impossível deixar, já não dizemos sem protesto, mas, ao menos, sem uma palavra de lástima, a noção primária e prejudicial que se pretende inculcar acerca da arte de escrever.

A “adjetivação abundante” não é peculiaridade “acadêmica”. É gosto ou mau gosto que pode caracterizar individualmente qualquer escritor. Em Santa Catarina, por exemplo, ninguém a levou a tão delirantes excessos como Cruz e Sousa. E Cruz e Sousa, embora morto há mais de meio século e sem embargo daquele defeito, consegue enviscar as simpatias dos “novíssimos”...

Por onde se vê que a sua doutrina deles não é lá muito coerente...

Mentiríamos aos mais elementares princípios do “artesanato literário” e à lealdade exigida de todos quantos manejam a pena, mesmo modestamente, com intenções culturais, se, pelo fato de tão erradas concepções estéticas estarem sendo seguidas por moços, lhes prestássemos apoio e as palmeássemos festivamente.

É justamente para que esses moços não calejem no erro, que nos afoitamos a fazer-lhes estas restrições.

Sabemos muito bem que à maioria pouco importará a nossa maneira de proceder, visto como já foi por um deles declarado em letra de molde que “continuarão a abusar ”; nem por isso deixaremos de manifestar a nossa tristeza diante da desvairada senda por onde se precipitaram tantas inteligências ricas de seiva e de bravura. Nessas circunstâncias, o elogio seria mentiroso, transformar-se-ia em solerte barganha. La Rochefoucauld já observou que “o elogio é uma hábil adulação, oculta e refinada, que satisfaz de modo diverso quem o formula e quem o recebe. Um toma-o como recompensa do seu mérito, outro o faz para inculcar a sua equidade e o seu discernimento. Só se elogia, em geral, para ser elogiado”.

Parece-nos errado o programa de muitos dos “novos” ou “novíssimos”, porque confunde vãs exterioridades — como, por exemplo, o sistemático desrespeito a regras essenciais do idioma, a eliminação dos sinais de pontuação, a usura da adjetivação, etc. — com a vibração da sensibilidade, a riqueza da imaginação, a novidade das ideias, a força do pensamento. Isso é que define e realça o talento literário. Se o escritor dispõe dessas altas e nobres qualidades, terá, consequentemente, algo que dizer. Escreverá bem quem gozar desse “estado de graça”.

Mas, o escrever bem — do ponto de vista artístico — não dispensa o escrever bem — do ponto de vista sintático. Em literatura não se compreende uma coisa sem a outra. Cada idioma encerra uma espécie de equilíbrio arquitetural, que é o seu espírito próprio e que pode ser levado — como as leis matemáticas e os princípios estéticos na arquitetura propriamente dita — até certo ponto, além do qual está a desarmonia, a desproporção, o desequilíbrio, a ruína. Da mesma forma que o arquiteto, dentro dos princípios estéticos e das leis matemáticas, consegue realizar as mais originais concepções — correspondendo às exigências do meio, do clima, da época, do fim utilitário, etc. — assim também o escritor consciente dos seus recursos em sensibilidade e cultura, e portador de sincera “mensagem”, encontra no idioma nativo os elementos necessários para bem expressá-la, sem ter de lançar mão de grosseiros atentados à sintaxe — atentados, esses, tanto mais indesculpáveis quanto mais deliberados. A diferença categórica está em que — para usar expressões de Serafim Silva Neto — “a língua... é uma atividade do espírito humano” e “a vontade dos homens influi no destino das línguas que falam”.

Compreende-se que os idiomas não se podem imobilizar sem deperecer. Porém, se cada um de nós, a pretexto de querer ser um escritor original, se julgasse com o direito de quebrar-lhes o travamento sintático — que é o seu arcabouço íntimo — e acalcanhar-lhes as regras mais elementares da reta função expressional — que condicionam a sua comunicabilidade — a que se reduziriam dentro em pouco as línguas...? Se não é pela retórica pretensiosa e balofa que se adquire verdadeiro estilo, muito menos o será pela anarquização das bases plásticas do idioma considerado como instrumento estético. Já dissera o crítico e sociólogo Ed. Scherer: “A frase é um organismo ao mesmo tempo lógico e estético”(apud E. Faguet: Hist. de la Litt. française, v. II. p. 449).

Se os moços dotados de talento se sentem ao mesmo tempo dotados de vocação literária, cumpre-lhes, antes de tudo, estudar com carinho a sua língua. Não lhes aconselharemos a gramatiquice exclusiva, coisa que, só por si, ao invés de fecundar, esteriliza. Há, porém, os grandes escritores, em cujas páginas radiam exemplos de alta correção, elegância e viveza significativa. Todos quantos aspiramos a fazer qualquer coisa, com relativo primor, no terreno literário, devemos amiúde conversá-los através dos seus formosos textos.

Não sabemos se incorreríamos na risota dos trocistas contumazes e dos filósofos da preguiça, se aqui aconselhássemos, também, a árdua, porém, não árida leitura dos clássicos. Sabemos, sim, sabemos que nem sempre é agradável a leitura dos velhos autores dos séculos XVI-XVIII, mormente aos espíritos moços. É ela, no entanto, sobremaneira útil, aos que, desejosos de seguir a carreira das letras, necessitam de conhecer as origens menos remotas da prosa e da poesia vazadas no idioma que nos coube por herança e que devemos defender com bravura e polir com amor. Que a juventude desdenhosa da literatura se desinteresse de semelhante “pesquisa”, compreende-se; mas as vocações literárias têm de atravessar o severo noviciado. Daí a pouco se verá quão proveitoso foi o sacrifício. Em suas Memórias, refere Goethe que quando começou, ainda moço, a frequentar a alta sociedade de Estrasburgo, levado por seu amigo Salemann, procurou um cabeleireiro que o penteasse segundo a moda ali dominante. Não o conseguiu o fígaro, declarando-lhe que, em vista da maneira pela qual lhe tinham cortado os cabelos em Francoforte, era impossível penteá-lo de modo apresentável em Estrasburgo, devendo ele, portanto, usar uma cabeleira postiça, até que os cabelos lhe recrescessem. “Resignei-me — diz o Poeta — e, para não trair esse artifício, evitei todos os exercícios violentos, o que me fez adquirir modos calmos...”. A leitura dos clássicos é a peruca de Goethe. Útil prova de paciência, visando fins compensadores.

A arte literária, insistamos, requer não só boa vontade, mas, sobretudo, aprendizagem longa, senão intérmina. “O talento, cria-o a natureza, mas se ele não se cultivar, produzirá obras informes. O instrumento de uma literatura é a língua; sabê-la bem constitui, por conseguinte, a primeira condição para bem escrever ” — ponderou J. Leite de Vasconcelos (Opúsculos, vol. I, — Filologia — parte I, p. 181. Por sua vez, no seu belo livro Em demanda do Graal, disse Afonso Lopes Vieira: “...Há uma dignidade de sintaxe como há uma civilização de maneiras: cometer certos erros pode ser o mesmo que cuspir no chão”. Pouco depois, acentua: “Velho ou novo, que importa? Adolescente audacioso ou prudente acadêmico, o escritor que não conhece, não ama ou não respeita a sua língua, é já de si um espetáculo grotesco: é um pintor sem braços, bom para pintar quadros nas arenas; e é o mais imoral dos artistas, porque é um artista sem técnica!”.

Objetar-nos-ão, talvez, que os “novos” ou “novíssimos” se orgulham de escrever mal e fazem finca-pé em “continuar abusando”, porque se reservaram o direito de criar uma literatura lidimamente sua, em oposição ao convencionalismo “acadêmico”...

Responderemos com a seguinte página de João Leda (obra cit., p. 79-80):“Essas miragens que às vezes seduzem espíritos de eleição, levando-os a sonhar com o advento de novas fórmulas literárias e com uma língua inédita paralela, que lhes dê relevo expressional, não encantaram somente os rebelados do movimento modernista, ora em fase de crise prenunciadora do ocaso. Todas as escolas, cujo período inicial se assinala em regra pela atroadora hostilidade a ideias que cansaram ou se tornaram infecundas, perturbam mais ou menos a língua materna, sempre considerada pouco ágil e idônea para entrajar com formas caprichosas as ilusórias novidades. Nunca, porém, essas irreverências para com o idioma passam sem o protesto das almas generosas. Lá mesmo em São Paulo, onde o estado-maior do modernismo se instalara para irradiar suas vibrantes ordens do dia aos esquadrões acantonados noutros pontos, Sud Menucci soltou o grito de alerta contra “a assombrosa baixa de nível de cultura do vernáculo”, resenhando os vícios que o rebaixavam à craveira de vil calão. Convençamo-nos, de uma vez por todas, desta verdade iniludível: a língua falada no Brasil não é a que oferece paradigma na gagueira boçal da massa analfabeta... Desmarcado absurdo é nivelar na mesma escuridão espiritual todo um povo de quarenta e cinco milhões, quando outros povos já lhe certificam sem favor um alto grau de cultura. Que o analfabeto, involuntariamente condenado a essa triste condição, fale errado e barbarize com tocante ingenuidade, não há por que censurá-lo, visto como ele declina da inconsciência de torturar a língua na consciência do poder público que tal consente. Inscrever, portanto, no pendão de escolas literárias a geringonça de gente inculta como expressão de ideias, fazendo para isso paciente aprendizado de patologia linguística, é desaforar acintemente o Brasil dos seus títulos culturais, obtidos com enormes esforços de inteligência”.

A síntese de tudo isso está naquele cintilante aforismo de Joubert: “Onde não há delicadeza não há literatura”.

Outra coisa de que fazem praça os “novos” ou “novíssimos” é: “o pouco caso para com os princípios morais e religiosos”. Ignoramos, no entanto, se esse desdém se estende somente ao que diz respeito à literatura e à arte, ou se também à maneira de viver de cada um deles.

Seja lá como for, o que vamos dizer é mais a evocação de um aspecto dos primórdios da geração a que pertencemos, do que um conceituoso contraste armado a nosso favor. A geração aludida — considerada “acadêmica” passadista e fóssil pela valorosa mocidade que hoje “mantém revistas em muitas cidades do país” — atravessou a infalível fase de boemia, sem, contudo, ir ao extremo de repudiar a moral como fardo incômodo. Não se conclua do que vai dito tenhamos sido modelos de anjinhos a suspirar pelo prêmio Monthyon... Todavia, desafiamos a quem quer que seja nos aponte, em tudo o que deixamos em letra de forma — prosa ou verso — algo que de longe se pareça com as despejadas sensualidades com que alguns “novos”, ou “novíssimos” apimentam os seus contos, por mera ostentação freudisíaca.

Naquela isenção não entrava a menor pruderie. Procedíamos assim num espontâneo impulso de consciência. No entanto, ao redor dos vinte anos, havíamos lido tudo quanto o Naturalismo — aliás, serodiamente, como em regra acontece na província — pusera sob os nossos olhos, na quieta e tímida Ilha dos Patos. Este é um traço que honra a figuras seletas como Laércio Caldeira, Mâncio da Costa, Barreiros Filho, Othon d’Eça, Ivo d’Aquino, João Batista Crespo, o saudoso Haroldo Calado, etc.1

Por quê? Porque não literaturizávamos a vida nem vivíamos a literatura. E ainda isso por quê? Porque já então começávamos a preocupar-nos com questões filosóficas e problemas sociais.

A geração a que pertenceram Cruz e Sousa e Virgílio Várzea, sob o estandarte da Ideia Nova — a que noutro breve trabalho aludimos de raspão —, buscara pasto para a sua curiosidade cerebral no monismo haeckeliano e no materialismo de Büchner; aquela a que pertencemos foi quem primeiro aqui ventilou as ideias de Carlos Marx, Kropótkine, Hamon, Lanessan, Novicow, Paulo Elizbacher, Comte, G. Le Bon, Palante, Max Müller, D. F. Strauss e outros, isto é, a filosofia, a psicologia individual e coletiva, o socialismo, o anarquismo, o comunismo, a etnografia, a crítica histórica, a exegese religiosa, etc. etc. Desnecessário é dizer que naturalmente não filtrávamos na perfeição essas desconformes correntes do pensamento europeu, aqui chegadas como fumos perdidos de uma fogueira distante... Entretanto, o que lográvamos apurar através de leituras e debates — especialmente no Centro Catarinense de Estudantes, do qual fomos fundador com Haroldo Calado — infundia-nos a vaga certeza de que a vida tem um fim moral, e que na própria sociedade encontra a moralidade a sua sanção empírica e positiva, visto cada indivíduo estar unido a ela pela comunidade de natureza, de existência, de sentimentos e pensamentos. Foi, portanto, para nós um instante de grande júbilo, quando, numa página de T. Ziegler, deparamos aquela mesma elevada conclusão. Pelo mesmo encadeamento de ideias, éramos levados a assentar a máxima tolerância, em matéria religiosa.

Não é vaidade referi-lo. Todos ou quase todos os nossos projetos intelectuais, nós os passávamos pelo tamis da crítica. Consideraríamos indício de curteza mental afirmar qualquer ideia, senão através de adequada dialética. Isso tudo, repetimos, devia ressentir-se do verdor da idade. Todavia, convencidos estávamos de que se assim não fizéssemos, corríamos o risco de aceitar sem frutuosa destrinça quaisquer noções morais e estéticas — isto é, aquilo que, em geral, mais costuma atrair as inteligências juvenis dotadas, em maior ou menor grau, de sinceras aspirações culturais.

Ignoramos por que princípios filosóficos se norteiam — se é que se norteiam — os “novos” ou “novíssimos” para alardear o seu “pouco caso para com os princípios morais e religiosos ”, enquanto que, por outro lado, para conseguir elementos de vária natureza que lhes possibilitem as “pesquisas” e “realizações” literárias e artísticas, passam a gravitar na órbita do Poder Público, o qual, em virtude dos postulados democráticos, tem de prescindir forçosamente da aliança franca ou dissimulada com qualquer Igreja, porém não poderá nunca, sob pena de cavar a sua própria ruína, voltar as costas aos fundamentos morais em que se esteiam não só a família e a sociedade, mas, ainda, correlativamente, a própria função de governar.

Se essa juventude desdenha os princípios éticos em face da vida social e não se corre de o proclamar pelas colunas da imprensa, estamos, então, diante de um espantoso caso de corrupção voluntária. É o que resta verificar.

O de que temos provas concretas é do seu pronunciado gosto das descrições de quadros e cenas onde se nos antolham ambientes sórdidos, tendências alucinatórias, afrontosos sexualismos. Já é um sintoma...

Porém, se “este período em que estamos vivendo, de após guerra, é psicologicamente complexo, opressivo, infinito em sua morbidez”, será isso motivo para que tantos moços se entreguem, de preferência, a literatura tão grosseiramente pessimista, ao invés de se dedicarem ao saneamento da nossa época, no terreno das ideias ativas? Não seria mil vezes mais benéfico indagar aonde nos poderia arrastar a mórbida complexidade deste “período”, e, em seguida, procurar uma solução que neutralizasse ou atenuasse os efeitos da catástrofe porventura próxima?... Se são os interesses e as necessidades que pragmaticamente condicionam as nossas ações, não conseguimos compreender por que motivo a juventude intelectual de hoje, reconhecendo e proclamando o atual “período” histórico saturado de mórbidas complexidades, se recusa a fazer frente aos males da época e, ao contrário, mais o azeda, agrava e desorienta no cultivo e divulgação de uma literatura deliberadamente pessimista, doentiamente falsa e sabidamente antiquada, porquanto nem no Realismo (ou Naturalismo) se poderia filiar, visto essa escola literária ser há muito tempo démodée.

Se a hora se turva de funestos augúrios, segundo o reconhecem os próprios moços, por que se divertem eles a “manter revistas [literárias] em muitas cidades do país”? Não será tal procedimento um escárnio? Sim; porque — como ponderou Roland Corbisier em formoso e recentíssimo artigo no Estado de São Paulo — “não nos podem satisfazer as pequenas revistas meramente literárias, por mais bem feitas e melhores que sejam. Há toda uma problemática do espírito do nosso tempo, como há também o drama e o mistério brasileiro a compreender e decifrar. E essa tarefa, urgente e inadiável, de tomada de consciência da problemática brasileira e humana, cabe aos moços executar, e àqueles que ainda acreditam na fecundidade do esforço, da generosidade e do sacrifício... A revolução necessária, a revolução que não poderemos deixar de fazer, deverá começar no plano do espírito e da cultura. O resto virá depois, como por acréscimo. O necessário é empreender desde já a luta contra a confusão, contra a impostura, contra a covardia”.

A nobilíssima ação a que Corbisier conclama os moços brasileiros é, em essência, de finalidade moral: não a moral estática, adstrita a preceitos e formalismos temporais, mas a moral dinâmica, animada pela aspiração aos ideais superiores do homem.

Não é fácil compreender exista, entre pessoas que presumem de cultas, quem sinceramente despreze os dois grandes problemas: da religião e da moral — que, a bem dizer, se reduzem a um só. Aos possíveis pregoeiros desse negativismo, repetiríamos as palavras de Tiberghien: “Se adotais o materialismo..., não penseis mais na humanidade nem no progresso dos povos, pensai em vós mesmos pois não mudareis a natureza humana, não fareis de um ser egoísta, dominado pelos sentidos, um ser livre que obedeça às santas aspirações da razão; o mundo social não tem outras leis que as do mundo físico, nem outro destino que a circulação fatal da matéria; tudo o que existe deve existir; e tudo o que se vier a fazer no futuro, far-se-á do mesmo modo sem vós, pela lei da necessidade. Se, pelo contrário, perseverais na religião do dever, se credes que se deve fazer o bem sem consideração de utilidade pessoal, se julgais que a verdade merece por si mesma ser amada, apesar de todas as forças empenhadas em ocultá-la, se reconheceis também que há alguma coisa absoluta na vida, que cada qual se deve a todos e todos se devem a si mesmos, para realizar o ideal esplêndido da humanidade, rechaçai, então, o materialismo, pois que este é a negação de todo princípio moral... Se o ideal da humanidade vos fala de liberdade, de justiça e de dever, repeli todas as hipóteses que sacrificam a liberdade à matéria, a justiça à força e o dever ao gozo. Os interesses da história são, antes de tudo, morais. Marcai, pois, no termômetro do progresso a máxima e a mínima dessas concepções. Elevai-vos acima da matéria, acima da humanidade e acima do mundo; elevai-vos até à causa primeira, até Deus. Quanto mais alto vos remonteis, melhor vereis o conjunto das coisas nas suas justas proporções”(Estudos sobre Filosofia, trad. espanhola, p. 96-97 e 126).

Se, porém, os “novos” ou “novíssimos”, desdenhando a moral e a religião, o fazem puramente como “artistas”, ninguém os poderá censurar. A arte nada tem que ver com a moral nem com a religião. Toda obra de arte realiz